Sebastião Salgado: Fotógrafo do Preto e do Branco, e do Contraluz
Eu escrevo com a máquina fotográfica, é a língua que escolhi para me exprimir.”
Essas palavras foram ditas por Sebastião Salgado sobre ele próprio.
Licenciado em economia e, na altura, a trabalhar em organismos internacionais, decidiu largar a sua profissão de formação para dar satisfação a um impulso interior: passar a fazer o que sentia que gostava e que achava ter vocação natural, percorrendo o seu país e o mundo, dando testemunho (registando com a sua máquina fotográfica) do que ia vendo, sempre com arte, sensibilidade, humanismo e sentido crítico.
Passou assim a olhar, a sentir, a interpretar e a registar a condição humana e o meio ambiente, muitas vezes os dois casos em comunhão absoluta. Tudo registado a preto e branco, tantas vezes a contra-luz, resultando vida, realismo, sentimento e mensagens fortes nas suas fotos.
Sebastião Salgado não era português nem moçambicano, mas brasileiro, nem nunca vivera nos dois países. Mas então porquê este meu escrito? Pelas razões descritas nos dois parágrafos anteriores, que se ajustariam a um português e a um moçambicano, e que se aplicariam a Portugal e a Moçambique.
Para mim, o nome Sebastião Salgado era desconhecido. A primeira vez que o conheci (o nome, e também a personagem e a sua obra) creio que foi através da leitura dum semanário português, não estando certo se da sua revista. Posteriormente, foi no visionamento dum documentário televisivo. Nos dois casos fiquei a admirá-lo e à sua obra.
Faleceu há pouco tempo, em Paris, aos 81 anos de idade, com malária contraída na Indonésia. Era reconhecido mundialmente, e foi premiado no seu país e no estrangeiro.
O poeta Fabrício Carpinejar escreveu a seguinte crónica em homenagem ao fotógrafo:
“OLHOS PESADOS DE LÁGRIMAS
Os olhos azuis oceânicos, debaixo de tufos de sobrancelhas grisalhas, quase ruivas, caracterizavam a lente humana mais majestosa e universal que já existiu na fotografia mundial.
O mineiro de Aimorés, Sebastião Salgado, fez o mundo piscar de modo distinto depois de suas pálpebras.
Ele se despede, aos 81 anos, com um trabalho documental que conseguiu a proeza de ser, ao mesmo tempo, transgressor e clássico.
Trouxe à fotografia o projeto coletivo dos murais de Candido Portinari.
Na essência, era um Caravaggio da gelatina de prata, do papel fotográfico, mestre do claro-escuro, instaurando o barroco na captação crua das cenas.
Assim como em Caravaggio, a luz recai sobre os invisíveis — os pobres, os errantes, os exilados, os esquecidos — com uma expressividade humanista e dramática.
Sua única professora foi a realidade, com seus contrastes e exuberâncias, suas misérias e rostos impregnados de compaixão. Formado em Economia, mas autodidata na arte, começou a fotografar em 1973, aos quase 30 anos, misturando-se em unha e carne aos seus fotografados.
Seu olhar não era de fora, mas de dentro. Não agia como um observador distante, neutro, que clica e desaparece. Daí a explicação para seus registros íntimos, como se fossem autorretratos dos excluídos. Sua aflição existencial tornou-se sua estética. Não explorava o outro, adaptava-se à convivência, fundia-se ao outro. Não se resumia a um fantasma entre os vivos, era um vivo que mandava notícias do reino dos fantasmas da sociedade.
Abordou as migrações, as profundas desigualdades financeiras, a dizimação dos povos originários, a devastação das florestas, o colapso climático, a escalada desenfreada do consumo e do processo industrial.
— Nunca chego de surpresa ou incógnito a um grupo, sempre me apresento. Depois me dirijo às pessoas, explico, converso, e aos poucos nos conhecemos — assim explicou sua abordagem.
Não procurava apontar as diferenças folclóricas entre as mais remotas culturas, mas identificar o que havia de comum entre todas elas: a dignidade apesar da desolação.
Ele converteu as cores gritantes e insuportáveis da dor na suavidade bíblica do preto e branco. Denunciou o apocalipse e a extinção da nossa espécie pela ganância e soberba.
