“Baú de Memórias” em Memória de Mr. David Roux
A História leva o seu tempo. A História faz memória”.
Gertrude Stein (1874 – 1946)
A minha odisseia, como da maioria dos portugueses que se viram impelidos a regressar, depois de 25 de Abril, a este pequeno torrão de terra, em citação de Pessoa, “onde a terra acaba e o mar começa”, sem bens materiais mas cheios de saudade, depois de espoliados após uma vida de árduo trabalho no ex-Ultramar Português, não me permitiu explicar a minha decisão em vir para Portugal, em vez de rumar à África do Sul (como uma possibilidade que se põe de parte por previsão de tempos conturbados à semelhança de Moçambique), a uma personagem de elevadíssima craveira profissional e humanista (mais adiante direi o porquê desta minha última adjectivação) a que muito fiquei a dever em gratidão, e tal como eu, mas em circunstâncias diferentes, muitos cidadãos de Lourenço Marques que a ele recorriam em consultas e/ou operações do foro da Ortopedia. Refiro-me a Mr. David Roux de quem tive, por estes dias a triste notícia do seu falecimento, através de um documento profissional/bibliográfico emanado do “Royal College of Surgeons of England”:
Abro um parêntese explicativo, por julgar ser do desconhecimento do público em geral, para o facto dos médicos cirurgiões, membros do prestigiadíssimo “Royal College of Surgeons o f England”, para se distinguirem dos médicos não cirurgiões e não enjeitando, por outro lado, um passado de cirurgião barbeiro, com raízes que remontam à Idade Média, optarem pelo tratamento de “mister” em vez de “doctor”.
Por este documento se fica a conhecer, outrossim, a sua vida de desportista de grande mérito, merecedor de elevado destaque na tradição desportiva do “BigSlam”, a que, por conhecimento pessoal, acrescento o seu brevet de piloto. Dele tomei conhecimento por me ter sido enviado um doente residente em Lourenço Marques que se tinha deslocado a Joanesburgo para ser operado por David Roux e cuja reabilitação exigia cuidados muitos especiais e, como tal, um contacto telefónico permanente entre mim e o médico. Num desses telefonemas para Joanesburgo, perante alguma situações ocorridas, disse-me que viria Lourenço Marques propositadamente para o consultar. Indicou-me o dia e a hora, tendo-me eu deslocado ao aeroporto para o receber. Chegou um avião da carreira Joanesburgo – Lourenço Marques e nada de o ver aparecer. Dirigi-me a um dos guichets , tendo-me sido dito que não vinha nesse avião por ter avião próprio e por ele próprio pilotado. Assim sucedeu!
Voltando tempos atrás, o meu contacto com Mr. David Roux foi ocasionado por um paciente que tinha feito recuperação comigo em Lourenço Marques e que o foi consultar à África do Sul. Face aos bons resultados por mim alcançados (correcção de uma escoliose esquerda inicial, de eixo maior em L1 de 16º, que volvido um ano foi reduzida para 7º.), pediu o meu contacto para passar a enviar-me pacientes.
Entretanto, o filho de um médico de Lourenço Marques foi por ele consultado por apresentar uma escoliose. Disse-lhe David Roux que ele necessitava de fazer reabilitação. Logo o médico se aprestou a deixar o filho para tratamento em Joanesburgo tendo sido atalhado da seguinte forma: “Deixá-lo aqui para quê? Tem em L.M, uma pessoa da minha maior confiança para levar a efeito a respectiva correcção. Entrando esse médico em contacto comigo, confessou-me: “Conheço-o há uma data de tempo, convivemos na Pastelaria Princesa quase diariamente, e desconhecia essa sua actividade profissional prestigiada em fronteiras vizinhas!”!
