NAUFRÁGIOS DE GENTES MINHAS
Naufráugio, do Latim «naufragiu», é a perda de uma embarcação que sofreu um acidente, afundando ou ficando presa em recifes ou baixios (in Wikipédia, enciclopédia livre).
Segundo o dicionário Porto Editora, «Naufrágio» tem dois significados:
- Nome masculino, perda de um navio no mar;
- Figurado desgraça, ruína completa;
Para Kim-Zé Carvalho
autor do livro «Naufrágios de Gentes Minhas», é uma marca que perpetua as gentes da beira-mar:
Foi em busca de saber o que se passou em alguns destes naufrágios, que fui atrás do tempo, e tentando viajar nele, nos seus costumes, viveres e expressões, tão próprias do tempo em que o tempo corria.» …
… Das memórias da minha infância, banhado pelo mar que me refrescava no verão e me regelava de inverno, de gentes salgadas, feitas de pragas, freimas, naufrágios, gritos, dor, luto, mas também de momentos lindos feitos de sorrisos, saborosas malandrices, brincadeiras sem fim, dizeres, alcunhas, e de um mundo em que todos éramos primos.» …
…Respeitar o tempo passado, para um dia quem ler este escrito, reter os cheiros, os falares, os dizeres do sangue do meu sangue.»
Foi na quinta-feira (26/11/15), que decorreu no Casino-Figueira, o lançamento do livro «Naufrágios de Gentes Minhas»,
onde numa sala repleta, pude escutar num silêncio vibrante um mar de emoções desfiadas com a extraordinária narrativa de apresentação, a cargo do padre Carlos Noronha, pároco de Buarcos, berço do autor.
Agradecendo a disponibilidade e a excelência na simplicidade, partilho na íntegra no BigSlam “nosso ponto de encontro”, um testemunho de fé e de verdade, com palavras belas e sábias, pelo mistério de vida!
Muito obrigado, senhor Padre Carlos Noronha.
Apresentação do livro “Naufrágios de Gentes Minhas”
Já lá vão muitos anos…
Corria o ano de 1974… estávamos em tempo de Verão…
Abria-se então a hora excitante de ver terminado um tempo longo de estudo que agora me atirava para uma Paróquia qualquer da Diocese de Coimbra, onde iria fazer estágio e aprender a ser Pároco…
Custou-me muito dizer adeus ao Seminário de Coimbra, lugar privilegiado de rara beleza, contendo dentro das suas paredes um verdadeiro silêncio monástico, propício para quem estuda e reza a presença misteriosa de Deus na vida das pessoas e das comunidades humanas…
Perturbava-me a ideia de ter de deixar o ambiente da cidade, pois a minha vida decorrera sempre na Figueira da Foz e em Coimbra, mas chegava o dia em que ficaria a saber para onde teria de ir.
– Buarcos!… disse-me o Senhor Dom João Saraiva, Bispo de Coimbra, com o sorriso que lhe era peculiar.
Foi um verdadeiro terramoto dentro de mim!
– O quê?… tão perto da casa dos meus pais!
– Vivi sempre em cidades e sou agora enviado para uma comunidade de pescadores?
– Isso vai correr mal!
A resposta do Senhor Bispo foi curta e risonha:
– Vai ver que vai gostar!
Vim perplexo… achei um erro de todo o tamanho ou então um gravíssimo engano do Senhor Bispo… mas lá vim!
Tudo me parecia estranho…
Buarcos estava tão perto da casa dos meus pais, na Rua Vasco da Gama, mas afinal era tão longe…
Eu não conhecia as ruas apertadas, estreitas e confusas do burgo piscatório, mas havia uma coisa boa: quando me perdesse, só tinha que descer e… estava no mar! Então aí eu já me orientava com a ajuda do recorte das muralhas!
Logo na primeira noite que dormi em Buarcos, dei conta de uma nova realidade a envolver a minha vida: um bêbado veio fazer uma pregação diante da Igreja e logo o meu quarto tinha duas janelas viradas ao largo de São Pedro…
Aperceber-me-ia, no dia seguinte, que agora a minha nova morada já não era nos espaços amplos e belos do Seminário… já não era na tranquila Vasco da Gama… mas ficava precisamente entre a taberna do César e a taberna do Tide…
Há sempre um preço a pagar pelas horas novas da vida!…
Nessa hora, estava eu bem longe de saber a maravilha que me aguardava, ao ter sido enviado e mais tarde colocado, na Paróquia de Buarcos!
Tinha aprendido anos antes, nas aulas de grego, um provérbio que jamais esqueci, importantíssimo para esta hora:
As coisas belas são difíceis”
Rodeado e acarinhado por muitos…
Alvo de um olhar desconfiado, por outros, pois trazia comigo toda uma outra maneira diferente de estar na vida e de estar na Igreja, o que inevitavelmente gerava desconfianças e desconforto, senti-me eu também no meio de um povo diferente!
