ENTREVISTA COM FU MANJATE EM MAPUTO
Cantar em playback … eu sou contra, declaradamente contra. Mas, pelo andar da carruagem se calhar um dia vou ter de caír nessa.”
A semana passada mesmo em frente do edifício da Rádio Moçambique alguém chama por mim. Olho para o outro lado da rua e vejo uma figura conhecida. Fu Manjate, um homem da música moçambicana e não só, integrante, em tempo que já lá vai, dos conjuntos “Flechas” e “Storm”. Uma voz e um exímio baterista das noites da então Rua Araújo, conhecida como “a rua do nosso Major” ou “a rua do pecado”. O abraço de quem revê um amigo que desde 1977 decidiu viver e trabalhar em Portugal. Naquele encontro breve ficou marcado o dia para uma conversa mais alargada que nos permitisse recuar no tempo e conhecer a trajectória daquele que na Figueira da Foz foi integrante do “Sigma Band”.
É essa entrevista (que vai ser transmitida na Rádio Moçambique no programa “Fio da Memória”) que transcrevo para os leitores do BigSlam.
JS – Fu, quando começa esse gosto pela música?
Fu – Isso é uma história antiga. Naquele tempo nós não tínhamos brinquedos. Os nossos pais não tinham dinheiro para nos comprar esses brinquedos. Então os meninos do bairro onde eu nasci inventavam coisas para ocupar o tempo livre. Eram os tambores feitos com pele de cabra, latas velhas, enfim, tudo o que servisse para fazer som.
Qual foi o primeiro instrumento que tocaste?
Foi harmónica de boca. Depois fui arrastado para a bateria pelo saudoso João Wate. Foi assim que comecei sem nunca pensar que um dia podia vir a ser profissional deste ofício. Ser músico naquela altura era sinónimo de vadio, bandido, alcoólatra, drogado, etc.
A família aceitou bem a tua entrada para o mundo da música?
Não, de modo algum. Sabes João, os nossos pais, naquela altura, mesmo com todas as dificuldades que tínhamos, queriam que os seus filhos fossem doutores. O meu pai aceitou que eu tocasse apenas ao fim de semana. Era uma espécie de “hobbie”. Quando ele descobriu que eu tocava para além do sábado ou domingo, o facto já estava consumado. Quando fui para músico profissional, aí é que a porca torceu o rabo. Tive de provar ao meu pai (por a+b) que valia a pena ser músico.
Há alguma influência familiar?
De certa forma. Eu tinha uns tios adoptivos (eram dois irmãos) que eram músicos. Um tocava bandolim e o outro tocava bateria. O meu pai “arranhava” umas coisitas na guitarra. Houve também uma grande influência do tio Moisés Manjate do conjunto Djambo. Todos os que mencionei eram vizinhos. Ensaiavam bem perto da minha casa. E eu ia lá espreitar. Essa foi a influência que tive e que me arrastou para a música, que ao fim e ao cabo era algo de que eu gostava muito. Sempre gostei de música.
Conjunto “Djambo”
Essa influência leva-te a pensar em formar ou integrar um conjunto musical?
Sim. Essa gente que eu via tocar teve influência na minha iniciação e na minha entrada para um grupo musical. A principal influência vem do Djambo. Eles tocavam num programa radiofónico do falecido locutor da “Hora Nativa” Samuel Dabula. O programa chamava-se “kety kety”. Deixa-me dizer-te uma coisa que para mim é importante. Quando eu via o Djambo actuar, deliciava-me com a mestria do Raimundo na bateria. Eu acho que ele foi a influência maior para que eu pegasse nas baquetas. Daquele tempo não posso deixar de recordar o conjunto de João Domingos.
Conjunto “João Domingos”
Qual foi o teu primeiro grupo musical?
João, era um grupo que ainda não tinha nome e era formado por mim, pelo João Wate, pelo Paulo Sazuze, (o Paulo era o dono dos instrumentos e do equipamento técnico), e posteriormente pelo José Carvalho. Este grupo sofreu algumas alterações. Saiu o João Wate e entrou o Maurício, um pianista que foi antigo jogador de futebol do Sporting de Lourenço Marques e também o Fernando Tamele, que tocava trompete e cantava. Aí nascem os “Flechas”.
Quanto tempo durou este grupo?
Mais ou menos 3 anos. Eu sempre considerei os “Flechas” como sendo o nosso posto de iniciação. Tivemos momentos importantes que recordo com saudade. Não tínhamos intenções materiais. Tocávamos pelo prazer de tocar. De sermos apreciados pelo público.
Quem te “arrastou” para a vida nocturna?
Antes de responder directamente a esta tua pergunta deixa-me dizer-te que reprovei num ano escolar. Perante este facto o meu pai insistiu dizendo que eu devia arranjar um emprego. Queria colocar-me nos Caminhos de Ferro. Claro que ser funcionário público não tinha nada a ver comigo. Andei a pensar como arranjar esse emprego até que me surge uma oportunidade dada pelo saudoso baterista Jójó. Ele estava a tocar no “Luso” mas com uma hipótese de se mudar para a “Cave”. Para ele sair precisava de arranjar um substituto. E esse substituto (no Luso) fui eu. Posso dizer-te que foi o Jójó que me “arrastou” para a vida nocturna.
