Feito Avô à pressa
E um dia quando acordei era avô.
Primeiro não me reconheci ao espelho. Depois fui olhando com mais atenção os objectos que me rodeavam, fotos de família espalhadas pelas estantes, pelas mesas, os álbuns de recordações…
Olhando melhor, na realidade aquele era eu mesmo, como o tempo passou rápido.
Tocou a campainha da porta.
Fui abri-la e entra-me de rompante, sem pedir licença, um bando de crianças aos gritos, a correr e a saltar, passando por mim como se eu fosse invisível e ocupando por completo o espaço disponível do apartamento relativamente grande, mas ao mesmo tempo pequeno do atafulhado de recordações.
Mal refeito de tamanha invasão oiço numa voz cintilante um “olá pai” que me fez regressar dos meus pensamentos e do estado de apatia em que ainda me encontrava. “São as férias grandes pai, lembras-te?”
Claro que já não me lembrava, mas fiz que sim com a cabeça.
Como se eu não tivesse mais coisas em que pensar.
“Venho buscá-los mais logo, está bem?”
Mais uma vez acenei afirmativamente, e levei com um beijo rápido e repenicado na face.
E agora? O que faço eu no meio desta criançada toda? Como vou sobreviver até ao fim do dia, e pelos vistos até ao fim da semana?
São as férias grandes, eu sei!
Também fui criança! Alguém se lembra?
Tentei recordar-me como passava eu as minhas férias grandes e nesse entretanto o apartamento mudava por completo de indumentária, ele era ringue de boxe, pista de atletismo, e mais uns quantos desportos radicais, que confesso, alguns dos nomes até me custa pronunciar.
Pois é, nas minhas ditas férias brincávamos na rua. Para tal bastava-nos um cesto de basquete pendurado numa árvore. Outras vezes era brincar às escondidas a saltar quintais, com muros alguns deles relativamente altos comparados com o nosso tamanho. Chegávamos a maior parte das vezes ao fim do dia, com os calções ou as calças com uns valentes rasgões que nem a melhor artista em remendos, conseguia consertar.
Não havia nesse tempo roupa à prova de tamanhas travessuras, nem sei se alguma vez existirá. Não falando dos arranhões e nódoas negras que eram mais do que o permitido e que tentávamos a todos o custo esconder para a reprimenda não ser ainda maior…
E quando dava para a “asneirada” e nos entretínhamos a dar de comer aos patinhos recém nascidos a gordura do fiambre e que os punha malucos. Em vez de andarem para a frente andavam para trás e à roda… muitos deles coitados nem passaram desse dia e isso a nós valeu-nos uma forte puxadela de orelhas.
Era rua o dia todo, de manhã ao pôr-do-sol e ainda era preciso virem-nos chamar para as refeições, porque naquele frenesim esquecíamos tudo.
Quando nos dava de repente uma fome desvairada, bastava subirmos à árvore de fruta mais próxima para nos saciarmos e voltarmos o mais depressa possível à brincadeira.
Estava eu neste momento de retorno a um passado só meu quando, de repente, fui obrigado a regressar a toda a pressa ao mundo que se desenrolava à minha volta.
Eram três vozes de falsete em meu redor chamando-me e abanando-me com insistência.
Avô, avô, avô, vamos jogar?
Vamos! Vamos! Vamos!
E continuavam sem interrupção, eu quero às damas, eu quero ao desconfia, eu quero ao peixinho.
E o que eu queria? Não contava?
Quem sabe um pouquinho mais de sossego, ou de ordem. Tudo ao mesmo tempo não dava.
Então, com alguma daquela paciência que já me ia faltando, e diga-se de passagem, nunca foi o meu forte, comecei a organizar a programação das actividades extracurriculares, fazendo por não me esquecer das brincadeiras que agradavam a todos e a cada um em particular.
Uma promessa ficou no ar. Se todos se portassem atinadinhos, e o que era atinadinhos? Tive de explicar. No final da tarde iriam para o jardim e teriam direito a um gelado.
Ao que parece foram palavras mágicas que ditaram uma maior tranquilidade, quer para os meus sentidos em geral, quer para os meus ouvidos em particular.
