IN “MEMORIAM” DO PROFESSOR JOSÉ HERMANO SARAIVA
No decurso do ano 2005, em vida do Prof. José Hermano Saraiva, tive a grata ocasião de publicar alguns testemunhos sobre este meu docente liceal da disciplina de História.
Passados quase sete anos do seu falecimento, e em hora de continuada recordação e de muita saudade para mim que fui seu aluno no Liceu Passos Manuel, em Lisboa, a minha sentida homenagem com a transcrição de um meu artigo e a resposta que me foi endereçada pelo seu destinatário. Assim:
Em artigo intitulado “O Historiador José Hermano Saraiva” (“Diário de Coimbra”, 04. Agosto. 2005), escrevi:
“Este mundo é duro: haverá sempre inquisidores e fogueiras” (António José Saraiva, 1963).
Os desvairados impropérios dirigidos ao Prof. José Hermano Saraiva pelo senhor Acácio Barradas, nas colunas de “Cartas ao Director” (Público, 26. Julho. 2005), espelham bem a sentença de Buffon: ‘O estilo é o próprio homem’.
E toda esta raiva, porquê? Pelo frisson que lhe causou a reportagem, datada de 24/Julho/2005, da autoria do jornalista do Público, Adelino Gomes, com o testemunho de pessoas (entre elas o Prof. José Hermano Saraiva) dos mais variados espectros políticos sobre a ordem do falecido Prof. Rui Grácio, à época secretário de Estado de Orientação Pedagógica, para que fossem destruídas pelo fogo livros de ‘índole fascista’ (nesse tempo, os revolucionários tinham ‘Os Lusíadas’ nesse rol!) que fazem parte da história de um pais secular em que o mau uso da liberdade passou a ser desculpa para todos os desmandos.
Num momento pouco agradável de uma vida vítima de torpezas que medíocres lhe destinavam, apraz-me a oportunidade que me é dada de dizer que tive a honra de ser aluno do Prof. José Hermano Saraiva. E dele me recordo a dar as aulas da disciplina de História com o mesmo entusiasmo e aplauso que desperta na legião de pessoas que o escutam e o vêem nos seus programas televisivos por se tratar de um pedagogo que em nada se assemelha aos ‘pedabobos’, a quem os ventos da revolução trouxeram uma mudança radical nas suas ‘convicções políticas’ que pululam por esse Portugal fora arrastando este pobre país para o lugar de lanterna vermelha em estudos comparativos sobre Educação, relativamente a outros países europeus! E que bem ele utilizava a pedagogia de fazer para aprender. Aquando da matéria referente à epopeia lusitana dos Descobrimentos, passava como trabalho de casa, a feitura de mapas a eles referentes bem como a construção – em madeira de balsa talhada a canivete e as velas em pano com a Cruz de Cristo pintadas – das caravelas de antanho, sendo atribuídas classificações que contavam para a nota final de período!
Por fazer vista grossa a uma fraternal estima e respeito mútuo que são do conhecimento público, abomino a referência que o subscritor da carta supracitada faz – na vã tentativa de apoucar os sagrados laços de família – pela evocação despudorada do nome de seu irmão, o Prof. José António Saraiva, segundo ele próprio, aqui com verdade, ‘um dos portugueses mais perseguidos por questões políticas durante o regime do Estado Novo’.
Vejamos o que, a este propósito, escreve Maria Ana Sequeira de Medeiros, nos seus dados biográficos: ‘Expulso do ensino superior em 1943, na sequência de um processo disciplinar motivado por um desentendimento com Vitorino Nemésio, António José Saraiva ingressou no ensino liceal’ (António José Saraiva e Óscar Lopes: ‘Correspondência’, Gradiva, Março 2005). O deturpar desta expulsão logo é aproveitada por certa esquerda – que transforma deuses em demónios e demónios em deuses, a seu bel-prazer e ao sabor das suas conveniências – para lhes atribuir um cariz político. Sejamos honestos: reporta-se a referência feita a António José Saraiva só a parte da vida de uma proeminente figura do mundo da Cultura! E a outra?
