ÓDIO DE PERDIÇÃO
Hoje não se lê, folheia-se (Eça de Queiroz).
A minha condição de octogenário trouxe-me a felicidade dos meus antigos e dedicados alunos, da sempre saudosa Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque de Lourenço Marques,
saudarem mais em mim possíveis qualidades de magistério de duas décadas na chamada “Pérola do Índico” do que apontarem efectivos defeitos meus. Seja como for, bem haja tão generosa amizade. E que bem ela sabe!
Mas de uma coisa estou certo, sem desmentido que possa colher juros em terreno fértil de maldizer: eu que leccionei nessa Escola, depois no antigo Liceu D. João III (hoje Escola Secundária de José Falcão de Coimbra) e nas Universidades de Coimbra e do Porto, sempre que leio comentários dos “industriais” aos meus posts, sinto um orgulho imenso pela forma ortográfica isenta de erros e a mameira escorreita como os redigem. E, “ipso facto”, teço palavras de louvor à vossa antiga professora de Português, Emília Madureira, sem esquecer , todavia, um certo masoquismo em desfeitear os alunos em provas de exame oral.
Já para não falar no aberrante Novo Acordo Ortográfico,
o artigo de Nuno Pacheco com o sugestivo título “Antiensino”, sobre os tratos de polé de que a Língua de Camões foi vítima durante o chamado PREC, e mesmo em décadas posteriores, é tanto mais de louvar numa época em que se encarceraram em grades de “apagada e vil tristeza” os nomes maiores da nossa Literatura, através de Programas Curriculares sem pés nem cabeça (Público, 12/10/2003). Do supracitado artigo, transcrevo este naco de prosa:
“Nessa altura discutiam-se as muitos discutíveis reformas curriculares que ‘limparam’ do 10.º ano muitas referências literárias trocando-as por ‘textos informativos, ‘textos dos media’, textos de carácter autobiográfico’, textos expressivos e criativos do século XX’. Quem na altura pasmou com a troca foi apelidado de antiquado: quem tem televisão ou Internet em casa dificilmente será seduzido a amar os livros, para mais os fora de moda. Agora já podemos confirmar, com provas indesmentíveis e aterradoras, onde queriam chegar tal iluminados. Basta atentar no conteúdo, divulgado ontem no PUBLICO, de alguns manuais de Português B para o 10.º ano. Lá estão, como base de ‘aprendizagem’ o Big Brother, as programações da TV Guia ou as telenovelas envolvendo os alunos num passatempo onde são convidados a dizer ‘o que levou Tomé a expulsar Maria de casa’ ou quem é que ‘Rodrigo agride violentamente, deixando-o cego’. Imagina-se o esforço intelectual das pobres criaturas: explicar quem é Tomé porque embirrou com a pobre Maria, que por sua vez nem conhecia o tal Rodrigo que cegou um zé-ninguém infeliz…”.
Grosso modo, sete anos volvidos (05/08/2011), na secção de “Cultura”, deste mesmo jornal , em título à largura de toda a página – “Os franceses estão a redescobrir Camilo” – deparei-me com a seguinte notícia: “O filme ‘Mistérios de Lisboa’ já fez mais de 100 mil espectadores em França”.
Facto este que, mesmo que mantidas as devidas proporções populacionais entre o país da “Cidade das Luzes” e a pátria de Camões, não me faria estranhar que a falta de hábitos de leitura dos nossos actuais escolares preferisse ver a adaptação cinematográfica de “Amor de Perdição”, de António Lopes Ribeiro (1943), a “perder tempo” em ler (ou sequer a folhear!) a respectiva obra literária que muito apreciada foi, em herança ancestral, pela juventude do meu tempo.
Por estarmos em presença de um interculturalismo sem fronteiras geográficas, que o galo gaulês representa com panache, bem se compreende que o livro “Mistérios de Lisboa” (traduzido para francês por “Mystéres de Lisbonne”) esteja no (ainda segundo o jornal PÚBLICO) “no top dos livros mais vendidos na Fnac Forum de Paris, a maior das lojas Fnac do país”. Acresce que este interesse pelo escritor de São Miguel de Seide passa, outrossim, em citação da mesma fonte “pela edição francesa do livro “Amor de Perdição” (“Amour de perdition”), feita em França há uma dezena de anos e difícil de encontrar nas livrarias”.