Jogámos a isto! Jogámos àquilo, e tornámos a jogar a tudo. Alguns dos jogos fui aprendendo com eles, outros, fui-me recordando da minha infância, muitos dos que me lembrei já me tinham sido transmitidos por pais e avós, e que lhes ensinei. Por sinal foram os de maior sucesso.
Chegou depressa o fim do dia.
Estava cansado, não havia como negar, mas feliz.
Quando a mãe chegou, foram correndo ao seu encontro pendurando-se ao seu pescoço e perguntando em uníssono, já?
A excitação era geral, queriam contar ao mesmo tempo como tinham passado o dia e o que tinham feito.
Depois de um “briefing”, utilizando a linguagem corrente, ou seja, de um breve ponto de situação, para contar como tinha decorrido o dia, todos se despediram entusiasmados e com uma certeza exclamada: Amanhã voltamos avô!
Foi com uma certa melancolia que os vi partir e que constatei quão depressa uma casa fica de um minuto para o outro vazia, apesar de continuar cheia de recordações.
No dia seguinte já estava ansioso à espera dos pestinhas e mal a campainha tocou, saltei do velho sofá já gasto de tantas conversas e leituras e abri a porta para uma realidade até aí pouco explorada.
Ser Avô.
Desta vez pulavam à minha roda puxando-me pela roupa para me tornarem mais pequeno e me puderem dar um beijo de bons dias.
Feito isto, arrastaram-me para o meio da sala já preparada de véspera para nova sessão cultural.
A mãe, se se quis despedir, teve de vir em corrida atrás de nós e nem dei pela porta se fechar logo de seguida.
No meio de tantas actividades, ainda tínhamos os intervalos para comer a velha “Bolacha Maria” e que perdurava a preferida no tempo. Umas com manteiga dita normal, outras com manteiga de amendoim, outras com doce, isto porque os gostos eram variados e exigentes.
Foi contudo durante a pausa para almoçarmos, que esta se veio a revelar ser uma das partes mais interessantes do programa das festas. Todos queriam ajudar.
Foi desde o lavar a alface e o tomate, ficando mais água fora que dentro do alguidar, com direito a uns quantos borrifos para a cara uns dos outros, foi o temperar da salada e o pôr a mesa, mais outro dia que terminou sem termos dado por isso.
Mais uma vez a mãe chegou ao final da tarde para os levar e novamente a casa ficou mergulhada num silêncio profundo.
Mas que tipo de fenómeno se estava a passar? Porque me sentia assim? Logo eu que até aí tinha sido sempre tão cioso da minha privacidade.
Ao terceiro dia, para meu próprio espanto, dei comigo a perguntar à minha filha se não queria deixá-los lá a dormir. Isto porque assim se despachava mais depressa e eles não tinham de acordar tão cedo.
Ela anuiu agradecida, não me tendo passado contudo despercebido o ar um tanto ou quanto surpreso, quem sabe por tamanha ousadia.
O delírio foi geral, eram novamente pulos, mãos no ar, gritos de, sim, sim, sim, deixa, deixa, deixa.
E lá ficaram para meu próprio contentamento, aqui que ninguém nos oiça.
Chegada a hora de deitar e depois das lavagens da praxe sentei-me na cadeira de baloiço para lhes contar as histórias a que tinham direito.
Primeiro, sentados nas caminhas, ficaram muito atentos à leitura que se ia desenrolando, com direito a mímica e às diferentes vozes dos respectivos personagens que iam surgindo.
Era engraçado ver como ao fim de tantos anos a história do Capuchinho Vermelho e do Lobo Mau ainda fazia sucesso. Quando falava da “boca grande”, do “nariz comprido”, a expressão facial que iam fazendo era para mim hilariante, já com as minhas filhas se tinha passado o mesmo e tive por isso que fazer um enorme esforço para me conter.
Já a chegar ao final da leitura e espreitando pelo canto dos óculos, vi-os a aninharem-se nas almofadas com os olhinhos já meios entreabertos. Ao terminar dei com eles todos a dormir sem saber exactamente precisar quando tal tinha acontecido.
