Mia Couto, um passeio emocional por Maputo – 3ª parte
O escritor moçambicano, biólogo de formação, guia-nos num percurso por Maputo ao sabor da natureza, da história e das suas recordações…
Salvo pela poesia
E foram tantos os momentos de aventura nos tempos de oposição. Como aquele em que se ofereceu para ser membro da Frelimo, e foi aceite numa cerimónia secreta. “Fui para uma casa à noite, nem pude ver qual era o caminho para não saber onde ficava. Quando cheguei lá, os candidatos tinham de contar uma história que era a ‘narração do sofrimento’. Cada um tinha de mostrar quanto sofreu para merecer a honra de estar ali. E todos tinham razões profundas, e eu, que fui o último a falar, não tinha nada. Era um privilegiado, uma pessoa feliz. Estava aflito, comecei a pensar ‘tenho de inventar um sofrimento instantâneo’. Mas quando me pus em frente da assembleia, o fulano reconheceu-me e perguntou ‘você é aquele que publica aqueles poemas no jornal! Ah, você é poeta! Precisamos de vocês!’ E não tive de contar história nenhuma. A poesia afinal tinha algum serviço. A mim salvou-me!”
Nunca teve medo, sendo um branco lusodescendente, nem nunca sentiu racismo. “Todos conheciam a minha ligação ao partido. Mas tive medo, porque esta guerra era absurda, morria-se sem razão aparente. Uma vez saí da cidade sozinho, para fazer uma inspeção dos estragos de um petroleiro que tinha naufragado, e quando voltei senti um silêncio absoluto que me preocupou. O jipe enterrou-se na margem do rio, e passou um fulano que me disse: ‘Você saia daqui imediatamente, isto está um caos, a Renamo está à porta’. Deixei o jipe, veio um amigo dele com uma canoa que me levou, e aí percebi que vivíamos uma guerra aqui muito próxima e que às vezes nos esquecíamos dela. Uma colega minha foi assassinada a cinco quilómetros da cidade.”
Chegámos ao museu de História Natural, um edifício inspirado no estilo manuelino. Dois animais embalsamados guardam a porta.
Ao fundo, impõe-se colorido um painel de Malangatana para onde nos dirigimos.
Mia conta histórias de outros tempos com o pintor. “Ele era um ‘homem show’. Além de pintar, cantava e dançava, usava a barriga como tambor. Uma vez estive com ele uma vez numa conferência no estrangeiro, e no último dia veio dizer-me que o programa tinha sido alterado para se incluírem cantares moçambicanos na sessão de encerramento. E eu perguntei ‘olha que giro, quem é o grupo que vem cantar?’. Ele olhou para mim e disse ‘o grupo? Então, sou eu e tu!’. Fiquei aflito, tentei explicar-lhe que não cantava. Mas para ele não era possível uma pessoa não cantar. Toda a gente canta!”, conta. Para Mia, Malangatana foi um exemplo de alguém que se entregou de alma e coração a uma causa, sem nunca ter feito uma declaração de amargura pelos momentos difíceis que viveu.
Uma planta no jardim chama a atenção de Mia. É uma cica. “Já viu isto? São células sexuais nuas e reproduzem-se só pelo vento. Foi feita no momento em que a natureza ainda não sabia desenhar flores. Inventar a cores, os formatos, os desenhos foi um trabalhão enorme e veio muito depois.”
Entramos no museu, uma mostra estática, com uma coleção de animais africanos embalsamados. Elefantes, impalas, leões pousam numa savana improvisada. Mas Mia destaca a coleção de dezenas de fetos de elefante embalsamados, nos vários estágios de gestação. “É um exemplo da crueldade em nome da ciência. Mataram milhares de fêmeas para apanhar os 20 meses de gravidez…”.
Seguimos para a zona dos artefactos tribais, tanto macuas, o grupo étnico mais numeroso do país, como macondes. “Algumas destas culturas são do interior, que só muito recentemente tiveram contacto com o litoral. O que deu azo a algumas expressões muito poéticas. Pescar eles dizem caçar peixe, e barco a vapor chamam comboio da água”, explica Mia.
Mostra um peixe de dois metros, o selecante, uma espécie em vias de extinção típica do norte, que vive em águas muito profundas. “Antigamente estes povos imaginava-se que existia um ser como este que faria a transição entre o mar e a terra, com barbatanas adaptadas para a locomoção. Imaginaram com tanta intensidade que o desenharam, e era quase isto que está aqui. Foi descoberto pela primeira vez na década de 50, e só agora é que se conseguiu provar que existia mesmo. É a imaginação a anteceder, a superar a natureza.”
Saímos para a rua e Mia mostra uma árvore de madeira preciosa. Faz-lhe festas no tronco suave. “É lindíssima, não é? Gosto muito desta árvore.
Quando vou para fora e não sei os nomes das árvores, sinto-me totalmente perdido. Elas não falam comigo.” Encontra um jardineiro, um velho conhecido. Cumprimentam-se com um ritual de apertos de mão, “à boa maneira africana”. “Por aqui os homens podem falar mão na mão, andar abraçados. Aqui o toque é normal, faz parte da comunicação.” E é, “à boa maneira africana”, com um abraço, que nos despedimos de Mia.
Fonte: Expresso online