A destruição da Casa Coimbra
Voltando aqueles belos tempos vividos na Pérola do Índico, as recordações são como buracos sem fundo para onde escorrem sonhos, aventuras, espaços memoráveis, os amigos e colegas que nos rodearam numa terra de sons e cheiros de que África é pródiga, com a sua cultura, a riqueza das suas gentes, as tradições, lugares e paisagens que marcaram as nossas vidas. Mas há espaços que nunca mais poderão ser revistos, transportando consigo memórias e significados que transcendem a sua mera materialidade. Falo especificamente da Casa Coimbra, que em 2012 foi demolida e que em nós ficou a sensação de que não havia necessidade, intensificada pela consciência de que o lugar agora irremediavelmente destruído jamais pode ser revivido ou recriado, uma saudade do que foi e não mais será.
Recuemos até aos finais do século XIX, época em que chegaram a Moçambique, muitos cidadãos a maioria paquistaneses originários da região do subcontinente indiano, que na época incluía o que é hoje o Paquistão, e que aproveitando rotas comerciais estabelecidas através do Oceano Índico, buscavam oportunidades e condições para ali se estabelecerem. Assim aconteceu no ano de 1887, quando o jovem Abdool Latif Ayob Vakil, chegou a Moçambique, iniciando a sua vida de comerciante em Lourenço Marques, como vendedor ambulante e com artigos conseguidos através de alguns patrícios que se prontificaram a ajudar, ia obtendo boas vendas junto dos nativos locais. Dotado de espírito empreendedor, foi expandindo o seu negócio e sonhando com a possibilidade de abrir por sua conta uma loja comercial, precisava obviamente de apoio financeiro. Depois de permanecer durante quinze meses na capital moçambicana, regressou ao seu país tendo conseguido uma preciosa colaboração junto do seu pai, que autorizou a vinda dos seus irmãos para Lourenço Marques, abrindo-lhes para o efeito um crédito de 10 mil rupias sobre a praça de Bombaim.

A Casa Coimbra, nome comercial da Adbool Sacoor, Abdool Latif & Cia. Quando o edifício na baixa de Lourenço Marques foi inaugurado nos anos 1930, era o mais alto de Moçambique.
Com o regresso à terra prometida já na companhia de seus irmãos, Abdool Latif, manifestando uma intuição apurada para o mundo dos negócios e conhecedor dos mercados locais, iniciou a sua expansão comercial abrindo no Bairro da Malanga, o seu primeiro estabelecimento de vendas numa casa de madeira e zinco. Estava dado o primeiro passo de uma carreira de reputado comerciante que alargaria a sua atividade no mesmo bairro, com a abertura de mais três lojas comerciais. O sucesso das vendas era evidente, levando a família a adquirir outro estabelecimento, e comprando mais casas de modas no centro da cidade. A fama foi alastrando, levando o líder Abdool Latif e família a trespassarem os comércios do Bairro da Malanga e um outro na Travessa da Palmeira, tomando de seguida por trespasse um grande armazém na zona nevrálgica da cidade, onde as suas vendas conheceram grande impacto graças ao constante hábito de inovarem.
Esta abertura teve a particularidade de exibir na fachada o nome de Casa Coimbra, derivado ao pormenor curioso de os seus seguidores clientes o apodarem de “Coimbra” um tanto pelo facto de importar da “Lusa Atenas”, tecidos apreciados e produzidos em fábricas nas redondezas da cidade. A par deste negócio, abriram em 1915 uma casa de Câmbios, já que na cidade de Lourenço Marques, circulava muita moeda estrangeira e em 1924, abriam portas a uma casa de artigos orientais.

Primeira grande filial da rede de lojas de departamento Casa Coimbra na Rua Consiglieri Pedroso (anúncio de 1929)
A paixão por negócios levou o estratega Abdool Latif e os irmãos tendo em linha de conta a constante evolução do mercado, a adquirirem um terreno dimensionado na Av. da República, bem no eixo da Baixa citadina e nos finais da década 3o num projeto bem constituído assente num traço de sequente modernismo sobressaindo a art déco, uma expressão artística das mais marcantes do século XX, a apostarem na construção de um moderno edifício até ao momento o mais alto do território, juntando todas as atividades da firma e continuando com as suas atrativas tradições comerciais, buscando constantemente novas ideias, produtos e serviços para se destacarem da concorrência. A 16 de Dezembro de 1940, o sonho transformou-se em realidade ao despontar na Av. República, o distinto Edifício da Casa Coimbra que contou na festejada inauguração com a presença das mais altas individualidades civis e religiosas, a que se associaram centenas de populares.

