O popular bairro do Alto-Maé
O fascínio da cidade de Lourenço Marques, tinha muito a ver pela elegância do seu traçado invejável a quem os jovens técnicos da engenharia militar souberam com mestria construir uma grandiosa urbe conquistada ao mar, aterrando lugares lodosos e avançar para o mato.
Depois do rompimento da Av. Carlos, mais tarde Av. da República, cedo se começou a esboçar a expansão da cidade com o objetivo de atingir a parte cimeira do planalto. Com esse propósito, foi traçada uma via larga a que foi dada o nome de Manuel de Arriaga, fundamental para a ligação da parte da Baixa, até ao ponto mais visível da zona do arrabalde. Vencidas as dificuldades da escalada da escarpa, logo se pensou em estabelecer a ligação entre a zona da Polana, muito virada para o mar e a zona denominada de Alto Mahé, ponto nevrálgico para o lançamento de muitos outros bairros da cidade.
Nasceu então a artéria mais simbólica da cidade, a Av. Pinheiro Chagas, com uma extensão a rondar os 4 quilómetros, bastante larga e muito arborizada.
O cruzamento da Av. Manuel de Arriaga com a Av. Pinheira Chagas, definia o ponto central da cidade onde foi edificado o cemitério de S. Francisco Xavier.
Para a zona poente, vislumbrava-se um grande povoado com adventos de pronunciada aproximação, habitada por gente de todas as raças que lhe conferia uma identidade cultural, essencial para a história e valorização do Bairro do Alto-Maé. Olhando para o passado, vejo esse bairro popular classificado a partir do cruzamento da Av. General Machado com a Av. Pinheiro Chagas, e ainda pareço estar a ouvir um repetido spot publicitário difundido pelo Rádio Clube de Moçambique, que propalava:
O Ponto Final é, onde acaba a Central (zona da cidade) e começa o Alto-Maé.
Se bem se lembram o Ponto Final, tratava-se de um afamado restaurante e marisqueira muito frequentado pelos laurentinos.
Entretanto as pequenas casas de outrora, moradias simples de alvenaria e casas de pedra, com os seus pequenos quintais recheados de hortas e árvores de fruto, iam sendo substituídas por habitações mais sustentadas e prédios de altura considerável, sinais de que os ventos do progresso avançavam e alteravam a sua fisionomia inicial. Terá sido retirado já próximo do final do bairro, um fontanário destinado a fornecer água aos habitantes, quando ainda não havia condutas de distribuição do precioso líquido ao domicílio. O bairro tão ilustrativo do início do século XX, nunca perdeu o seu espirito bairrista e muito menos o seu dinamismo.
Para a posterioridade o Edifício Rajá, construído em 1934, com placa em numeração romana, ainda hoje lá se conserva como guardião de um templo, a não deixar esquecer o tempo pretérito. O velhinho edifício erguido no términus da Av. Pinheiro Chagas, abraçava ainda parte do quarteirão da Rua João Albasini. O emblemático prédio, tinha na sua fachada principal, caraterizada pela art déco muito constante até ao final da década 40 do século passado, a entrada para o Cine Variedades, onde se passavam filmes e peças de teatro. Acabaria por fechar, e mais tarde deu lugar a uma garagem de automóveis. Porém é que as letras pintadas no alto da fachada, continuam a resistir heroicamente e perfeitamente percetíveis a qualquer olhar.
No bloco comercial por onde entrei várias vezes, funcionava o Bazar Rajá, comércio hindu que tudo vendia a preços mais acessíveis, fervilhavam os compradores atendidos por empregados de cofiós na cabeça e de mulheres trajando vestes de sari. Excediam-se na simpatia, acrescentando às vendas dos produtos um “saguate” (pequena lembrança), a atestar a sua habitual sagacidade e arte de bem vender.
Defronte, achava-se as paragens dos machimbombos, que serviam a linha do Alto-Maé, substituindo os velhos elétricos que ali chegaram em 1922. Por algum tempo residi naquele bairro que a todos encantava, junto ao estabelecimento de modas Casa Fabião, hoje transformado numa instituição bancária.
Na transição da década 50, começava a operar-se a transformação da Av. Pinheiro Chagas, que passou a contar com oito faixas de rodagem, quatro na via central e duas nas laterais, onde a espaços calculados se interligavam. Recordo esse trabalho gigantesco, em que homens e máquinas trabalhavam com afinco numa luta contra o tempo, desafiando todas as regras de construção, procediam à montagem de todas as necessárias infraestruturas para uma desejada funcionalidade que apontasse ao futuro. Com todo o fulgor, a Av. Pinheiro Chagas estendia-se desde a Polana até ao Alto-Maé, com uma vistosa passadeira de asfalto onde o intenso trânsito fluía sem constrangimentos. Esta impressionante avenida, acabaria por força das ruas transversais à mesma, emparceirar o Alto-Maé, ao Bairro da Malanga e ao Bairro da Munhuana.
