SEM CONTEMPORIZAR
“Grande número de políticos ou de universitários, carregados de diplomas, possuem uma mentalidade de bárbaros e não podem, portanto, ter por guia, na vida, senão uma alma de bárbaros” (Gustave Le Bon, “Les Opinions et les Croyances”).
Um jocoso, mas muito oportuno artigo – transcrito, parcialmente neste blogue, com o saboroso título “Ó Sr. Prof. Dr. Eng.!” (“Observador”, 31/08/2014), da autoria de Lucy Pepper, de nacionalidade inglesa a viver em Portugal – aborda o tema dos graus académicos tendo, como tal, muito que se lhe diga.
E eu, melhor do que ninguém, sei do que falo. Como, possivelmente, um ou outro leitor da antiga Lourenço Marques esteja lembrado, reporto-me à polémica mantida a este respeito por mim com a revista “Tempo” de Lourenço Marques. Polémica, aliás, que o não chegou a ser na imprensa por o princípio “democrático” da supracitada revista nunca ter publicado a minha resposta a um artigo da autoria do jornalista Rui Cartaxana.
Esse facto levou-me a publicar um livro, rapidamente esgotado, com o título “sem conTEMPOrizar” (Lourenço Marques 1972, 83 páginas).
Vivia-se, então, um tempo em que a obtenção de um curso superior exigia “sangue, suor e lágrimas”. E respeito! Nos dias de hoje, certas licenciaturas em algumas universidades privadas foram (ou são) obtidas em nome de uma propagada e pretensa democratização do ensino que mais não passou de uma vergonhosa mediocratização.
Do meu livro supracitado escrito numa altura em que não havia o acesso à Internet, apenas a consulta demorada e extenuante a bibliotecas públicas ou pessoais, transcrevo uma carta da minha autoria, não publicada na revista “Tempo”, ao contrário de uma carta, como diria Eça, “escrita de pena ao vento”, dirigida a este semanário, por um leitor assíduo, em que se queixava dos perigos advindos do tratamento por dr, atribuído a indivíduos não licenciados, que foi publicada no jornal “Notícias” com o seguinte título: “A legalidade do tratamento por Dr.” Nessa minha carta escrevi:
«Uma carta vindo a lume numa revista local impele-me a ventilar um assunto que embora já debatido ainda apresenta o seu quê de tabu.
Da autoria de um leitor anónimo, transcrevo a parte que interessa para o caso:
‘Assim, segui com muito interesse a reportagem do caso do falso médico de João Belo e ocorreu-me lembrar que outras reportagens de igual interesse poderiam surgir na vossa revista focando o problema de falsos títulos. É que dar o tratamento de ‘doutor’ a quem não tem qualquer licenciatura, e por vezes até se ignora onde completou os estudos liceais, é grave e arrasta consigo consequências graves.
Para aqueles que se enfeitam com penas de pavão e se deixam dar tal tratamento sabendo que a ele não tem direito, gostaria que a vossa pena não ficasse silenciosa’.”
Por princípio respeito toda e qualquer opinião se devidamente fundamentada. Ora, parece-me, no caso presente, que ela constitui um modo de ver o problema unilateralmente e dentro de um espírito discutivelmente lícito.
Para o efeito, reporto-me à opinião de peso por parte de um Professor da Universidade de Coimbra, figura grada no mundo das Letras. Refiro-me ao Professor Sá Nogueira que escreveu numa das suas obras:
“Nos cursos superiores há coisas curiosas: os formados pelas faculdades de Letras, Ciências e de Direito são licenciados; os médicos e veterinários são doutores.
Em presença disto que fazem os licenciados? Para não desmentir o espírito nacional, fingem que não conhecem a lei e, como quem não quer a coisa, deixam-se chamar doutores, quando se não intitulam a si próprios.”
(…) Chegado a este ponto do meu raciocínio julgo defensável a atribuição deste tratamento ao “uso e costume”.
(…) Acresce em defesa desta tese, o facto de aos médicos diplomados pela Escola Médica de Goa (escola superior não universitária) ser atribuído igual tratamento ao dos indivíduos licenciados por faculdades.
Como se vê, este problema de atribuição do tratamento por dr. não é actual. Esta forma de tratamento, tem sido consignado pelo “uso e costume” transmitido de geração em geração.
Para o respectivo estudo torna-se necessário fazer uma retrospectiva do ensino superior português nas últimas décadas. É o que me proponho fazer.
Até aos últimos tempos da Monarquia em Portugal havia apenas a Universidade de Coimbra e diversas escolas superiores espalhadas por Lisboa e Porto. Com o advento da República é criada, em 1911, a Universidade Clássica de Lisboa, pela reunião de escolas superiores que ministravam o ensino de Medicina, Letras, Ciências e Direito.
