No Brasil, mas também em Portugal e em Moçambique
“Entrei apressado e com fome no restaurante. Escolhi uma mesa bem afastada, pois queria aproveitar os poucos minutos de que dispunha para comer. Abri meu notebook e levei um susto com aquela voz baixinha atrás de mim:
– Tio, dá um trocado.
– Não tenho, menino.
– Só uma moeda para eu comprar pão.
– Está bem, compro um para você.
Para variar, minha caixa de entradas estava lotada, fico distraído vendo poesias, e dando risadas com as piadas malucas.
– Tio, pode pôr margarina e queijo também?
Percebo que o menino tinha ficado ali.
– Ok, mas depois me deixe trabalhar.
Chega a minha refeição. Faço o pedido do menino e o garçon me pergunta se quero que mande o garoto sair.
Minha consciência me impede de dizer sim. Digo que está tudo bem.
– Deixe-o ficar. Traga pão e mais uma refeição decente para ele.
Então o menino se senta à minha frente e pergunta:
– Tio, o que está fazendo?
– Estou lendo uns e-mails.
– O que são e-mails?
– São mensagens eletrónicas mandadas por pessoas via internet, é como se fosse uma carta, só que via internet.
– Tio, você tem internet?
– Tenho sim, é essencial no mundo de hoje.
– O que é internet?
– É um local no computador onde podemos ver e ouvir muitas coisas, notícias, músicas, ler, escrever, sonhar, trabalhar, aprender. Tem tudo no mundo virtual.
– O que é virtual, tio?
Dou uma explicação simples, certo de que ele pouco vai entender, e vou poder comer sem culpas:
– Virtual é um local que imaginamos algo que não podemos pegar, tocar. É lá que criamos um monte de coisas que gostaríamos de fazer, criamos nossas fantasias, transformamos o mundo em quase como queríamos que fosse.
– Legal isso, gostei.
– Mocinho, você entendeu o que é virtual?
– Sim tio, eu também vivo neste mundo virtual.
– Você tem computador?
– Não, mas meu mundo também é desse jeito. Minha mãe fica todo dia fora, só chega muito tarde, quase não a vejo. Eu fico cuidando do meu irmão pequeno que vive chorando de fome, e eu dou água para ele pensar que é sopa.
Minha irmã mais velha sai todo dia, diz que vai vender o corpo, mas não entendo, ela sempre volta com o corpo dela.
Meu pai está na cadeia há muito tempo, mas sempre imagino nossa família toda junta em casa, muita comida, muitos brinquedos de Natal e eu indo para a escola para virar médico um dia. Isso não é virtual, tio?
Fechei meu notebook, não antes que as lágrimas viessem aos olhos.
Esperei que o menino terminasse de literalmente “devorar” o prato dele, paguei a conta e dei o troco para o garoto, que me retribuiu com um dos mais belos e sincero sorriso que eu já recebi na vida, e com um “brigado tio, você é legal”.
Ali naquele instante, tive a maior prova do virtualíssimo insensato em que vivemos todos os dias, enquanto a realidade cruel rodeia de verdade, e fazemos de conta que não percebemos.
Vamos sair do virtual e ter ações e atitudes concretas. Participar da vida dos nossos irmãos, da nossa Comunidade e da nossa Família.”
Mais palavras, para quê? O texto é tão claro e tão poderoso na mensagem que transmite, que me parece melhor deixá-lo à sensibilidade de cada leitor e de cada leitora.
De minha lavra, escrevi um texto em que por acaso utilizei as palavras virtual e menino, texto esse (Natais Virtuais Em Lourenço Marques) que BigSlam publicou em Janeiro último.
Nem por acaso, chegou-me agora às mãos o texto que acima acabei de transcrever, com a vénia que é devida. Ao lê-lo, fiquei de tal modo impressionado, que não poderia deixar de compartilhá-lo com os(as) leitores(as) de BigSlam.
Pierre Vilbró, Fevereiro de 2025
3 Comentários
Orlando Valente
Caro Pierre, como sempre os seus textos prendem a atencao de quem os le, escritos com “calor humano”, com sensibilidades que vibram em nos, que muito nos diz e que nos poe por vezes a uma pequena reflexao, que nos embalam de tal forma, que nos da a sensacao de sermos os protagoinistas da narrativa em questao.
Voltando ao assunto, este mundo e um mundo de provas e expiacoes. Nao se comprende que dois seres humanos, um nasce “RICO” e o outro nasce “POBRE”… ambos vieram com as suas missoes a serem cumpridas, ambos com as suas responsabilidades… o rico com a riqueza, o pobre com a pobreza. Ambos nasceram sem nada, ambos morrerao e nada consigo levam. Uns vivem luxuosamente, bons palacetes, carros de ultimo modelo, lindas mulheres que os rodeias, avioes particulares, etc.etc…. outros como o Pierre descreve, na pobreza… mas, o que podera acontecer, essa pobreza os atinge exteriormente… porque interiormente podem ser ricos com a proteccao DIVINA… BEM DIZIA JESUS ” BEM AVENTURADO OS QUE SOFREM”…
caro Pierre, muito mais gostaria de escrever sobre o assunto em causa… e a esses pobrezinhos ao darmos uma esmola, quantas e quantas vezes escutamos quando eles nos agradecem e nos murmuram algo que lhes sai da alma “QUE DEUS OS ABENCOE”… e ou ouvirmos tao baixinho esse murmurio, sentimo-nos tranquilos pelo nosso dever cumprido…
Um abraco
Orlando Valente
Manuel Martins Terra
Caro Pierre, o texto ilustra de forma clara a pobreza infantil que prolifera no mundo, sendo que o Brasil e as nossas ex-colónias são um caso flagrante. Geralmente, expressões como tio e padrinho, são ouvidas com frequência em Angola e Moçambique, por parte dos portugueses, os que lá vivem e os que para lá passam em negócios ou de férias. Por regra, procuram criar um clima de empatia quase sempre justificada, com a esperança de conseguirem uma moedas que lhe permitam aconchegar o estômago e comprar peças de vestuário. Infelizmente, são factos quotidianos de muitos países deste universo, que nos chocam , para além de as crianças não terem acesso à educação, saúde e proteção social. Países, com tantos recursos como Brasil, Angola e Moçambique, deveriam combater este flagelo social, só que as teias da corrupção e compadrio dificultam a superação da pobreza e sendo assim as crianças continuarão a chorarem com fome e a estenderem a mão à caridade. Como tu dizes, Pierre, mais palavras para quê. Um abraço.
Luis Russell Vieira
Lembro-me sempre do que o meu amigo de 12 anos de idade como eu, o Julinho, depois de comermos mandioca, que a mãe dele preparava no pilão e no fogareiro, me disse, com os olhos razos de água, à porta da sua palhota, com a roupinha e as sapatilhas que eu lhe tinha dado: “Manduquinha, não vai embora…” Eu não respondi nem chorei. Fui obrigado a ir-me embora. O choro e a dor continuam. Não sei do Julinho e ele não sabe de mim… Quantos como nós haverá por esse mundo? Por que é que nós, seres humanos, precisamos de ser gananciosos, temos de andar sempre à bulha uns contra os outros, a fazer maldades e a provocar sofrimento em crianças e não só? Vou morrer sem compreender…