Beira a cidade resistente
Um ano depois do ciclone Idai, ter atingido a Beira e arredores, acompanhado de fortes rajadas de vento que ultrapassaram os 200 Km/hora e de chuva torrencial, deixando a segunda cidade moçambicana submersa e um cenário de destruição nunca antes visto, com milhares de desalojados e um número impreciso de desaparecidos nas águas barrentas dos rios Pongué e Búzi, os beirenses lá vão paulatinamente cumprindo as suas habituais rotinas e a tentarem reerguer a sua cidade.
Têm que praticamente reconstruir tudo, desde instalações sanitárias, edifícios escolares, instituições públicas e religiosas, parques desportivos, comércio geral e redes de electricidade e telecomunicações. A circulação automóvel faz-se a muito custo e com redobrados cuidados, já que a chuva incessante levou consigo o alcatrão e fez deslizar as terras de suporte. A Beira, procura recuperar o seu espaço e conta com um programa de apoio que prevê a duração de cinco anos, mas que naturalmente deverá ser alargado, tanto mais que estão agora em estudo planos para a defesa da cidade, face aos fenómenos meteorológicos cada vez mais frequentes que surtem das alterações climáticas.
A Beira, que nasceu como cidade nos primórdios do século XX, de parto difícil quiçá contra a vontade da Mãe Natureza, teve como berço a terra pantanosa e movediça em seu redor. Tais terrenos que os ingleses rejeitaram, preferindo outras estâncias. Ao invés, os portugueses aventureiros e empreendedores, muitos deles no auge da vida adulta, agarraram em pás e com a ajuda das populações nativas, foram aterrando pântanos e desbravando caminhos que deram corpo a uma terra embrionária, orgulho das gerações vindouras. Esboçada a partir da margem esquerda do Rio Pungué, e abraçada pelo Oceano Índico, a Beira servia-se do Rio Chiveve, um riacho ligado a um braço de mar destinado a travar o movimento das marés altas, de forma a impedir que as mesmas invadissem a cidade implantada abaixo do nível das águas do mar.
A forma como os seus habitantes foram superando as dificuldades, tornara o povo da Beira, sui génires; gente com orgulho próprio, bairrista que defendia como ninguém as suas ideias e que queria o melhor para a sua terra. Recuo no tempo e recordo com saudade a minha visita à Beira, em Janeiro de 1975, no pico do progresso e dou comigo à sua chegada, rendido ao encanto da imponente estação do Caminho-de-Ferro, uma verdadeira maravilha da arquitetura moderna, bem iluminada a partir do exterior.
Ainda antes do sol raiar, tempo para ir repousar depois de mais de 20 horas de viagem. Antes do almoço acordara para lá do alto do hotel, lançar o olhar sobre a cidade circundada de tons verdes e azuis, que pareciam então simbolizar o encontro pacífico entre a terra e o mar. O seu porto marítimo era um dos mais importantes da África Oriental, com ligações a todas as rotas do mundo.
A Beira, era uma cidade plana com artérias bem delineadas e arborizadas, que conjugava na perfeição edifícios de porte considerável, concebidos por arquitetos visionários, com habitações de traça colonial.
Caminhando pelas suas avenidas, não passava despercebida a simbiose de culturas expressas nas raças e crenças dos beirenses, sublinhada pela presença significativa da comunidade sino-asiática, descendentes do grande contingente proveniente de Singapura, Macau, Cantão e Hong Kong, Índia, Paquistão e Caxemira, então contratados no final do século XIX para a construção de portos marítimos e linhas de caminho-de-ferro, em Moçambique.
Na companhia de amigos de viagem, percorremos ruas pejadas de comerciantes a lembrar a longínqua Índia e Paquistão, que com muita perspicácia para o negócio, faziam com que o cliente raramente pudesse sair da loja sem comprar bijutarias, artigos da moda ou especiarias asiáticas. Na Ponta Gêa, lá estava o Grande Hotel, excêntrica obra de arquitetura parecendo já adivinhar a condenação a que foi sujeita.
Passagem obrigatória pelo Largo Caldas Xavier, onde estava localizado o edifício do Banco Nacional Ultramarino. Já perto da Baixa, para saciar a sede e quase sufocados pelo sol inclemente de janeiro, um delicioso sumo de laranja servido no Café Alpino, também conhecido pela qualidade dos seus gelados. O passeio noturno ficou marcado para a zona do Maquinino. Atravessada a velha ponte metálica sobre o Chiveve, um salto até ao Moulin Rouge, muito frequentado pelos locais e turistas, sobretudo rodesianos. Espaço de diversão muito conhecida na cidade, era caraterizada pelo tradicional moinho de cor vermelho, numa alusão ainda que distante, do famoso cabaré que animava as noites boémias de Paris.