Avenida da República com Prédio Pott na esquina à direita e a Casa Coimbra do outro lado da rua à esquerda.

O edifício da Casa Coimbra. À direita vê-se a J. Salvado da Costa, onde anos mais tarde se edificou a nova sede do BNU.
Recordo que esse bonito edifício, possuía na parte do rés-do-chão a área comercial, onde se vendiam os mais variados artigos orientais, as últimas modas de vestuário europeu, perfumes, carteiras, máquinas de escrever e uma alfaiataria bem profissionalizada. Certamente, alguns ainda se lembrarão do famoso Salão de Chá Arcádia, que funcionava no piso superior e ponto de encontro referenciado pelo convívio social e cultural, onde se reuniam figuras da sociedade local, artistas e intelectuais da época. Um período marcado por um ambiente cosmopolita que caraterizava a cidade, onde se realizavam tertúlias, apresentações musicais e eventos culturais.

Fachada da Casa Coimbra e Salão de Chá Arcádia.
O Salão de Chá, resultou de uma parceria entre o célebre maestro Artur Fonseca, Jorge Vara e um outro sócio. O seu espaço interior com vistas para a avenida, era destacado pelo ambiente elegante e acolhedor a que se acrescentava uma decoração cuidada e serviço de cafetaria de qualidade. Foi palco de muitos concertos de música clássica, apresentações de jazz, saraus de poesia e exposições de arte. Vivia-se na cidade de Lourenço Marques, uma grande efervescência cultural, contudo como não há bela sem senão, o Salão de Chá Arcádia, encerrou o seu serviço em 1950.

Interior do Salão de Chá. À direita, o balcão. Ao fundo, o palco onde tocava todos os dias uma banda ao vivo. Na altura, todas as terças-feiras, à noite eram dados concertos de música clássica que eram difundidos para todo o mundo ao vivo através de uma emissão do Rádio Clube de Moçambique.

Interior do salão Arcádia , visto do lado oposto.

A linda esplanada, com vista para a Avenida da República.
Nos outros pisos, achava-se escritórios, consultórios médicos de várias especialidades.

A fachada da Casa Coimbra, 1961. Pode-se ver, no lado direito, a futura sucursal do BNU em construção.
Em 2012 e já depois do violento incêndio que reduziu a escombros o mítico Edifício Pott,

O Avenida Buildings – “Prédio Pott” na esquina das Avenidas da República (hoje Av. 25 de Setembro) e Dom Luiz I (hoje Av. Samora Machel). Fotografia do Acervo Fotográfico de Manuel Augusto Martins Gomes

Prédio Pott (hoje em ruínas) – Credito Hélder Correia
a baixa citadina perdeu mais uma simbólica referência com o início dos trabalhos da demolição do Edifício da Casa Coimbra, para dar lugar às instalações do Banco de Moçambique que comporta 30 andares, e contíguo a um outro com 19 pisos, que inclui silo auto com capacidade para 800 viaturas, e com espaços reservados a restaurantes e outras especificidades.

