Revivendo o Passado em Cafés de Lourenço Marques
Deixei a minha terra natal (Lourenço Marques) há quarenta e nove anos, com trinta anos de idade e de vivência ininterrupta, e sem nunca lá ter voltado. Apesar desta partida de sentido único, sem retorno, sempre lá tenho ido. Não regresso físico, mas mental. Várias vezes a memória para lá me tem levado, a recuo no tempo, fazendo-me reviver retalhos do que foi a minha existência no chão que me deu vida.
Desses retalhos têm cabimento alguns dos cafés da minha cidade natal, capital de Moçambique, cafés que eram muito mais que locais para beber (café, cerveja, refrigerantes, leite quente achocolatado, “milk shakes”) e comer (torradas, sandes, bolos). Eram também locais de encontros, convívio, tertúlia, leitura, escrita e estudo.
Para mim, foram tudo isso, mas principalmente de estudo. Neles, fundamentalmente no Nicola,

O Café Nicola à esquerda na Praça 7 de Março.

Anúncio do Nicola na Revista Turismo, Janeiro-Março de 1959.
no Djambu,

Café Djambu, por baixo do Hotel Tivoli, na esquina da Av. da República com a Av. Augusto Castilho.
no Scala,

O Scala no início dos anos 70. Ao fundo, vê-se o Prédio 33 Andares em construção.
no Manuel Rodrigues, e no Suiça,