Recordo que o Bairro do Alto-Maé, era um verdadeiro marco no dia-a-dia da cidade com as suas ruas cheias de vida onde muita gente para lá convergia, caminhando aparentemente sem destino, mas que rapidamente se descortinava no interior dos comércios, escritórios e repartições.
Nas minhas visões, lá surgem a Casa Saratoga, Príncipe de Gales,
Papelaria Folques, Foto Coimbra, Cinema Infante,
Os Armazéns Paga Pouco, Restaurante 2024 (serviam pregos divinais), Pastelaria Paris, Casa Fabião, Bazar Bem-Fica, Escola Rainha D. Leonor,
Magistério Primário, Banco Nacional Ultramarino,
Marisqueira do Alto-Maé, Cervejaria Imperial (famosa pelo arroz com gambas grelhadas)
Vermelho: Cervejaria Imperial, actual XIMA.
Azul: Esquadra da Polícia.
Amarelo: Av. da Tanzânia (antiga Rua João Albasini)
Laranja: Av. da Tanzânia (antiga Av. Almirante Canto e Castro)
Verde: Av. Eduardo Mondlane (antiga Av. Pinheiro Chagas).
e também a Cervejaria Leão de Ouro, onde eram servidos os melhores pratos de bacalhau, tal a diversidade da confeção.
Naquele popular bairro do Alto-Maé, reinava de forma evidente a união dos seus moradores, gente simpática e trabalhadora onde cada vizinho tratava o do lado ou o mais próximo, como se de um seu familiar se tratasse. São essas memórias afetivas do passado, que eu ainda tenho diante dos olhos, e tão vivas independentemente do tempo e do espaço que hoje nos separam…
- Fotos retiradas com a devida vénia dos blogues: The Delagoa Bay World de ABM e House of Maputo a quem o BigSlam agradece!
Manuel Terra – Abril de 2022
23 Comentários
Bernardino Moreira
Obrigado pela bela reportagem que faz lembrar tempos muito bons. Foi na Cervejaria Imperial que tomei a minha primeira refeição nessa bela cidade, almoço em Maio de 1958 com a idade de 11 anos em seguida a ter desembarcado do navio Império que me transportou da metrópole juntamente com minha mãe e irmã. Tendo ido residir para a Malhangalene Rua de Portalegre.
Augusto Martins
O B R I G A D O, ao autor desta maravilhosa reportagem, que sinto como uma merecida homenagem a todos aqueles que edificaram essa cidade, à qual deram toda a sua vida, a sua saúde, o seu trabalho árduo, o seu suor e as suas lágrimas para lá poderem ficar sepultados.
Eu voltei ao bairro em que nasci e vivi os últimos 4 meses em que permaneci nesta cidade que, com grande mágoa abandonei ao seu destino, em 30/Dez/1975, por ter constatado que irremediavelmente estava perdido todo esse trabalho anterior, realizado com o objectivo de dar continuação à obra dos meus Avós e Pais, realizada ininterruptamente desde 1905 e onde ficaram sepultados.
Por pouco, as fotos da zona (Av. Alves Correia) tinham apresentado a casa (Nos. 46 e 48) em que tudo isso aconteceu.
Por sinal, essa casa ainda estava impecável e absolutamente habitável. Foi construída pelo meu Avô JOÃO ALVES MORAIS, para habitação da sua família. Essa foi a primeira casa de alvenaria construída no Alto Maé. Foi demolida em 2013 e substituída por um prédio onde actualmente está instalado um hotel.
Mais uma vez, quero agradecer a possibilidade que me deram de reviver uma parte da minha vida e trazer à minha memória os momentos de felicidade que tive oportunidade de recordar.
Tomané Alves
ARREPIEI … AMEI!!!
José Rodrigues
Bom dia,
O bairro do Alto Maé foi onde nasci e onde vivi até aos 12 anos , altura em que vim para Portugal.
Saudades dos locais emblemáticos como a Imperial , a cervejaria 3024 (em fernte ao “Nosso Café” na Pinheiro Chagas), o Dispensário Santa Filomena onde ia levar as vacinas ainda bebé, o cinema Infante, o jardim 28 de Maio, o templo Aga Khan ,enfim…
Com emoção verifico na foto ” Arcadas na zona do Jardim 28 de Maio” que foi no prédio do meio onde nasci e morei ( na Luciano Coedeiro), o prédio ao lado , maior e de esquina com a Pinheiro Chagas havia uma dependência bancária do Sotto Mayor e mais tarde foi APIE.