Sede do Banco de Moçambique em Maputo, foi inaugurado em Outubro de 2011. Desenhado pelo arquiteto Frederico Valsassina para o Grupo Amorim.
O seu desaparecimento gerou muita polémica e repúdio, tratando-se de um edifício de arquitetura eclética que refletia a sua história e influência na modernização da cidade. Os montões de entulho constituídos por amálgamas de ferro, cimento e outros resíduos retirados do local, lançados não se sabem para onde, serão para sempre o testemunho silencioso que refletiu o trabalho árduo e dinâmico dos seus laboriosos fundadores, dos dedicados funcionários e dos muitos clientes, onde as vidas se entrelaçaram ao longo de mais 70 anos de legado, pleno de muitas narrativas e memórias do passado, marco de um tempo que outro tempo lhe haveria suceder.
Fotos retiradas com a devida vénia do blog – The Delagoa Bay de António Botelho de Melo
Manuel Terra – Março de 2025
14 Comentários
João santos costa
Mais um excelente artigo com a assinatura do “Manel” Terra que nos recorda, não só, toda a estória da Casa Coimbra e dos seus proprietários mas também a transformação da zona envolvente! Obrigado, Manel.
Um grande abraço do teu amigo João
João Gouveia
Bom trabalho. A história é mesmo assim. Muitos lugares emblemáticos para uns para outro nada são.
Em Lisboa também muita gente da nossa idade diz que destruíram Lisboa e aqui não existira mudanças
de cultura. Tudo continuou português. Comprei lá muitas coisas, até a farda da Mocidade Portuguesa.
Daqui a 30 ou 40 anos também aqueles que agora têm 20 vão dizer que Maputo já não é o que era.
LM foi uma grande cidade que todos adorámos mas Maputo mostra uma grande evolução desde 1975.
Toda a zona a caminho da Costa de Sol desde o final da António Enes é uma nova cidade. Agora não
existem 400 mil pessoas, agora são mais de 2 milhões. O prédio onde vivi desapareceu, hoje é um edifício
de 15 andares (aliás já era em 1973, por isso tivemos de mudar). Uma das casa onde vivi entre os 2 e os 4
anos em Cascais já não existe desde os anos 70. A isto chama-se evolução e ainda bem que é assim.
Guilhermina Martins
A Casa Coimbra foi o meu primeiro emprego (por 2 anod) após acabar o Instituto Comercial. Depois ingressei no Banco Pinto & Sotto Mayor onde estive até 1976. Vim para Portugal com transferência para o mesmo Banco mas que mais tarde mudou de nome (Millenniumbcp) onde me reformei.
Sabendo do que se passou e passa em Moçambique, confesso que deixei de ter saudades. E jamais lá voltarei.
nino ughetto
Olà, nào vou dizer obrigado por essas lembranças, infelizmente. TUDO isso me faz chorar todo tempo, Talvez por estar jà velho,(80 anos) e saber que o meu Paiis esta a sert detruido; vandalizado roubado, explurado, e que o povo continua na pobresa absuluta;;; Casa Coimbra… meus amigos trabalhavam là, Minha Màe nos fazia fazer a roupa ( Fatos ) para mim e meu iemào, e tantas outras coisa. Foi um tempo maravilhoso mas… mas tudo passa tudo acaba…Um abraço
José
A sede do banco de Moçambique é um pouco escura para um país quente…
Luiz Branco
Terra de pretos suja e destruída.
Renato Caldeira
Quando é feito pelos brancos, como está acontecendo em muitos lugares de Lisboa, a reação não é a mesma. Um pouco de moderação e equilíbrio, não ficaria mal. O Big Slam, para onde tenho dado alguma colaboração, não merece este tipo de análises. Afinal, a censura de que fomos vítimas na colonização ainda faz falta! Renato Caldeira
Edite Lemos
😪😪😪
ricardoquintino@netcabo.pt
Deixou saudades. Lembro-me de lá ter comprado vestuário pessoal para o dia a dia profissional. Agora só me resta a lembrança numa bruma do outro lado do tempo, que já perfez 47 anos, que deixei para trás a minha intemporal ex capital da Província Portuguesa, que me viu nascer…😪
Tim Serras
O nível de destruição dessa gente é simplesmente espantoso! A história julgará este período (1975 até mais ver) como uma mancha negra na brilhante epopeia dos portugueses além mar.
2luisbatalau@gmail.com
LEMBRO-ME MUITO BEM DA CASA COIMBRA. NÃO ME ADMIRA TER SIDO DEITADO ABAIXO. ABRAÇO
Pedro de Freitas
Tudo o que lhes foi dado, “de mao beijada” pelos “libertadores de Portugal”, como era de esperar, tudo foi destruido….. que miseria…. Lourenco Marques era a cidade mais linda do Mundo…. que ja nao volta mais…. que saudades!!!
Mario
Uma das minhas irmãs trabalhou nos armazéns Marta da Cruz e Tavares que ficavam em frente e eram os mais diretos rivais (saudáveis) além do John Orr’s. Toda a baixa (bazar Vasco da Gama, xaropes Silva & Dias,Gulamusen lda.casa Vilaça,BNU,DETA,Restaurantes Hong Kong,Macau,Luna Park etc…eram ex-libris daquela maravilhosa cidade que era mais iluminada de noite com os reclames que o próprio dia !!!!
roberto.woodcock@gmail.com
Obrigado por nos relembrar.