Suas imagens já integram o nosso inconsciente coletivo: o verdadeiro formigueiro humano da mina de ouro de Serra Pelada, no Estado do Pará (Curionópolis); os três jovens trabalhadores rurais com as faces escurecidas de lama; os pescadores de atum na região da Sicília com as cestas vazias na cabeça; os garimpeiros nas minas de enxofre da Indonésia; os refugiados de origem africana acampados em condições precárias; três crianças órfãs e desnutridas em um campo de refugiados em Ruanda, durante o genocídio de 1994, sob uma coberta comum, apenas com parte dos traços à mostra; indígenas em canoas deslizando por um rio envolto em neblina, no Alto Xingu; e a menina de cinco anos, com a pele suja e o olhar desesperançado, ao lado dos pais, durante uma peregrinação pelo interior do Paraná em busca de um lote de terra, às margens da rodovia entre Laranjeiras do Sul e Chopinzinho.
Salgado passou por três das mais prestigiadas agências internacionais: Sygma, Gamma e Magnum.
Herdeiro de Robert Capa, Henri Cartier-Bresson, David Seymour e George Rodger, pela Magnum flagrou a tentativa de assassinato a tiros do então presidente dos EUA, Ronald Reagan, em 1981.
Recebeu os principais prêmios da fotografia mundial, como o Eugene Smith de Fotografia Humanitária, dois prêmios ICP Infinity de Jornalismo, o Prémio Erna e Victor Hasselblad e o prémio de melhor livro de fotografia do ano do Festival Internacional de Arles por Workers (Trabalhadores).
Seu olhar não era de fora, mas de dentro. Não agia como um observador distante, que clica e desaparece. Daí a explicação para seus registros íntimos, como se fossem autorretratos dos excluídos. Sua aflição existencial tornou-se sua estética. Não explorava o outro, fundia-se ao outro. Não se resumia a um fantasma entre os vivos, e sim a um vivo que mandava notícias do reino dos fantasmas da sociedade.
Abordou as migrações, a dizimação dos povos originários, a devastação das florestas, o colapso climático, a escalada desenfreada do processo industrial.
Não procurava apontar as diferenças folclóricas entre as mais remotas culturas, mas identificar o que havia de comum entre todas elas: a dignidade apesar da desolação.
Ele converteu as cores gritantes da dor na suavidade bíblica do preto e branco. Denunciou o apocalipse e a extinção da nossa espécie pela ganância.
Percorreu mais de 130 países, criando exposições e livros que marcaram a história: Trabalhadores, Gênesis e Êxodos.
Deixa para nós os seus olhos pesados de lágrimas. Sangue de nosso sangue, águas de nossas águas.”
Também Júlio Bessa Vintém, escreveu:
“MORREU SEBASTIÃO SALGADO, UM FOTÓGRAFO ENTRE O PARAÍSO E O INFERNO
Sebastião Salgado morreu aos 81 anos, em Paris. Um fotógrafo ex-economista que não se cingiu ao retrato das pessoas e da natureza e tratou de transformar o mundo.
«Eu fotografei o que foi interessante para mim, o que me deu um grande prazer, que me deu uma grande revolta. [Fotografei] o que era inteiramente compatível com a minha maneira de pensar, com o meu código ético», explicou Sebastião Salgado, no programa de entrevistas Roda Vida, em 2013. Ao longo de uma carreira de mais de 50 anos, o fotógrafo viveu entre «momentos dramáticos, momentos difíceis» e «momentos de grande prazer».
Mas ao contrário do que se poderia antever, o seu projecto Trabalho, uma Arqueologia da Era Industrial, que retrata a vida dura, pesada, muitas vezes infernal, dos trabalhadores manuais na viragem do século, mesmo nas vésperas de uma transformação tecnológica de práticas e indústrias, não foi, para Sebastião Salgado, um desses momentos dramáticos.
«Fotografar as pessoas que trabalham é uma maravilha. As pessoas têm um grande orgulho no trabalho que fazem (…) Quando eu fiz um trabalho com o Movimento Sem-Terra, aqui no Brasil, eu tive um grande prazer por trabalhar com pessoal que acabava de conquistar a Terra, que começava a viver de uma outra maneira, com uma grande dignidade».