Nas traseiras havia e certamente ainda há um patio onde os miudos dos três prédios se reuniam para as brincadeiras e grandes futeboladas se fizeram aí.
Ao descer a avenida passava no Jardim 28 de Maio, seguia-se o Aga Khan, e terminava no Ferroviário no fim da avenida.
Belos tempos…
Um abraço
José Miguel
Angelina C. C. Antunes
Sou Enfermeira.Trabalhei no Hospital Miguel Bombarda e no Hospital Militar.Vivia na Av. Gomes Freire, cruzamento com a AV. Augusto Castilho. Estive lá, os últimos nove anos de guerra, mas foram suficientes, para trazer muitas saudades.
João Rodrigues
Terra da minha infância boas recordações desde o bairro da Malhangalene ate à baixa junto do mercado, morei num 5° andar do prédio Negrão. Bons tempos….
Rogério Machado
Alto-Maé…! Onde morei mais tempo! Adorei morar por lá…
PONTO FINAL… cervejaria da qual meu pai fazia parte como sócio. Sociedade, Ribeiro (meu pai), Leal e Mata (administrador do Estabelecimento) Ltda. Pois é… foi estatizada! Dá de acreditar? À boa maneira comunista…
Mas, no final, todos se viramos… uns melhor, outros pior, mas todo mundo noutros lugares (quase todos… sobraram por lá alguns com estômago…!). Perdeu Moçambique, por perder essa gente, que faria esse país um dos melhores do mundo…
Não tenho dúvidas! Talvez agora estejam melhor, como sétimo país mais pobre do mundo… kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
Estela
Pois… Nesse tempo eu vivi bem.
Agora sem os ditos por si colonizadores, está-se melhor. Aproveite e volte porque os que lá estão agora, devem ser os governantes que você merece.
Porém não esqueça que no tempo do colonialismo foi onde se viveu melhor.
Tenho vergonha destes conterrâneo de meia tigela. Mentes atrasadas.
Rodolfo Rodrigues
Mais uma vez vivi a minha infância e juventude, vendo e revendo o prédio onde morei. Obrigado pela oportunidade. Lourenço Marques/Moçambique era única. As boas recordações e vivências jamais serão esquecidas.
IPinto
Kanimambo! Enquanto lia, voltei á minha cidade e continuo com ódio a quem nos obrigou a sair da nossa querida terra.
Taya Kin
Obrigada pelas recordações!
Bernardette Serra
Que boas recordações!
Obrigada!
Firmino Fonseca
Os meus agradecimentos a Manuel Terra, por esta reportagem, que nos leva à cidade de Lourenço Marques, onde nasci e cresci.
Obrigado pela partilha!
Maria Manuela Matos
TANTAS MAS TANTAS SAUDADES DA CIDADE ONDE VIVI 30 ANOS DA MINHA VIDA E ONDE FUI MUITO………..FELIZ.
Alfredo da Silva Correia
Velhos e saudosos tempos em que uma imperial era servida com bons camarões na cervejaria imperial. Vivi e investi durante cerca de 15 anos neste saudoso bairro do qual guardo recordações que levarei comigo.
Obrigado por me fazer recordar tão saudosos tempos e espaços.
Augusto Martins
Gostava saber se este Alfredo dá Silva Correia é o meu velho amigo e colega de tropa em Boane e que mais tarde veio a ser funcionário da Alfândega e Economista.
Se assim fôr, agradeço que me ligues para 910 738 568, para podermos falar.
Um grande abraço.
Armindo Matias
Augusto Martins, para o caso de o meu amigo Dr. Alfredo não ter visto a sua mensagem vou enviar-lha por mail para que o seu pedido não fique sem resposta. Cumprimentos
Augusto Martins
Agradeço a sua intervenção.
Felizmente, resultou e já estivemos em contacto telefónico.
Muita saúde e sorte, são os meus desejos.
joao felizardo
Vivi la na av afonso de albuquerque e depois na pinheiro chagas .Apanhava o machibombo para o liceu salazar aonde estudei 7 anos de 1964 a 1971 depois de ter feito a escola primaria na joao belo na malhangalene.
FERNANDO CAPELA
Brilhantes comentários e fotos da nossa maravilhosa LM.Jamais será a mesma,infelizmente.
Luiz Branco
Obrigado pelas recordações.
Sergio Armando Guerra
Recordar o passado nestas imagens da cidade de Lourenço Marques e vive-las com a memoria, num silencio brutal sabendo que agora tudo esta perdido, sinto o odio no meu peito pelos descolonizadores imbecis, antipatriotas e devastadores.
Fernando Abreu Costa
Excelente narrativa que descreve parte da cidade-berço das minhas memórias infantis e juvenis. Falta agora o mesmo trabalho para nos recordar as outras partes de Lourenço Marques.