Antiga Rua Araújo
Com a dissolução dos “Flechas” o que se seguiu?
Quando os “Flechas” deixaram de existir fui trabalhar para o Luso, com um excelente naipe de músicos portugueses e moçambicanos. Depois fui para a tropa. Regressei depois de cumprir o serviço militar e voltei ao “Luso”, tocando ao lado do Mundinho que era o pianista e chefe do conjunto. Foi nessa altura que se formou o conjunto “Storm” um conjunto que deu brado mas que infelizmente durou pouco tempo. Quando o conjunto acabou passei a cantar a solo. Participei nos programas de palco produzidos na altura pelas Produções 1001, nomeadamente no “Xitimela”. Em 1977 decidi ir para Portugal.
Antes de falarmos da tua ida para Portugal uma pergunta: estás de acordo que se deva cantar em “playback”?
Não sou apologista disso. Por vezes sou confrontado com essa situação que não me agrada. Mas enfim, são sinais dos tempos. Há coisas contra as quais é difícil lutar. Esta coisa de cantar em “playback” é a mesma coisa que matar a arte. Ignora-se o factor humano “ao vivo”. É uma situação que desmobiliza. Deixa de haver aliciante. Põe-se de lado os criadores, os autores, os instrumentistas. Cantar em “playback” parece estar na moda, mas tem o seu lado pernicioso. Eu sou contra. Declaradamente contra. Mas, e tal como as coisas estão hoje, acho que mais dia, menos dia, vou ter de cair nessa. Porquê? Porque se calhar vou precisar de dinheiro para comer e para pagar a minha renda de casa.
Fu Manjate “Prémio Carreira 2015” – Figueira TV
Fu, a questão da qualidade da música moçambicana? Da letra, da composição, dos arranjos, da orquestração?
É um problema. A qualidade da música moçambicana e de outros países baixou. Hoje vinga o rap. Deixou de existir a melodia. Se ouvires música dos anos 60 ou 70 (Love me Tender por exemplo) tem melodia e pouca harmonia. Hoje não temos nada disso. Temos uma batida. É a degradação sob o ponto de vista melódico. Lamentavelmente eu hoje tenho de admitir tudo. Sinais dos tempos, provavelmente. Quando surgiu o rap eu fui um dos que disse que aquele tipo de música não era nada. Muitas vezes apressamo-nos a condenar, mas contra factos não há argumentos. O rap continua e está instalado em qualquer parte do mundo. O povo é que manda e o povo infelizmente gosta. As mudanças que se possam operar passam por um melhor ensinamento aos nossos próprios músicos que se estão a formar agora. É preciso ensiná-los a fazer música. Estes, os que estão a estudar música, podem fazer a viragem. Nota João: 90% dos músicos que estão por aí são de formação igual à minha. São músicos de rua. Só que eu felizmente tive um ensinamento diferente. Eles estão limitados, mas fazem aquilo que o povo (infelizmente) gosta. Aprender como eu aprendi, com aqueles “xingomanas” e outras coisas do género, já lá vai o tempo. Não se pode continuar a fazer o mesmo. Hoje há outros recursos, há outros campos para explorar.
Em 1977 vais para Portugal e integras-te no “Sigma Band”. Conta lá como foi isso?
Eu quando fui para Portugal estava a trabalhar a solo. Não estava preparado para aquilo que eu pensava que pudesse atingir com facilidade. Em Portugal ao nível que eu queria era exigido muito mais. Exigiam-se partituras musicais, tinhas de ter o teu próprio portfólio. E eu não tinha nada disso. Então tive que voltar à minha condição de baterista e fui integrado no “Sigma”.
Conjunto “Sigma Band”
Esta banda já não está no Casino da Figueira da Foz. Está praticamente desfeita. Hoje estamos todos reformados. O músico não se reforma, mas em termos de contrato de trabalho e de prestação de serviços a outrem já estamos aposentados. Eu agora faço parte dum trio que, consoante as circunstâncias pode ser um quarteto ou quinteto. São pessoas que não vivem em exclusivo da música. Exercem outras actividades na vida. Estamos numa fase de resgatar a nossa origem. Fazemos pequenas coisas que gostamos de fazer.
Tive muito gosto em falar contigo e de recordar coisas importantes da tua carreira. Uma palavra final para quem nos escuta?
Sempre que posso eu venho à minha terra. É aqui que tenho a família e os amigos. Quando saio daqui sinto-me revigorado. Eu quero agradecer a todos os meus amigos, à minha família e a todos os que me conhecem, que gostam de mim e reconhecem o meu passado musical. Eu quero-vos dizer que estou cá e sempre que vier estarei disposto a colaborar naquilo que entenderem. Um obrigado a todos e um bem haja a Moçambique. Este meu País é grande e vai ser maior, disso estou certo.
João de Sousa – Junho de 2015