Mina de Ouro Serra Pelada, Brasil (1986), tirada durante seu projeto ‘Trabalhadores’ — Foto: Divulgação / Sebastião Salgado
Terra, um trabalho sobre os trabalhadores rurais sem-terra do Brasil, contou com a participação de José Saramago (autor do prefácio) e de Chico Buarque (que lançou, em simultâneo, um CD com o mesmo nome). Os direitos foram integralmente oferecidos por Salgado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).
Foi o principal fio narrativo do seu trabalho. Um pouco por todo o mundo, Salgado acompanhou o processo de «globalização», de deslocação da população do campo para a cidade, de movimentos de refugiados e de trabalhadores que «procuravam uma vida mais digna» (que retratou no projecto Êxodos e Retratos de Crianças do Êxodo).
Salgado fotografou, em 1975, o Processo Revolucionário em Curso (PREC) em Portugal, tendo exposto, em 1996, o projecto Trabalho na Festa do Avante!, que contou com a presença do autor na Quinta da Atalaia.
Em Gênesis, publicado em 2013, um dos seus últimos trabalhos, Salgado apresenta, nesta sua história da humanidade, a perspectiva ambiental. No fundo, «o lado do Planeta». A sua preocupação com a defesa do Ambiente levou-o a fundar o Instituto Terra, em 1998, que reflorestou a Fazenda Bulcão, no Estado de Minas Gerais. Sebastião Salgado «semeou esperança onde havia devastação e fez florescer a ideia de que a restauração ambiental é também um gesto profundo de amor pela humanidade», refere a nota do instituto que dá conta do falecimento do seu fundador.
Desde então, mais de 2 milhões de árvores foram plantadas nos 709 hectares da Fazenda, 608 dos quais são hoje considerados Reserva Particular do Património Natural (RPPN). Os viveiros do Instituto Terra são usados para desenvolver projectos similares em vários outros pontos de Minas Gerais e do Brasil.
Sebastião Salgado morreu aos 81 anos, em Paris.
«Salgado não usava apenas seus olhos e sua máquina para retratar as pessoas: usava também a plenitude de sua alma e de seu coração», afirmou Lula da Silva, Presidente do Brasil
A sua ligação aos sujeitos que retratava nas suas fotografias revelou-se nas palavras de mágoa e reconhecimento partilhadas pelos movimentos que apoiou e representou, de entre os quais se notabiliza o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).
«O fotógrafo manteve uma relação de solidariedade e apoio com o MST, reconhecendo no movimento uma das mais legítimas expressões da luta por justiça social no Brasil», refere nota divulgada hoje pelo movimento responsável pela ocupação de terrenos não-produtivos e a sua auto-gestão. Sebastião Salgado foi ainda um «dos apoiadores da construção da Escola Nacional Florestan Fernandes, doando fotografias e fortalecendo o projecto de formação política e emancipadora que a escola representa».
Lula da Silva, Presidente do Brasil, destacou o «inconformismo» de Sebastião Salgado «com o fato de o mundo ser tão desigual». O fotógrafo nunca abdicou de pôr o seu «talento obstinado» ao serviço de retratar digno da «realidade dos oprimidos, que serviu, sempre, como um alerta para a consciência de toda a humanidade».
«Salgado não usava apenas seus olhos e sua máquina para retratar as pessoas: usava também a plenitude de sua alma e de seu coração. Por isso mesmo, sua obra continuará sendo um clamor pela solidariedade. E o lembrete de que somos todos iguais em nossa diversidade».
Assim deixo o testemunho que julgo merecer esta minha divulgação.
Pierre Vilbró – Junho 2025</spa
3 Comentários
Samuel Carvalho
Um texto belíssimo que faz jus à profundidade do olhar de Sebastião Salgado.
Mais do que fotografar em preto e branco, Salgado captava a alma das pessoas, das paisagens e das histórias esquecidas. Entre luz e sombra, contraluz e silêncio, revelava o essencial – o que muitas vezes não vemos, mas sentimos.
Partiu o mês passado, mas deixa um legado intemporal.
Parabéns ao autor pela sensibilidade das palavras e pela homenagem a um mestre da imagem. Uma leitura que nos faz ver de outra forma.
BigSlam
Excelente homenagem! Sebastião Salgado partiu, mas deixou-nos um legado poderoso – imagens que falam com luz, sombra e alma.
Que esteja em paz!
2luisbatalau@gmail.com
PAZ Á SUA ALMA. OBRIGADO.