O Circo Funambulesco de Brincar às Escolas
Hoje só me diverte o circo de Domingo de toda a semana da minha infância”
Fernando Pessoa
Há dias assim, sem sabermos bem porquê. Veja o leitor que hoje deu-me para, na minha declarada condição de “diletante de coxia”, como diria Eça, perante os especialistas das Ciências da Educação escrever este texto que tem a suportá-lo uma crónica de jornal (já lá vai uma década) que, ao contrário de certos filmes que avisam os espectadores que “qualquer semelhança com a realidade é pura ficção”, não justifica qualquer aviso prévio por nessa peça jornalística a realidade suplantar a própria ficção por mais imaginativo que fosse o respectivo guionista.
É o caso relatado neste artigo intitulado “Brincar às escolas” (08/05/2005), da autoria do director-adjunto do “Público”, Nuno Pacheco, que poderia ser tido por pura ficção não se desse o caso de espelhar (e documentar) a tragédia de certos cursos sindicais de formação para professores, como se constatará pela respectiva transcrição verbo pro verbo. Escreveu Nuno Pacheco:
“Portugal espanta-nos sempre. Mesmo quando imaginamos que nada pior pode já acontecer, alguém se encarrega de vir desenganar-nos. Veja-se o seminário ‘Dicas para ser melhor professor(a)’ convocado para 11 e 12 de Maio [2005] em Lisboa e organizado por uma autodeterminada ‘pró-Ordem dos Professores’. Vale a pena descrever, na íntegra, os objectivos de tal encontro, tal como vêm escritos no folheto no folheto, sem omitir um único: ‘Como arranjar a sala de aula para facilitar a aprendizagem? Qual a melhor postura a adoptar? Como colocar a voz? Como gesticular? Que gestos devo evitar? De que cor me devo vestir? De que cor deve ser a sala de aula? Como gerir conflitos? Que legislação devo saber de cor? Como relaxar os alunos antes da aula? Como auto-relaxar? É importante saber os signos dos alunos para transmitir melhor a matéria? Se um aluno sofrer um acidente que primeiros socorros devo saber? Como aplicar estas dicas na escola, em casa, aos alunos e a mim?’. Lê-se e, por melhor boa vontade, não se acredita.
Não há pasmo que consiga descrever a sensação de estar perante tamanho disparate. Ainda vamos descobrir que os males do nosso ensino se devem aos cortinados das escolas, ao mau design dos equipamentos ou ao perfume usado pelos professores. Talvez ajude um pouco de meditação transcendental, talvez exercícios tântricos, talvez ‘feng shui‘… Mas o pasmo aumenta à medida que se vai lendo a lista dos especialistas convidados para as palestras: um colaborador do programa da SIC “querido mudei a casa” (imagina-se a variante ‘pedagógica’: ‘queridinhos alunos, mudámos a escolinha!’), um actor de telenovela Morangos com Açucar, uma ‘formadora em marketing e relações públicas, uma terapeuta de energias, uma astróloga ‘licenciada em comunicação’ um psicólogo, uma enfermeira, uma professora/advogada para explicar leis e alguém da Associação de Mediadores de Conflitos para, naturalmente, descodificar os artifícios da concórdia. No intervalo, sem desprimor para os ditos, haverá pastéis de Belém junto com o café.
É espantoso como em pleno século XXI, se promove um encontro para os professores julgando colmatar com ‘dicas’ impensáveis a miséria do nosso ensino. É inacreditável como se fala de exercícios de relaxamento, de colocação de voz, de marketing, de cores, de energias e signos , e não se fale da única coisa que as escola devia fazer com a máxima competência e empenho: ensinar, com sabedoria e não com truques de feira; transmitir conhecimentos em condições como é apanágio das melhores escolas e colégios por esse mundo. É patético imaginar que em Harvard ou Oxford haja professores a discutir os benefícios de fazer ‘exercícios de relaxamento’ com os alunos. Porquê? Precisamente porque são professores e não diletantes do estilo e da forma, porque a sua missão na escola é a mesma de há séculos: formar cidadãos competentes e preparados para a vida e não patetas incapazes de articular um único pensamento aproveitável. Infelizmente o seminário da pró-Ordem é um sinal dos tempos: a mediocridade não se limita a corroer as mentes, já se arvora em ciência, uma ‘ciência’que dá ‘dicas’. Pobres de nós”.
Porque, segundo Bergson, “não existe cómico fora do que é verdadeiramente humano”, o país de lés-a-lés ficou a saber que houve cursos para o professor “brincar às escolas” e rir a bom riso, até ficar com dores de barriga, sem qualquer motivo para tal, apenas contagiado por si próprio. Mas não será mais do que altura de parar com esta reinação, reflectindo sobre a responsabilidade de quem autoriza este tipo de cursos destinados à (de)formação de professores com a consciência aliviada de não ter de se retractar, ainda que só em lágrimas de remorso por se fazer conivente de um ensino, por vezes, degradado até fronteiras da indignidade?
Ou seja, não basta lamentar este status quo. Há que pôr cobro ao calvário de crianças e adolescentes das nossas escolas, vítimas inocentes de um circo verdadeiramente funambulesco já não só ao Domingo, mas com sessões de segunda a sexta-feira. Mas o pior de tudo isto é que tudo o que acontece neste país, seja no campo da educação, da saúde, da economia, da política e dos próprios costumes tem a cobertura estatal sendo explicado, à falta de melhor justificação, de forma esotérica.
Ainda que através de um possível “nacional porreirismo”, não deve ser deixado cair no esquecimento este degradante espectáculo (até para evitar futuras reprises) por estar em jogo a educação da juventude “sem a aquisição fundamental de uma compreensão e uma percepção nítida dos valores”, como escreveu Albert Einstein. O hedonismo, ainda que na simples arte de ensinar, ademais, hoje, emergindo do empirismo que lhe deu os primeiros fôlegos susceptíveis de estudo e de sistematização, tem limites que se não compadecem com pedagogias alternativas a bel-prazer de simples curiosos ou ilusionistas do saber.