Por decreto de 1930, estabelece-se a Universidade Técnica de Lisboa com os cursos de Ciências Económicas e Financeiras, Agronomia, Engenharia (IST) e Veterinária. Segundo o Decreto n.º 36507, de 17 e Setembro de 1947, existem, actualmente, em Portugal, os seguintes Cursos Superiores com acesso através das respectivas alíneas do 3.º ciclo do ensino liceal:
a) Filologia Clássica, Filologia Românica; b) Filologia Germânica; c) Ciências Geográficas; d) Ciências Histórico-Filosóficas; e) Direito; f) Medicina, Ciências Matemáticas, Fisico-Químicas, Biológicas, Geofísicas, Faculdade de Engenharia, Instituto Superior Técnico, Escolas Militares, Instituto Superior de Agronomia, Escola Superior de Medicina Veterinária, Faculdade e Escolas de Farmácia, Instituto Nacional de Educação Física; g) Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeira e Escola Superior Colonial; h) Arquitectura.
Ou seja, verifica-se pelo exposto que existiram em Portugal (até 1911) médicos licenciados pela Universidade de Coimbra e Escolas Superiores de Medicina de Lisboa e Porto.
Pois bem. Seriam os médicos licenciados em Coimbra tratados por dr. e os diplomado em Lisboa e no Porto por senhor fulano ou senhor médico?
Decididamente que não. O que demonstra o seguinte: o que consigna o uso e costume o tratamento por dr. não é, através da tradição portuguesa a obtenção de uma carta de curso universitário mas, lato sensu, a de um curso superior universitário ou não.
Verifica-se, até que os engenheiros – licenciados por faculdades ou IST – preferem o título profissional de engenheiro e não o tratamento por dr.».
Aproveitando-se da deixa (ou seja do teor da minha carta no “Notícias” que a revista “Tempo” não publicou, embora para ela tivesse sido enviada inicialmente) para atingir, ainda que sem mencionar os respectivos nomes, pessoas públicas de Lourenço Marques, escreveu Rui Cartaxana, na revista “Tempo, de que era director, com o título “Os drs pela Universidade dos usos e costumes”. Desse texto de Rui Cartaxana transcrevo alguns excertos:
“Por exemplo: quando um simples licenciado, excepcionalmente contratado como professor de um curso universitário, ‘arranja’ uma universidade fantasma, algures em Espanha, e reivindica para si o tratamento que a Lei reserva apenas aos professores catedráticos, que havemos nós de lhe chamar, sem atropelar a lei? Deverá entrar em cena o Direito Consuetudinário, com pretende o “dr.” Rui Baptista? E os verdadeiros professores catedráticos que pensarão ou como os devemos passar a tratar? Outro exemplo: poderá alguma vez, ou será legitimo, um curso intensivo de seis meses de Islamismo, ou Civilizações Médio-Orientais, tirado numa universidade francesa de terceira ordem, que até se pode obter por correspondência, dar direito a doutor (por extenso e tudo). Na verdade, perante alguns destes casos, o falso médico de João Belo não passa de um ingénuo e risível amador de trazer por casa”.
Sobre esta temática, seguiram-se diversas cartas por mim enviadas ao semanário “Tempo”
que nunca foram publicadas tendo, como tal, dado azo à publicação do meu livro, aqui já citado , “sem conTEMPOrizar”.
Embora, Fialho de Almeida (1857-1911) tenha escrito, “não se exija ao povo metamorfoses que a tradição lhes inveterou secularmente”, perante a chusma de cursos superiores (essencialmente privados) que formam “licenciados” que se sentam (ou sentaram) nas bancadas da Assembleia Nacional ou ocupam (ou ocuparam) lugares de destaque no governo da nação chego a convencer-me que chegou a altura dos usufrutuários de cursos superiores exigentes deixarem de ser tratados por “Prof, Dr. Eng” (a que acrescento a sigla de Arq. (arquitecto) passando a ser tratados simplesmente por senhor fulano de tal para se distinguirem dos “licenciados” que proliferam, hoje nesta “ocidental praia lusitana”, como cogumelos em terreno húmido.
Embora reconheça, todavia, ser difícil num país como o nosso em que ser primeiro-ministro ou ministro não é suficiente sem o ouropel de eng. ou dr. a anteceder o respectivo nome. Aliás, exemplificado com os badalados casos de José Sócrates e Miguel Relvas.
Redimo-me, portanto, de ter defendido, em princípios dos anos 70, uma causa que a situação actual tem como insustentável abjurando-a hoje. Ou seja, como diriam os latinos, mea culpa!
Rui Baptista – 21.03.2016