Quando, verbi gratia, com a reflexão e os desenganos que a idade trazem à vida, denuncia os crimes cometidos pela ex-união Soviética nas estepes geladas da Sibéria? Ou, ainda, quando se manifesta contra a forma como se processou a ‘descolonização exemplar’. Como ele caracterizou o referido processo, ‘em vez de descolonização, houve uma ‘debandada em pânico’ em que os militares ‘fugiram como pardais’” (António José Saraiva, “Crónicas”, p. 503).
Por último, esta é uma sentida e singela homenagem (que muito peca por tardia!) de um antigo aluno que lamenta que a sua condição de octogenário de um Professor que dedicou grande parte de uma vida valorosa ao estudo e divulgação escrita e oral da historiografia – ‘não só pelo achado de documentos novos, mas também pelo surto de ideias fecundas’, como defendia António Sérgio -, ao magistério da História e à sua divulgação popular lhe não permitam destreza física para dar umas boas bengaladas nos costados de quem bem as merecia por pôr em causa, como pôs, o notável estatuto profissional de historiador do Prof. José Hermano Saraiva!
Para evitar especulações de deturpação de intenções, desde já declaro que abomino qualquer tipo de prisões por motivos políticos a pessoas que não atentem contra a vida de pessoas inocentes ou sirvam de mordaça de regimes totalitários à liberdade de expressão que acaba por não vingar porque, no dizer poético de Manuel Freire, ‘não há machado que corte a raiz ao pensamento’” (“Diário de Coimbra”, 4 de Agosto de 2005).
Tendo enviado ao Prof. José Hermano Saraiva fotocópia deste artigo recebi dele uma carta que, com a devida autorização, foi publicada no meu livro “O Leito de Procusto – Cónicas sobre o Sistema Educativo” (Outubro de 2005). Reza essa missiva:
Meu querido e antigo aluno,
Recebi a sua carta com o recorte do jornal Diário de Coimbra. Agradeço-lhe muito as palavras tão amigas que usa a meu respeito. Não sabia do artigo do Dr. Acácio Barradas, mas não me surpreende. Conheço a pessoa e sei que não fez aquilo por mal. É apenas incapaz de fazer melhor. Fiquei particularmente enternecido com os tempos da minha juventude em que com tanto entusiasmo tentava iniciar os meus jovens amigos na inteligência da História.
Quero ainda dizer-lhe que concordo plenamente com o seu ‘P.S.’. Como advogado defendi muitas dezenas de presos políticos no Tribunal Plenário de Lisboa. A discordância vi-a na frase ‘não haver machado que corte a raiz ao pensamento’. Infelizmente há. As fogueiras da Inquisição ainda hoje fazem sentir o seu efeito exterminador, e a prova é que em 1974 as cinzas reacenderam-se e provocaram um novo ‘auto de fé’. Passados 30 anos ainda há quem ache isso bem.
Não julgue que estou com isto a censurar os pontos de vista do meu colega Dr. Acácio Barradas. Desde os astrónomos gregos, sabemos que o mundo é redondo e que o círculo tem 360º. Os meus antípodas têm tanto direito de pensar como eu.
Envia-lhe um abraço comovido e de grande amizade o seu amigo de sempre.
Lisboa, 29 de Setembro 2005″.
Neste ano de 2016, com respaldo no provérbio “quem faz o que pode a mais não é obrigado”, perante os valiosos testemunhos televisivos prestados à sua memória por personalidades da vida cultural e política portuguesas, mormente de um seu antigo aluno liceal, o ex-presidente da República Portuguesa, Dr. Jorge Sampaio, penitencio-me pela opacidade do meu verbo que só se justifica por dar notícia de tempos vividos como discente de um grande e inesquecível Mestre.
Não a mesquinhez e a inveja de medíocres, unicamente a História que, segundo Gertrude Stein, “faz memória”, saberá dar ao Professor José Hermano Saraiva o lugar que merece entre os vultos da Cultura que se preocuparam em tornar acessível ao grande público a gesta lusitana “por mares nunca dantes navegados”!