- Gente que não pensava como eu!
- Gente que não sentia as coisas como eu!
- Gente que não reagia, como eu, ao bom e mau da vida!
- Gente que nem sequer falava bem como eu falava!
- Gente que eu não entendia bem, mas me abria os braços e o coração, considerando-me já um dos da sua casa… um dos da sua gente!
Ao princípio eu só conseguia falar com as mulheres da comunidade e com os mais novos!
Elas estavam na rua onde falavam, compravam e vendiam!
Sem vergonha e com desassombro, apregoavam o peixe e lá o iam vendendo!
Acendiam o fogareiro na rua e perfumavam o burgo piscatório com o cheiro a sardinha assada que facilmente passou a inebriar-me…
Onde não cheirasse a sardinha assada, na rua, era sinal de que ali não havia vida!
Quanto ao homem da casa, bem, esse tinha e tem um outro ritmo de vida e até um outro lugar.
Chegava a casa perto da uma hora da tarde, lavava-se, comia e descansava…
Acordava para jantar, passando primeiro pela taberna, onde conversava com os outros com um dialecto próprio deles, e após o jantar, descansava de novo para estar no barco, consoante as ordens que lhe eram dadas pelo mestre!
A noite, com ou sem o seu luar, é o grande tempo (abençoado por Deus) onde o trabalho se procura, acontece e culmina!
Para o mar convergem os dois olhares da família de qualquer pescador:
– O olhar atento, corajoso, ousado e forte por parte dele…
– O olhar atento, comovido e confiante dela que reza a Deus e a Nossa Senhora, para que tudo corra bem e o barco traga peixe!
Realmente o mar é amigo… e tudo dá!
São belas as palavras do poema que preenche um tradicional fado de Coimbra:
Fosse o meu destino o teu
Oh mar alto sem ter fundo,
Viver bem perto do céu
Andar tão longe do mundo
……….
Antes as tuas tormentas
Do que todas as revoltas
No céu azul te adormentas
E a soluçar nunca voltas
O que nós aprendemos com o mar!
Como nos faz bem olhá-lo e tentar percebê-lo, até mesmo no reflexo que ele tem em cada um de nós!
Quem trabalha no mar e navega nas suas águas, acaba numa empatia tal com ele que chega a perder o medo de o enfrentar, quer nas suas vagas alteadas, quer nas tempestades que nele se desencadeiam!
Eu nunca tinha visto o mar por este prisma, até me sentir um, com todos aqueles e aquelas que vivem em comunidade na grande varanda voltada para o mar, contemplando-o todo o dia e ouvindo-o a rugir durante a noite.
Uma das coisas que mais me impressionou na vida das comunidades piscatórias foi a vocação do marido e da esposa, no constituir de uma família.
Não é a mesma coisa, casar com um pescador ou com quem exerça uma outra qualquer profissão.
Quem casa com um pescador tem que se habituar às longas ausências do marido, por causa do mar.
Ela sabe que ele é “lobo” no mar, mas é um “cordeiro” em terra; mas sabe que o contrário é verdade também…
Na verdade, ela, no mar, é mais do que um cordeiro indefeso, embora em terra tenha de ser esposa, mãe, pai, gestora, atenta aos cuidados de saúde todos lá de casa, assim como presença activa e comprometida no acompanhamento escolar dos próprios filhos… e isso exige-lhe coragem e tenacidade!
Só o amor… só mesmo o amor consegue unir o coração e a vida de dois seres tão diferentes, até na conjuntura social e cultural em que estão inseridos.
O medo e a vergonha que caracterizam o pescador em terra, na comunidade onde vive, é contrabalançado pela ousadia, pela coragem, pelo atrevimento sadio, pela alegria contagiante da peixeira, da varina… afinal, a mulher do homem do mar!
Contemplativo deste mistério de vida, confesso que me encantou o que Buarcos canta nas horas de arraial, romaria e festa, dando a melodias muito belas, o conteúdo de poemas impressionantes, decerto escritos por quem conhece e partilha esta vivência diária das gentes do mar.
Meu amor é pescador
Pescou-me com o seu olhar
Lançou-me na rede a primor
E eu fui na rede a brincar
Quando ele sai tenho medo
Sinto ciúmes do mar
Beijando a praia em sossego…
Sim, beijando a praia em sossego
E eu sem ter a quem beijar
Não queiras meu querido deixar-me ficar
Leva-me contigo mesmo a naufragar
Se houver novidade abraças-te a mim
Que eu nado à vontade, bem juntinha a ti.
