O TEMPO, DE TEMPO SEM TEMPO E COM TEMPO
Aquele era um tempo em que o tempo tinha tempo e não tinha. Era o tempo dos jovens, principalmente de um grupo muito vasto de miúdos a que eu pertenci. O dos adultos, era outro tempo, feito de outros tempos que compreendiam outras preocupações, motivações, desígnios e ambições.
Esse tempo, o nosso – desse grupo de miúdos -, era um tempo sem tempo para stress, para urgências, para pensamentos muito pensantes, calculistas, preocupantes, para vilanias e traições, os quais não cabiam nesse tempo, nele não era guardado cabimento.
Também era um tempo com muito tempo para as obrigações e para a liberdade. Obrigações com a escola, a casa/família, os costumes e as tradições. Liberdade para as brincadeiras (quando incluíam objectos, nós é que os fabricávamos com arames, caniço, latas vazias de graxa para sapatos, ramos de árvores, tiras de borracha cortadas de câmaras de ar, tábuas de madeira, pregos, rolamentos, aros de bicicletas, etc.);
para vadiagem no nosso bairro de residência e nos vizinhos, não nos assustando nem cansando as distâncias; para correrias no chão e nas árvores, mergulhando de ramo para ramo, saltando de árvore para árvore; para futeboladas de pés descalços, jogos sem árbitro e sem tempo marcado, mudava-se de campo aos dois e ganhava-se aos quatro, saiam os que perdiam e entravam os outros, outros e mais outros, quantas vezes desde a altura em que o dia se compunha, até ao momento em que o sol se punha;
para caça aos pássaros, com fisgas ou com nembu (palavra em dialecto ronga que significa cola, em goma, resultante da viscosidade de certas plantas e frutos);
para jogar ao paulito, ao berlinde, às damas (o tabuleiro era uma folha de cartão sobre o qual traçávamos e pintávamos as casas, e as pedras eram tampas de refrigerantes e de cerveja);
para assar castanhas de caju, cujo tabuleiro de assadura nós fazíamos com chapas de zinco, furando-os e dobrando os lados para que as castanhas não caíssem; etc., etc.
Era um tempo de autenticidade, de ingenuidade, de pureza, de amizade, de companheirismo e de solidariedade. Esse tempo, passou. Teve o seu tempo, acabou. O tempo levou-o. Todo esse tempo foi, e assim foi, o tempo da minha juventude.
Terminado esse tempo, ficou a selva, em que as feras e os caçados não são quadrúpedes, mas bípedes. Os predadores, caçam na sua savana feita de ministérios, repartições, partidos políticos, instituições, empresas públicas e privadas, grupos económicos e financeiros, multinacionais, organizações e corporações, sociedades secretas. As presas, são os cidadãos desprotegidos, inocentes, incautos, ingénuos, de boa fé, sérios. Passou a ser o tempo dos espertos, dos oportunistas, dos corruptos, do compadrio, do clientelismo, da intriga, da traição, do enriquecimento a qualquer preço, da exploração, da falta de ética, da vaidade, do exibicionismo, do antes parecer do que ser. Passou a ser, e está sendo, o meu tempo de adulto.
Não se infira, no entanto, de tudo o que ficou escrito, que os jovens daquele tempo eram todos anjos, e que os adultos do tempo de agora são todos diabos. Nada disso. Felizmente, em tudo e em todos há excepções, e as excepções boas estão do lado da grande maioria. É o que nos vai valendo.
E esse tempo que foi o dos jovens a que eu pertenci, também era um tempo de dificuldades, carências, injustiças e problemas. Tudo isso gravitava à volta do nosso mundo mágico, de um modo ou de outro éramos afectados por eles, embora deles nós não tivéssemos conhecimento, pois a nossa idade não no-lo permitia.
Afinal, era um tempo de todos os tempos. Do tempo que já foi, do tempo que está sendo, e do tempo que virá. Assim foi, assim é, e assim será. Sempre coexistindo no mesmo tempo, o tempo do bom e o tempo do mau. Portanto, que todos os homens e mulheres do tempo do bom façam tudo o que é legítimo e legal fazer-se, para que em lado algum desta nossa casa comum haja homens e mulheres do tempo do mau.
Mas esse tempo, de tempo sem tempo e com tempo, que foi o da minha juventude, passou no tempo, mas não morreu em mim.
Deixou-me muito dele, e sem ele eu não seria eu. Manteria o nome, a idade, a filiação, a naturalidade, a nacionalidade, etc., mas não seria a mesma pessoa. Por isso, eu o alimento, embora me digam que “o que passou, passou”, “invocar a pobreza e a tristeza, alimenta-as”, “agora é outro tempo”, etc., e pretendo teimar em continuar a ser o que fui e o que sou, pese embora os prós e os contras. Em respeito por mim e por orgulho em mim próprio – perdoe-se-me o atrevimento e eventual imodéstia.
Pierre Vilbró
3 Comentários
Pierre Vilbró
A todos agradeço o interesse e a simpatia, que os comentários atestam. Também agradeço o interesse pela simples leitura.
Pierre Vilbró
Alexandre Franco:
Autorizo a utilização do texto nos termos por ti referidos, desde que sejam mantidas a identificação do autor do mesmo e da fonte donde ele é extraído. E também que seja salvaguardada alguma objecção que o BigSlam tenha por bem invocar. Para este efeito, peço-te o favor de auscultar o Samuel de Carvalho.
Um abraço.
Pierre Vilbró
Alexandre Franco
Simplesmente brilhante e realista. Parabéns Pierre. Eu julgo que andámos juntos na escola. Como eu gostava de ter sido aquele miúdo e de ter aprendido contigo. Tudo bem. Aprendo agora. Mais vale tarde do que nunca.
Será que posso publicar este fabuloso artigo no meu jornal?
Por favor diz-me qualquer coisa.
Um abraço.
Alexandre Franco