A Beira, era também conhecida pela qualidade do seu afamado marisco e para o degustar assim como os crustáceos, nada melhor do que abancar na zona exterior do Restaurante Chinês e aguardar pelas travessas de camarões bem fritos e dos caranguejos preparados com primor, onde à noite quente e húmida que se fazia sentir se juntou o ardor do piripiri, rapidamente abafado pela ingestão de umas Manicas (cerveja fresca e boa).
Para a despedida bem cedo rumamos para a Praça do Município, centro nevrálgico da cidade onde os beirenses se aglomeravam, comentando em pequenos grupos as inquietações quanto ao futuro; a independência caminhava a passos rápidos e iam-se ouvindo também vaticínios para a final do Campeonato Provincial de Futebol, que iria à tarde ser disputada no Campo do Ferroviário, entre a formação local e o Sporting Clube de Lourenço Marques.
O Café Riviera, sempre bem preenchido era uma referência, afamado pelas conversas no pé do ouvido estabelecidas pelos frequentadores mais próximos. Após umas voltas à Praça, tempo para regressarmos para o almoço. Era visível o afluxo de trânsito na estrada, vindo creio da estrada da marginal, com o regresso dos veraneantes depois de uma manhã bem passada na extensa Praia do Macuti, conhecida pela qualidade da suas águas cálidas e areia branca.
À tarde todos os caminhos iam dar ao campo do Ferroviário e no final do jogo, foram os beirenses quem fizeram a festa. Adivinhava-se já o entardecer; lá longe na linha do horizonte projetava-se o mágico “pôr-do-sol” africano, com o rei solar a deixar vagarosamente transparecer a beleza da sua aura alaranjada, suavemente rendida pelo luar prateado que foi cobrindo a cidade.
Os néones e a iluminação pública dispararam, como sentinelas da noite anunciada. O tempo ia-se esgotando e gorou-se a ida à sessão de cinema no moderno Novocine, considerada como a mais moderna sala de películas de Moçambique.
Na manhã seguinte, foi o momento de embarcar no moderno expresso da Auto Viação do Sul do Save, para o regresso a Lourenço Marques. Três aceleradelas sucessivas, davam o sinal de partida, tempo para olhar para trás e acenar à Beira. Foco-me agora na coragem do povo daquela terra, que lidou com o conflito da guerra civil e agora com a terceira cheia do século XXI. Depois de chorar os seus mortos e cuidar dos vivos, a população numa conjugação de esforços vai dia após dia, dando mais vida, cor e esperança em voltar a colocar no mapa a sua cidade. Poucos como os beirenses, que nunca tiveram vida fácil, sabem fintar as adversidades e com a sua sagaz capacidade, certamente que a Beira, nunca perderá o epíteto de cidade do futuro.
Manuel Terra – 04.05.2020
7 Comentários
Manuel Martins Terra
Tentando ir ao encontro do pedido da Denise Pereira, quanto aos terrenos que os ingleses rejeitaram na região designada ao que creio por Aruangua, vivia-se então um braço de ferro entre os velhos aliados pela posse do território, que levou o Tribunal Arbitrário Francês, presidido pelo presidente marechal Mac-Mahon, atribuir a Portugal a posse do território a 24 de Julho de 1875. A decisão não foi pacifica, porque os ingleses não queriam de forma alguma perder a construção do porto da Beira, tão estratégico para o escoamento dos produtos das suas Rodésias e da Niassalandia(hoje Malawi), todavia as condições pântanosas e as mortes provocadas pelo paludismo e a malária, levaram-nos a considerar mudar de estratégia. Só que os portugueses, reconhecidos então como senhores do terreno, meteram mãos à obra e como homens de tempera rija , foram enfrentando as epidemias e construindo os alicerces da Beira, que haveria de nascer, e que bela se tornou.
Maria Nora Ongolane Francisco M.
Uma optima reflexao. Parabens, gostei saber mais desta nossa linda cidade.
Augusto Martins
Bom trabalho. Parabéns
Denise Pereira
Muito bem vindo Sr Terra! Estaria muito interessada ao ver desenvolvida a sua afirmação ” ….Tais terrenos que os ingleses rejeitaram, preferindo outras estâncias. “
Fátima Maio Alves
Que bela e saudosa viagem fiz ao ler o seu magnífico texto sobre a minha cidade de coração, onde vivi 27 anos!
Obrigada, obrigada. Bem haja!!!
Gabriel de Oliveira
Uma óptima reflexão do espírito Beirense e sua idiossincrasia espelhada na sua arquitetura urbana e dos seus edifícios. O orgulho, tenacidade, frontalidade natural e audácia, é a marca da sua gente, e é intemporal. Muito obrigado pela magnífica crônica que faz jus aos residentes desta cidade, aqual vaidosamente pertenço. Abraço
Manuel da Silva
Ao Sr. Manuel Terra.
Pelo meu lado que seja bem-vindo!
Falar da Beira é mexer comigo … pois foi aqui que fiz grande parte da minha formação.
Obrigado