OS SÓIS DA MAFALALA
- Narrador (ficcionado): Um qualquer mufana (menino) da Mafalala, de e em qualquer tempo.
Na Mafalala, todos os dias víamos aquele Astro, o sentíamos e com ele convivíamos. Ele era um dos nossos.
Aquele Astro era único. Só podia ser. Porque ele era, e é, Rei. Um grande Rei. Rico, poderoso e generoso.
Rico, porque só se vestia de ouro, aparecia sempre todo de amarelo, tão intenso que quase cegava. Poderoso, porque a Terra e os seus donos, poderosos também, ditadores, gulosos e injustos, não ousavam desafiá-lo. Duvido que algum dia o façam. Porque eles são inteligentes e espertos. Sabem que no dia em que o fizerem, será o seu fim e o da Terra. Generoso, porque apesar de tudo o que vinha e vem assistindo na Terra (guerras, invasões, prisões arbitrárias, torturas, assassinatos, opressões, atentados à liberdade e à dignidade humanas, etc., não abandonava a Terra, continuando a conceder-lhe, ano após ano, a sua luz, o seu calor, o seu conforto, base para a vida na Terra.
Fazia questão de todos os anos ir à Mafalala. Fazia-o duas vezes por ano, através de dois enviados: o Sol de Verão e o Sol de Inverno. Por causa do movimento de translação da Terra, ora enviava um, ora enviava outro. Alternância que mantinha constante, ano após ano. A relevância da presença na Mafalala daqueles enviados do grande Astro, o rei Sol, verificava-se de Novembro a Fevereiro e de Maio a Agosto.
O Sol de Verão era quente e ardia.
O de Inverno era ameno e aquecia. O primeiro, sufocava, tornava o ambiente húmido e convivia com a chuva. O segundo, aquecia os dias frescos, principalmente as manhãs frias, e aparecia na época do cacimbo. Do enviado de Verão, muitas vezes fugíamos para as sombras, mas dele não prescindíamos. O enviado de Inverno, sempre o procurávamos.
Fugíamos, mas a fugida nunca era completa. Fugíamos, procurando as sombras amigas dos cajueiros, das mangueiras, dos canhoeiros, das mafurreiras, dos quintais de caniço e dos alpendres de zinco. Mas aquele enviado do grande Rei estava sempre presente, rodeando totalmente as sombras, à nossa espera, para nos escaldar mal as abandonássemos. Sombras sombrosas, gostosas, atenuantes do calor, refrescantes. Nessas sombras assávamos, partíamos e comíamos castanha de cajú, jogávamos às cartas e ao loto, em que os prémios eram castanhas de cajú por assar ou berlindes. Raramente dinheiro. Quando o era, a quinhenta era o valor de cada aposta.
O abandono das frondosas sombras por vezes tornava-se um suplício. Nos dias de maior canícula, queimávamos os pés descalços quando nos deslocávamos sobre a areia escaldante. Porque andávamos sempre descalços. Calçados, só para ir à escola e para uma ou outra saída. Mas calçados, só uma minoria. A maioria, para a escola (do Bairro Indígena, de Anwaril Issilamo, da Missão da Munhuana, da Missão do Chamanculo) e para as saídas, sempre descalços. Com sacrifício, sabe Deus quanto, os nossos pais calçavam-nos barato: sapatos faz de conta, sapatilhas, chinelos de borracha. Porque a compra tinha que ser barata, a maioria das vezes a escolha recaía nos xitólós (lojas, cantinas) dos monhés (indianos) e dos chineses. De tão barato, “made in Macau”, a sua duração era efémera. Ao invés (os sapatos) de pele e solas em borracha, eram imitações mais ou menos bem feitas: material sintético ou plástico e solas que, de tão macias, pareciam “mousse.”. Como tal, eram céleres a desfazerem-se. Mesmo assim, os mufanas (meninos) gingavam (exibiam-se) sempre.
Na época do cacimbo era ao contrário. Em vez da fugida, queríamos estar sempre com o Sol de Inverno.
De manhã, quando deixávamos as nossas casas (de zinco e/ou de caniço) para a brincadeira e para a vadiagem, e enquanto não chegavam os amigos todos, procurávamos os muros dos quintais e as paredes das casas, orientadas a Nascente, viradas ao Sol. A maioria, a grande maioria, muros e paredes em caniço. A estes nos encostávamos, virados para o enviado do rei Sol, mãos nos bolsos (quando havia) ou mãos esfregadas uma na outra, e recebendo em cheio e com gosto a generosidade dos seus raios solares, nos íamos aquecendo naquelas manhãs frias. Assim íamos fazendo a nossa qualidade de vida.
Este enviado Sol de Inverno, comparado com o seu colega Sol de Verão, era mais discreto, apresentava-se sempre mais suave, mais meigo, nada violento, nada agressivo. Comportamentos diferentes, fruto de personalidades diferentes. Ao início das manhãs, e enquanto os raios solares não faziam sentir o seu conforto, os nossos pés descalços sofriam com o estado da areia e do capim, arrefecidos e humedecidos com o frio e o cacimbo da noite. A meio da manhã, ultrapassados estes desconfortos, e reunida que estava toda a malta, partíamos para as brincadeiras, onde éramos de facto competentes e polivalentes.
Entre elas, as futeboladas, de pés descalços,
nos areais descampados, nos passeios da Av. de Angola, ou no ringue da Escola da Munhuana. Umas vezes, equipes formadas por malta conhecida entre si e, outras, de formação “ad-hoc”. Havia sempre mufanas que iam aparecendo.
E era assim que na Mafalala, nós, mufanas molwenis (meninos de rua), a grande maioria negros, em menor número mulatos, um ou outro branco e mestiço, católicos, protestantes, macuas e muçulmanos, príncipes dos areais escaldantes, das sombras dos cajueiros, mangueiras, mafurreiras e canhoeiros, dos muros e paredes de caniço, dos areais e capim humedecidos pelo cacimbo, todos os anos, ano após ano, estação atrás de estação, enfrentávamos e convivíamos com os enviados do grande Rei, o grandioso e poderoso astro Sol.
O seu poder e autoridade impunham-se e exercia-se naturalmente. Sem ditadura, sem opressão, sem polícias, sem censura, sem Grupos Controladores. E com toda a naturalidade nós reconhecíamos e aceitávamos aquele Chefe Supremo, ficámos a gostar dele e a respeitá-lo. Mesmo.
Pierre Vilbró – Outubro de 2018
3 Comentários
Rui Gouvêa
Que mais poderei dizer. Obrigado.
Pierre Vilbró
A todos agradeço a atenção e o interesse que os comentários parecem reflectir. A todos os restantes também agradeço o interesse pela simples leitura.
Manuel Martins Terra
Uma bela história contada por quem conhecia certamente o Bairro da Mafalala, onde as suas gentes e a natureza se uniam como de um só corpo se tratasse. O sol africano, era como diz o Pierre Vilbró, poderoso mas muito generoso. Vivi na Munhuana e era vizinho da Mafalala. Quando refere o ringue da Missão da Munhuana, recordo aquelas “peladinhas” sobre o piso de cimento, que me obrigavam a chegar tarde à catequese. Parabéns pela sua excelente escrita, uma forma de observar a vivência dos meninos de ontem, homens de hoje.