Fantástico isto:
– Se houver novidade… tu abraças-te a mim!
– É que… mesmo sem saber nadar, eu nado à vontade bem juntinha a ti!
A coragem da varina, da peixeira, verdadeira mulher de armas… verdadeira mulher de fé…
Não há obstáculos que ela possa vencer! Não há limites que não possa ultrapassar… desde que esteja clara uma condição: o amor do seu homem!
– Não queiras meu querido deixar-me ficar!
– Leva-me contigo mesmo a naufragar!
É aqui que se abre a dor maior, perante um obstáculo humanamente incontornável: a morte!
É aqui que a mulher se reveste de um negro escuro que jamais alargará…
É aqui que toda a oração feita no percurso da vida, se torna mais monólogo, para depois… depois de muitas perguntas sem resposta evidente, se espraiar num diálogo orante que de novo a levará, um dia mais tarde, aos cantares e à romaria, embora já numa outra dimensão!
Em qualquer comunidade piscatória, a alegria e a vivacidade contagiantes, alternam com o trágico-marítimo que transforma o cantar em grito; o ganho em perda; o sorriso em lágrimas; a alegria e a vida em luto!
Do naufrágio, falou o Quim-Zé e bem!
Falou ele e fez falar outros… com o propósito, decerto, de nos por agora a falar a nós, ao lermos o livro, dando ao nosso coração a oportunidade de falar sobre o nosso próprio protagonismo nos mares da vida e nos inúmeros naufrágios que lá acontecem, onde sucumbimos ou fazemos sucumbir outros, virando as costas pelas mais diversas razões, sempre absurdas, como alguém fez um dia ao Pedro Tirano e aos que com ele navegavam, na lancha Senhora da Encarnação!
Num naufrágio há sempre duas realidades:
– Quem morre e…
– Quem fica a morrer, uns por muito ou menos tempo… outros que “ficam a morrer” para o resto da vida!
Quando a nossa Igreja de São Pedro fez 240 anos (vão lá quase 10 anos, pois em 2016 o templo completa 250 anos de existência) a Paróquia adquiriu com muito sacrifício (pois foi muito caro), mas com muita ternura e amor, o belo quadro original de Ribeiro Júnior que ganhou a medalha de ouro em Paris, corria o ano de 1915.
O estado português apressou-se a pedir ao pintor uma cópia em dimensões maiores para colocar no Museu da Marinha; o original, porém, está hoje na Igreja de São Pedro, na parede do lado do mar, a perpetuar uma homenagem permanente da comunidade cristã de Buarcos, aos náufragos da sua terra.
É impressionante ver no quadro, tudo aquilo que tenho estado a referir a respeito do Homem e da Mulher do Mar!
Quem pintou conhecia bem o mistério vivencial das nossas gentes piscatórias!
Ribeiro Júnior chamou a esta obra “Barco em perigo”, mas…
- Não se vê o barco…
- Não se vê o náufrago…
- Não se vê se alguém se salvou, ou não…
- Vê-se sim, quem fica a morrer, mas… no imperativo de ter de continuar a viver!
**_O pai, o velho homem do mar, projecta um olhar angustiado, impotente, mas quem sabe até denunciador de uma manobra mal feita a bordo, ou então de uma ousadia ingénua perante a fúria das águas que se mostram em espuma alta…
**_A partir desse olhar mais alto mas impotente, fica todo o santuário do olhar feminino perante a desgraça e a morte!
**_Por detrás da representação da avó, com um olhar vago, decerto “ceguinho de choro” (como diz o poeta) por tantas horas bravas e duras da vida, está o único rosto sem corpo, de cor bacilenta, a representação da morte que faz com que a mãe, talvez seja ela, tape os olhos… não querendo ver o que vai ter de aceitar num coração destroçado.
**_A irmã… talvez seja mesmo a irmã… também ela de olhar cego de choro, põe as mãos em atitude de prece, pois já percebeu que… só Deus!… só Deus para quem parte… e… só Deus para quem fica!
**_Deixei para o fim, a personagem “chave” do quadro… a jovem esposa e os dois filhitos.
Diz o Quim-Zé, neste livro, que:
“O risco era a razão da sobrevivência destas gentes em que as crianças eram logo transformadas em homens e os homens nunca souberam o que é ser criança, porque o tempo, naquele tempo, não dava tempo para isso…”
Aqui está!
No olhar e no silêncio daquela mulher vai toda a letra da canção de que há pouco vos falei:
– Não queiras meu querido deixar-me ficar!
– Leva-me contigo, mesmo a naufragar!
Será assim, decerto, na leitura do coração mas a vida… ai a vida… essa abre sempre e só caminho para a frente!