A Pastelaria Suíça no Alto-Maé, junto da Casa Fabião.
a minha frequência foi assídua nos últimos quatro anos da minha vida estudantil, culminando com a formatura académica. Umas vezes, sozinho, e, outras (a maioria), em grupo (de que fazia parte o Aurélio Vaz que foi basquetista do Desportivo e da Académica). À noite aí nos juntávamos e, também de dia, nas férias para os exames de fim de período, semestrais. Foram tempos de esforço, sacrifício e persistência. Mas compensou, e é impossível de esquecer.
Porque naquele tempo em Moçambique não havia televisão, e porque o clima convidava, as pessoas saíam de casa para passear e para socializar, e os cafés prestavam o seu contributo. Por isso, foi com tristeza que em Portugal comecei a constatar a transformação dos cafés e o desaparecimento do encontro das pessoas para encontros sem pressa.
Para ilustrar ou reforçar o fascínio do ambiente dos cafés daquele tempo, retirei das redes sociais um texto que achei maravilhoso, uma autêntica prosa poética (como eu tanto aprecio), cuja autoria desconheço, e que passo a transcrever com a vénia devida:
“Meu nome é Ernesto Barros. Tenho 85 anos.
E fui o último cliente do Café Aurora.
Mas esta história… não termina aí.
Durante décadas, todas as manhãs — religiosamente às 7h — eu ocupava a mesma mesa: a da janela, de onde dava pra ver a cidade acordando. Primeiro, ao lado de Marta, minha esposa. Depois, cercado pelos meus amigos. E por fim… sozinho.
Marta partiu há dez anos. Levaram-na as mãos do tempo — mas me deixaram o silêncio. Mesmo assim, eu continuava indo. Porque certas ausências só doem menos onde a memória ainda respira.
O Café Aurora não era só um café. Era refúgio, era ritual, era lar. Lá, o garçom já sabia meu pedido antes que eu abrisse a boca (café forte, sem açúcar). O dono só me olhava, e era como se dissesse: “bom dia, guerreiro”.
Foi nesse mesmo lugar que encontrei minha segunda família:
Raul, que era piada pronta e poesia engavetada. Gustavo, astronauta de histórias improváveis — meio ficção, meio saudade. E Arminda, a única capaz de calar três homens teimosos com um simples levantar de sobrancelha.
Éramos os “Cinco do Aurora” — um clube de sobreviventes e sonhadores.
A vida, porém, tem um talento cruel para desfazer encontros.
Marta foi a primeira. Depois, Raul — que nos deixou com um bilhete no bolso dizendo: “foi engraçado enquanto durou”. Gustavo partiu em silêncio, levando com ele todas as constelações de suas mentiras encantadoras. Arminda segurou minha mão no último outono e disse:
— Você vai ser o último. Porque alguém precisa manter o riso aceso por mais um tempo.
E eu fiquei. Por lealdade. Por teimosia. Por amor. Mesmo quando tudo ao redor mudou: o bairro perdeu o charme, os cafés viraram franquias sem alma, e os jovens andavam de fones nos ouvidos, surdos às histórias que os cercavam.
Até que, numa manhã qualquer, o dono do Aurora se aproximou com os olhos baixos:
— Ernesto… vamos fechar. Não dá mais.
Sorri com dignidade. E menti:
— Eu entendo.
Mas aquela noite… aquela noite me apertou o peito.
Sentei na poltrona onde Marta costumava bordar e o silêncio me engoliu. Foi então que algo virou dentro de mim.
E se eu não aceitasse o fim? E se, em vez de esperar que o mundo me esquecesse, eu lembrasse a ele o quanto ainda pode sentir?
No dia seguinte, chamei o filho do dono — um rapaz tímido, que carregava o cansaço do pai nos ombros.
— Quero comprar o Aurora — eu disse.
Ele riu. Achou que era piada.
— Estou falando sério. Mas não quero mudar nada. Só manter vivo o que ainda pulsa aqui dentro.
Três semanas depois, o Café Aurora renasceu. Com uma nova placa, um novo propósito, mas a mesma alma. Agora abrimos só pela manhã, como sempre foi.
Mas há rodas de leitura. Saraus. Conversas entre gerações. Os velhos voltaram a contar histórias. Os jovens, a ouvir.
E o aroma do café — ainda forte e sem açúcar — voltou a misturar-se com o cheiro da memória. Minha mesa continua ali, de frente para a esquina da vida. Só que agora, nunca está vazia.
Nas quartas, conto histórias: minhas, de Marta, de Raul, de Gustavo, de Arminda.
Outras eu invento só pra ver os olhos dos netos dos vizinhos brilharem.
Não deixei fortuna. Não tenho terras nem medalhas. Mas deixei uma coisa que vale mais que isso:
Um lugar onde a memória tem endereço. Onde a saudade tem cadeira cativa. Onde o tempo ainda tem sabor.
E às vezes, quando o sol entra pela vidraça e ilumina a mesa da janela, juro que vejo Marta ali. De vestido florido. Sorrindo no reflexo.
Como quem sussurra:
— Agora sim, Ernesto. Agora você está vivo outra vez.”
Fim da transcrição.
Pierre Vilbró – Julho 2025
8 Comentários
José Augusto Salta Moreira
Eu, que só estive alguns dias de férias em L.M. mas tive oportunidade de passar por alguns destes cafés, imagino a saudade e a tristeza de todos aqueles que lá conviveram longamente com os amigos, em tertúlias bem ao gosto dos portugueses. Restam as lembranças, mas como elas pesam…
Manuel Martins Terra
Caro amigo Vilbró, recordo com muita saudade os cafés aqui mencionados,pontos de encontro por excelência onde criamos muitas amizades com especial realce do período estudantil, e mais tarde dos nossos amigos de bairros e de colegas de trabalho. Os funcionários dos cafés também desempenharam um papel muito importante no contexto da amizade e respeito que sempre nos mereceram, assim como os seus proprietários. Já no período após a Independência, passei a frequentar com mais regularidade, a Pastelaria Chilena, no Bairro da Malanga e muito próximo do Cinema S. Miguel, onde se falava ou pouco de tudo, e se iam sabendo notícias dos que já tinham parido e se atualizava o momento delicado que a nossa cidade começava atravessar. Não esqueço o Caf6 Cortiço, onde alinhavamos as ideias sobre a matéria, do teste que dentro de minutos nos esperava na vizinha Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque. A despedida dos amigos que ainfa ficaram, foi no Djambo , com umas Laurentinas bem frescas. Depois foi o regresso, e o vento só não levou as recordações. Um grande abraço,.
Luciano Rodrigues
Frequentava apesar de jovem, muito jovem, o Scala, Continental, com o enfernmeiro Bravo o Djambo, a Pigalle e as suas panquecas com coca -cola, e a Pasteleraria Princesa com os seus pregos em pão soculentos, a mesma e ainda coca-cola, e o seu pão e bolos no lado da pastelaria, isto porque morava muito perto, para quem conhceua Florista Magnólia morei por cima no 3º andar do 325, que h.oje tem na varanda um aparelho de ar condicionado pregado na parede por cima da janela.E ainda tenho saudade do bar da piscina do velhos Colonos que depois dos treinos da natação com o Dr. Matos, se bebia a mesma coca-cola e se comiam os famosos cocos. Quem se lembra sabe o que é.
Jose
Pigalle, Princesa, Safari, Cristal, ………
2luisbatalau@gmail.com
CHOANE! SIM, FREQUENTEI ALGUNS DOS CAFÉS MENCIONADOS. PATELARIA SUIÇA, SCALA, E OUTROS COMO O TICOTICO, , O PIGALLE, O CONTINENTAL E A PRINCESA. UMA VIAJEM AO PASSADO E COM MUITAS SAUDADES. KANIKAMBO!
ABRAÇO
LUIS BATALAU
Ricardo Quintino
Faltou aqui a imagem do Café Pigalle, onde me reunia diariamente com amigos e colegas da empresa onde trabalhava a SONAP MOÇ. Alguns infelizmente já partiram, mas ficou a saudade dos velhos bons tempos.
Samuel Carvalho
Excelente viagem ao passado! Estes cafés de Lourenço Marques marcaram gerações e continuam vivos na memória de todos nós. Obrigado Pierre Vilbró por mais este belo retrato!
BigSlam
Memórias que sabem a café e amizade. Belo retrato de outros tempos!