Mia Couto, um passeio emocional por Maputo
O escritor moçambicano, biólogo de formação, guia-nos num percurso por Maputo ao sabor da natureza, da história e das suas recordações dos tempos da luta na Frelimo e do “carapau e do repolho”.
2ªparte
“Inventa qualquer merda!”
É hora de seguir viagem. Entramos no carro em direção ao Museu de História Natural.
E Mia recorda-se de uma história divertida. “Fui uma vez a Paris numa conferência, e precisei de um tradutor, um brasileiro, pianista, muito formal de fato e gravata. Era uma assembleia enorme de mais 400 pessoas, uma coisa séria. E o francês faz-me uma pergunta que demora 10 minutos. Sobre esta coisa da globalização versus não sei o quê, dos nacionalismos e blá blá blá, e eu com o meu francês peço para repetir por favor porque não tinha percebido bem. O tipo repete e demora mais 20 minutos. O brasileiro, sentado numa cadeira pequenina ao meu lado, falando-me ao ouvido para todos pensarem que estava a traduzir, diz-me: ‘Não entendi porra nenhuma! Inventa qualquer merda!’. Aquilo ficou como um lema para a minha vida, eu invento qualquer merda!” Gargalhada geral no carro.
Mas Mia, há aí qualquer coisa de português nessa noção muito lusa do ‘desenrasca’. É um moçambicano convicto, o que há afinal em si da alma lusitana? “Tenho mescladas em mim várias coisas que são portuguesas, e eu não fujo das minhas origens. Há uma certa nostalgia, uma certa necessidade de ter saudade de coisa nenhuma.” E sente que a sua pátria é a língua portuguesa, como dizia Pessoa? “O que eu acho mais bonito na língua é que facilmente deixa de ser portuguesa e facilmente passa a ser misturada, mestiça. Eu vejo a língua como uma coisa viva, em evolução. O acordo ortográfico foi como se não tivesse existido. Irritaram-me as razões que se invocaram, como se fosse uma coisa imperiosa e que daí nascesse algo mais próximo entre nós, portugueses, africanos e brasileiros. Isso é inventado, é artificial, não é por aí. Entristece-me ver a língua como um investimento político e económico.”
As conversas são como os cajus, e vão parar ao futuro de Moçambique. “Muitas decisões que são tomadas hoje apenas servem interesses de grupos. Mas não tenho muita esperança que possa ser de outra maneira. A história mostra que foi assim que, ao longo dos tempos, foram criadas as burguesias, o capital nacional, etc. Se houver estabilidade política e social, este país vai crescer. E vai ser, no futuro, um país como os outros todos. Os meus ideais de juventude tiveram de ser ajustados à realidade e às dinâmicas de mudança do mundo. A pior das ditaduras é a da realidade, a do possível. Tive de engolir isto. Não quer dizer que eu não seja feliz a construir este Moçambique, é o Moçambique possível.”
Passamos no antigo edifício da câmara, onde esteve a gestão da cidade colonial. Circundamos a estátua de Samora, que substituiu a de Mouzinho de Albuquerque a cavalo.
E Mia recorda-se dos “tempos do carapau e do repolho”, em que corria a cidade em busca de comida durante a guerra civil. Foi dos poucos brancos lusodescendentes que cá ficaram. No tempo das “filas das pedras”, em que se marcavam os lugares para a espera com uma cesta com uma pedra lá dentro, na maior parte das vezes nem se sabia o que estava para chegar. “Parece que vai haver peixe, e ali ficávamos…”. E os lugares eram respeitados. “Hoje olho para trás e pergunto-me o que é que se passava em mim para nem sequer levantar a hipótese de sair. Eu tinha filhos, e saía de manhã com a mesma preocupação que tinha toda a população: voltar ao fim do dia com alguma coisa para eles comerem. Mas era muito curioso. Quando se diz que a miséria moral nasce da miséria material, não acho que seja verdade. Quando se apanhava qualquer coisa, era tudo distribuído pelos familiares. Chamávamos os vizinhos, havia uma genuína partilha do pouco que existia.”