Aquela mulher sabe que vai ter que ser mais mãe e mesmo… mais pai, a partir daquela hora!…
Aquela mulher sabe (e já o sente no seu saial) que o filhito mais velho vai ter de ser homem mais cedo e tem de ser ela a ensinar e a ajudar…
A própria criança agarra-se à saia da mãe porque já descobriu que é com ela que vai ficar e é com ela que vai passar a contar… vai ser ela a trave mestra da casa… o amparo dos filhos, dia-a-dia!
No entanto há outro filho, o pequenino que está ao colo…
A mãe esconde-lhe o rosto… aconchega-o ao peito e aperta-o, decerto, com toda a força.
Não nos é difícil perceber a linguagem deste gesto: por um lado, ela não quer que o mar o veja ou o salpique com as suas águas impiedosas… mas, por outro lado, ela não quer que o mais pequenino veja com os olhos da cara o que sempre, na vida, se verá melhor com o olhar do coração… a impiedade da vida, traduzida na altivez das vagas do mar.
Abre-se a hora da perda, do luto e da dor!
Abre-se a hora de Deus e o “lugar” de Nossa Senhora!
Abre-se o mundo da transcendência que após o desespero, após os gritos de horror deixados no areal onde as águas salgadas se misturam com as lágrimas sentidas e profundamente choradas, fica o grande silêncio onde só Deus fala e como Ele o sabe fazer, assim como o rosto de Maria, que desce do altar ao coração e por isso, mesmo de luto, ferida pelo inevitável da vida, ela continuará a cantar e a dizer, ainda que baixinho:
– Oh Buarcos, oh Buarcos, oh Senhora da Encarnação…
– O retrato da Senhora trago eu no coração!
Os dias e as noites sucedem-se!…
A vida retoma-se!…
A solidariedade em terra, tal como no mar, (e nunca serão as excepções a fazer regra…) levará uns ao encontro de outros, particularmente dos mais desprotegidos…
As viúvas e os órfãos estiveram sempre sob o olhar atento da comunidade que de peditórios à organização de eventos para angariação de meios, nunca abandonou nem abandona os mais magoados e desprotegidos!
Virá outra tarde e outra noite…
Os barcos voltarão ao mar para a pesca… e nos cantares antigos da nossa gente, lá está de novo um poema surpreendente, perante as embarcações à vela que se faziam ao mar:
As velas vão partindo à meia-luz da tarde…
O mar é brando e lindo, Nosso Senhor as guarde.
Ai quem me dera a mim, saber também voar…
Ai quem me dera a mim, partir e não voltar.
Vão cantando os pescadores, cantem as águas também…
Se é triste quem tem amores, mais triste é quem os não tem.
E as velas vão-se espalhando, nas águas mansas do mar…
Feliz quem parte cantando e já não torna a voltar.
No construir e no reconstruir da vida, as gentes do mar não escondem o seu amor pelo mar: qual chão de água onde nada semeiam e do qual tanto colhem!… não escondem o amor que entrelaça a família, quando o mar dá e quando ele não dá!… não escondem o seu amor a Deus e a Nossa Senhora, não podendo nós esquecer que só em Buarcos, temos treze invocações da Virgem Santa Maria:
- Senhora da Nazaré – Senhora do Rosário;
- Senhora da Visitação – Senhora da Dores;
- Senhora da Conceição – Senhora de Riba-mar;
- Senhora da Encarnação – Senhora do Carmo;
- Senhora da Boa Viagem – Senhora de Fátima;
- Senhora de Guadalupe – Senhora da Esperança;
- Senhora dos Navegantes!
As gentes do mar não escondem o seu amor pelos entes queridos que já partiram.
Se tem direito a sepultura, basta entrar no cemitério de qualquer comunidade piscatória para ver o zelo que é posto no lugar que guarda os restos mortais de cada um… mas se os corpos ficaram no mar, tem Buarcos o lugar singular do grande encontro na devoção e comoção do coração, perante a cruz dos ausentes, pequeno monumento, onde está escrito:
Se não sabes dos teus mortos, tem-los no coração
Junto à cruz de um cemitério reza-lhes com devoção!
É todo este mistério de vida que assumimos nos parâmetros da Família do Mar…
É no amanhecer e no entardecer de cada dia que repetimos com Fernando Pessoa:
“Deus deu ao mar os perigos e os abismos…
… mas foi nas suas águas que Deus espelhou o Céu!”
Bem-haja!
Parabéns ao Quim-Zé Carvalho, pelo acto de coragem de publicar estórias e vivências de gentes minhas!Eternamente grato ao senhor Padre Carlos pela partilha de tão intensa e deslumbrante narrativa.
Paulo Craveiro – 30 de Novembro de 2015