É chegada a altura de me referir à condição humanista deste cirurgião sul-africano. Encontrava-me eu a ministrar exercícios terapêuticos a uma paciente para uma doença não diagnosticada pelos médicos locais. Pela gravidade da respectiva sintomatologia, aconselhei os pais a que fossem à África do Sul para consultarem David Roux. Perante a hipótese de ter de ser operada a filha, por serem pessoas de poucos recursos económicos, agravados por uma prole numerosa, receosos perguntaram a quanto montaria o acto cirúrgico necessário. Respondeu-lhes, de imediato, David Roux: “O que está em questão é tratar a sua filha. Quanto ao pagamento fá-lo-ão dentro das vossas possibilidades e sem qualquer preocupação de prazos estabelecidos”.
Regressando à possibilidade, por mim descrita, no início deste texto, de ir trabalhar para a África do Sul, foi-me passado o documento seguinte:
É pois diante da memória de um ser de eleição, daqueles raros que perpassam na vida das pessoas e que pela sua grandeza os fazem sentir importantes por orbitarem à sua volta, que eu escrevo este singelo, mas muito sentido texto. Outras vezes, como neste caso, evocando casos de doença de pessoas que nem a cantar conseguem espantar os seus males, que eu me curvo respeitosamente em homenagem póstuma a um cirurgião de inexcedível competência profissional (reconhecida internacionalmente) e rigoroso cumprimento do Juramento de Hipócrates. Repouse em paz, meu nobre, querido e saudoso Amigo.
Post scriptum: se, porventura, este texto chegar ocasionalmente aos seus familiares sobrevivos apresento-lhes as minhas muito sentidas e respeitosas condolências.
- Tradução do documento emanado do “Royal College of Surgeons”:
“David Roux graduou-se na Universidade de Pretória em 1949 e pouco tempo depois começou a sua formação em ortopedia, trabalhando principalmente no Hospital Geral debaixo da orientação dos Professores J M Edelstein e G T du Toit. Fez uma breve visita a Londres em 1955 em que passou do inicio ao final do FRCS em apena poucos meses.
Posteriormente passou um ano no Hospital de Cirurgia Especial em Nova Iorque onde trabalhou para o Dr. John Cobb cujo principal interesse era em escoliose e deformidades neuofibromatoses da coluna . No seu regresso à África do Sul criou a primeira unidade de escolioses no Transval onde se deparou com problemas motivados por tuberculose, poliomielite e anormalidades congénitas. O seu trabalho foi lendário mas ainda encontrou tempo para pesquisa e ensino. Como cirurgião, apesar de da ausência do seu dedo médio da mão, foi o mais dextro, exacto e preciso técnico.
Para além da sua profissão excedeu-se no instinto de caçador (o seu troféu inclui um urso polar no Alasca!), conservação da natureza, corrida de resistência de automóvel, pesca no alto mar e tendo sido um velejador de renome, finalmente navegou no se iate até à Inglaterra.
Os seus últimos anos passou-os em rápido declínio de saúde tendo falecido em 19 de Dezembro de 1987, tendo sobrevivido a sua mulher Carol e filhos”.
- Tradução do documento “ To whom it may concern”:
“Certifico que tive uma relação profissional com o Sr. Rui Baptista de Lourenço Marques, nos últimos 7 anos. Ele é um fisioterapeuta de alguma reputação em Lourenço Marques e ao longo dos anos confiei-lhe os cuidados pós operatórios de muitos pacientes que recebia de Moçambique. Ele prestou um ilustre serviço e se quiser emigrar para a África do Sul terei prazer em endossar as suas qualidades como um benefício para a África do Sul e em particular para o campo paramédico de ginástica correctiva e fisioterapia na África do Sul”.
2 Comentários
Augusto Aires Martins
Foi um grande prazer para mim e depois de tantos anos em que o tenho admirado pela sua competência e correção, ter ficado hoje a saber de mais uma faceta das suas aptidões.
Aceite um grande abraço, com os meus desejos de boa saúde.
Rui Baptista
Meu Amigo Augusto Aires Martins: Obrigado pelo seu comentário amigo de antigo e estimados aluno. Um abraço grato.