Desta forma se cumpriu, uma vez mais, o aforisma português de que santos ao pé da porta não fazem milagres. Mas daí a cometer o pecado de expurgar a prosa camiliana, segundo Maria Amélia Vaz de Carvalho, “personificação do génio português”, da bibliografia dos programas escolares, representou um verdadeiro roubo feito à Literatura Portuguesa e à própria Cultura de um mundo sem fronteiras.
Camilo sofreu do pecado de se deixar enredar pelas teias da paixão escandalosa por Ana Plácido sem conseguir, por outro lado, libertar-se de uma sua outra paixão, esta de pendor literário: a polémica, por vezes, trauliteira . Polémica de que colho este exemplo em ataque dirigido ao jornalista Mariano Pina: “Cada vez mais charro. E perfeitamente um sapateiro de máscara a dizer pilhérias que tresandam ao cerol”.
Todavia, sempre que se fala de Camilo não podemos divorciá-lo do seu papel de grande vulto da Língua Pátria e, muito menos, do “ódio de perdição” que os responsáveis, ao tempo, da 5 de Outubro lhe dispensaram por omissão, ou mesmo assassinato, nos então vigentes programas da disciplina de Português do ensino secundário. A Língua Materna é, ou devia ser, obrigatoriamente, a argamassa da forma de nos expressarmos oralmente ou por escrito, de forma correcta, e que tanto útil , é, ou devia ser, aos cientistas, aos jornalistas ou mesmo ao simples homem comum.
Um cientista incapaz de defender em português correcto as suas teses ou relatar as suas experiências científicas, um jornalista que tenha “lapsus calami” por sistema , um professor que num documento escreva “senhor presidente do ‘Concelho’ Directivo”, um aluno que, na ausência da muleta do corrector ortográfico dos computadores, em cada três palavras dê um erro, o homem comum que dê pontapés na gramática com o à-vontade de um Cristiano Ronaldo a chutar à baliza, tornam-se mais notados pela negativa, no seu dia-a-dia, que um médico que não saiba distinguir o barlavento do sotavento, um professor de Português que não saiba somar fracções ou um aluno que “não entre” na Matemática prosseguindo, ipso facto, cursos das chamada Humanidades. Mas não se pense com isto que estou a descriminar qualquer destas formas de ignorância: todas elas merecem a minha reprovação por amputarem o homem de uma necessária cultura geral que acompanhe o conhecimento específico dos complexos saberes das diversas profissões.
Mas é bom que se retenha que a irresponsabilidade praticada, ao tempo, pelo Ministério da Educação sob a tutela do Partido Socialista se poderia ter tornado numa centelha do enredo do romance de ficção científica “Fahrenheit 451”, da autoria de Ray Bradbury , em que os livros eram incendiados por bombeiros de um regime totalitário para não distraírem as pessoas tornando-as menos produtivas.
Não, não estou, com isto, de forma alguma, a querer ver na proscrição da obra de Camilo, ou de outros autores portugueses que se notabilizaram no rico espólio da nossa literatura nacional, um sistema educativo tutelado por um regime totalitário.
Camilo Castelo Branco
Apenas a pretender dizer que a ignorância oficial e oficializada é também ela uma forma de ditadura por roubar ao aluno o prazer cultural da leitura escolar dos nossos melhores escritores e poetas podendo hoje, num tempo em que tanto pânico causa o “ébola”, a título de mero exemplo epidémico, vir a dificultar ao aluno espanhol a leitura de Cervantes, a complicar ao aluno francês o deleite da visitação do Museu de Louvre ou a empecer ao aluno alemão a audição da Orquestre Sinfónica de Berlim. Ou seja, uma Cultura de costas voltadas para as Belas-Letras, para as Belas-Artes e para a Música Clássica.
Em resumo, em reprovação do próprio Bill Gates, um mundo novo em que a matriz cultural poderá vir a ceder lugar às novas e miríficas tecnologias da invasão dos computadores nas escolas portuguesas em idades precoces: “Meus filhos terão computadores, sim, mas antes terão livros. Sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever – inclusive a sua própria história”.
Mas, em contrapartida, regressando aos meus tempos de juventude, em que os computadores nem sequer faziam parte de um devir próximo, não posso deixar de confessar a minha iliteracia informática (o meu bom amigo Samuel bem a pode testemunhar com mails que, por vezes, lhe envio e em que me esqueço de enviar os anexos dos textos dos posts!). Aliás, como nos ensina o nosso ditado popular, “burro velho não aprende línguas”. Ou como dizem os naturais da “Velha Albion”, em linguagem de “gentleman”: “My mind’s made up, d’ont confuse me with facts”.