Aconcheguei-lhes a roupa um a um e dei-lhes um beijo de boa noite afagando-lhes as cabecitas.
Na verdade nem devem ter dado pela minha despedida.
Quando me deitei senti que me tinha saído melhor que a encomenda. Na verdade achava mesmo que era EU o herói da história.
Na manhã seguinte, mal clareou, fui despertado pelo que julgava ser um tremor de terra.
Qual tremor de terra qual quê, eram três gnomos a cair em cima da minha cama, acabados de sair de uma qualquer floresta encantada e a reclamar o final da história, que tinha ficado por ouvir na noite anterior.
Foi assim que começámos o novo dia.
Cabelos desgrenhados, barba por fazer, pijamas improvisados de roupas que outrora tinham pertencido à mãe e à tia e que ficaram lá por casa esquecidas, mas que até isso era motivo de risadas e brincadeira.
Pareciam uns pintos calçudos, as mangas caíam para além das mãos, as calças sobravam para além dos pés, mas estavam no seu melhor.
Faziam de conta que eram árvores e as mangas compridas os ramos a balançar ao sabor do vento.
A mim faziam-me mais lembrar aqueles bonecos insuflados de ar que se encontram junto às bombas de gasolina, e que teimam em não parar de esbracejar o dia todo. O mais importante é que tudo servia de diversão.
Desta vez não houve o som matinal da campainha da porta, mas o som da música do filme missão impossível.
Até que não estava de todo mal lembrado este tom de toque para o meu telemóvel.
Ainda há poucos dias, segunda-feira mais precisamente, bem que o ficar a tomar conta dos netos me tinha parecido tratar-se mesmo de uma missão impossível.
E quem seria a ligar a esta hora da manhã? Óbvio, era nem mais nem menos que a fada da floresta a perguntar se os seus anõezinhos se tinham portado bem e não tinham dado muito trabalho ao seu querido bom gigante.
E maravilha das maravilhas, tínhamos um convite para irmos almoçar ao jardim zoológico, com direito a uma tarde de visita a todos os animaizinhos que povoavam o nosso imaginário comum.
Divertimo-nos imenso, não sei se mais eles, se mais eu. Fazia anos, desde o tempo em que as filhotas eram pequenas, que nunca mais tinha voltado.
Veio-me novamente à memória a minha infância em que durante o meu período de férias e várias vezes aos fins-de-semana, os meus avós me levavam até lá.
Nessa altura e para meu prazer havia um grande ringue de patinagem, com um professor muito grande, oriundo de um qualquer país africano, e que ensinava com movimentos seguros e precisos, grandes e pequenos a patinar.
Foi assim que a semana passou rápida, sempre ocupados a fazer qualquer coisa que nos apetecesse ao ponto de nos esquecermos que existia sequer televisão.
Era uma troca de experiências mútua, mas principalmente uma aprendizagem produtiva entre duas gerações.
Foi com uma certa tristeza que vi chegar a sexta-feira em que a mãe os veio buscar, para então sim, começarem as verdadeiras férias, no sentido lato da palavra, na companhia dos pais.
Foi também com algum custo que se despegaram de mim.
Olhando para a mãe perguntaram se o avozinho não ia com eles de férias.
A verdade é que já não tinha paciência para andar nestas andanças, malas para lá, malas para cá, já tinha viajado muito e agora o que queria era o meu cantinho.
Ficou contudo a promessa de lhes contar numa próxima vez, as várias viagens que tinha feito com a avó, e que foram muitas, e também algumas das aventuras por que tínhamos passado.
E tão depressa como tinha acordado avô, mais depressa ainda renasci e me senti outra vez criança.
Venham sempre!
Obrigado, meus netos.
O BigSlam endereça felicitações à Élina Carvalho, pelo magnífico texto concebido com base em algumas recordações de infância suas e do seu marido… Parabéns!
Um Comentário
Wanda Serra
Wanda Serra
Lindo!!! lindo !!! Elina ……Parabens .
Samuel Vovo babado ,mtos parabens pelo teu lindo netinho Noah
Tbem eu estando de parabens pelos meus 3 netinhos mais lindos
Um mto mto obrigada
Wanda