A saga notável do “Rodinhas”
Por Fernando Lima
Soube do bullying sentado no sofá. A ver televisão.
Com bons debates. Pontos de vista diversificados.
Fiquei a saber que o bullying sempre acompanhou a nossa infância e adolescência.
No nosso caso, nas disputas num descampado mesmo ao lado da “João Belo”, ali para os lados da Karl Marx. Não me apetece escrever o nome actual da escola. O poeta Craveirinha dizia sempre que nunca iria pronunciar o nome do Largo Albasini, ali onde começa a Rua dos Irmãos Robi ao Alto Maé.
Tudo era disputado depois da saída das aulas às 12horas.
Falta de partilha do lanche, uma graçola da professora seguida de gargalhada alarve, umas reguadas a destempo, porque se embirrava com os gordos, com os de pele muito branca e faces rosadas, porque tinham sapatos de sola grossa da caixa escolar, com os de cabelo espetado, com os que tinham óculos, porque usavam calças com cinto acima da cintura ou pura e simplesmente porque tinham um andar “às dez para as duas”, logo, sugerindo um ar efeminado.
Era tudo pretexto para murros, pontapés, dedos tenazes em volta do pescoço. Algum sangue a jorrar do nariz porque o calor era muito.
Era assim a lei do mais forte.
E em casa era preciso rematar sempre que demos a resposta adequada. Que o oponente não foi para casa a rir. Senão, o festival do sopapo e pontapé continuava em versão doméstica.
Foi assim que crescemos. Lutar sempre para não ficar por baixo.
“Bad boy”
Anos mais tarde chego à Escola Comercial. E o faroeste continuava.
As idades possibilitavam tudo. Melhor dizendo, a diferença de idades.
Havia os miúdos que vinham das escolas preparatórias, 12-13 anos, e depois, os “gandulos”, que eram expulsos dos liceus porque, com mais de 18 anos, não eram aceites no ensino diurno.
As turmas eram feitas nesta anti-pedagogia. As professoras mais novinhas tinham uma atitude estoica para enfrentar “esta malta”. Havia alunos que à noite tocavam em conjuntos musicais no Polana e no Cardoso. Ou jogavam basquetebol nas equipas seniores da capital. Era um “status” entrar na sala de aulas com olheiras.
Foi neste contexto que conheci o Américo Soares. Um bem disposto permanente.
Andava um ano à frente. Era paralítico. Usava muletas e uma cadeira de rodas feita em serralharia. Dizem que ficou assim por causa de uma injecção fora de prazo.
A cadeira tinha duas rodas de bicicleta atrás e à frente, apenas uma. Era mais um triciclo, ou uma alcofa montada em cima de três rodas, sendo que a parte dianteira permitia ao “veículo” mudar de direcção.
O que era motivo de alta diversão na escola.
Nos intervalos, o Américo Soares ficava de muletas e o seu triciclo era usado para corridas no pátio poeirento.
Pelas gargalhadas, acho que ele se divertia genuinamente.
Aliás, sempre o conheci como um bem disposto.
Para estar dentro da “psicologia de grupo”, também se “portava mal” com os professores. Claramente, um “bad boy” (um rapaz mau).
Nos tempos, levar “falta disciplinar” com “bic vermelha” era como ser medalhado. Na praxe escolar, havia um referencial de simpatia para os que acumulavam três faltas. Um cabo de trabalhos para os pais que tinham que relevar a falta para não verem o ano escolar do educando ir água abaixo.
Os trinchados do Tico-Tico
Anos mais tarde, fora da escola, o Américo reaparece-me nos círculos cine-clubistas. Depois das sessões cinéfilas na baixa da capital, no 222, se a memória não me trai, havia intermináveis sessões de trinchados e cerveja a copo no Tico-Tico, mesmo em frente ao “Self”, uma residência universitária com fama de subversiva, à época. Agora, os comensais estacionam os carros à porta do lar.
Não sei explicar bem, mas o bom do Américo era contra a guerra colonial e, apesar de não correr o risco de incorporação na tropa, parte para o exílio com um grupo de amigos. Contam-me que atravessou os Pirinéus no seu famoso triciclo. Mas a estória, aparentemente, era exagerada e fantasiosa.
Vai parar à Suécia a um campo para refugiados. Em ambiente hostil à guerra colonial, o “Dagens Nyheter”, o grande jornal de referência sueco, entrevista-o, titulando, “Nem os paralíticos apoiam Portugal”. A segurança social acompanhou o caso pelo matutino e oferece a Américo Soares uma carrinha Volvo (station wagon) tripulada apenas com as mãos.
É com essa “bomba” que Américo Soares desembarca em Maputo depois da independência.
Atalhando, rapidamente chega a director do novel Instituto Nacional de Cinema, no edifício adaptado da “Casa das Beiras”, um trabalho notável do arquitecto Forjaz. Não havia vídeo, não havia televisão. A revolução precisava de memória. O registo à mão era a película em filme.
Vida de kuxa kanema
Muito do que Américo Soares e o seu reduzido núcleo fez foi verdadeiro pioneirismo. A maior parte dos novos técnicos fazedores de cinema foram recrutados por “guia de marcha” da Secretaria de Estado do Trabalho.
No exterior, o que se fazia em Moçambique atraía atenções importantes. Regressa Ruy Guerra que tinha feito fama no Brasil com o filme “Os cafajestes”. Chega também Jean Rouch, que defendia que o melhor registo dos acontecimentos em Moçambique devia ser feito para cameras versáteis “super 8”, em vez das máquinas mais pesadas “Arriflex”, de 35mm.
Ficaram memoráveis as madrugadas até ao amanhecer na casa do realizador Fernando Silva para se discutir/debater cinema, num tempo em que isso era um luxo, embora à esquerda, a margem de manobra fosse muito maior.
A ortodoxia não arriscava confrontos com Godard.
Tal como nas corridas de triciclo na Escola Comercial, Américo Soares movimentava-se bem no meio do caos quase total que era a produção cinematográfica dos primeiros anos do INC. Nos círculos conspirativos, à esquerda e à direita, o director que também usava balalaica creme, era tratado por “rodinhas”.
Tal como nas outras áreas da comunicação, a ortodoxia era forte, poderosa e movimentava-se bem nos corredores do poder. Para além dos ventos de Leste, havia a ortodoxia de Londres que procurava capitalizar anos de punho fechado em defesa do “maquis” de Cabo Delgado e Niassa.
Na minha interpretação pessoal, o vanguardismo do INC só foi possível com o apoio voluntarioso de José Luis Cabaço e a sua ligação com Samora Machel que percebia o poder e a força mobilizadora da imagem.
Nos corredores do INC cruzavam-se Ruy Guerra, Jean Luc Godard e guionistas cubanos atentos aos reptos da América Latina. Um dia cruzo-me com Regis Debray nos corredores da antiga pensão onde funcionava o ministério e a agência de informação. Debray tinha sido liberto das prisões bolivianas depois de uma longa temporada em que compartilhou com Che Guevara a utopia do levantamento campesino na América Latina.
O muro de Berlim que não houve
O INC era este mundo.
Meio fantasia mas muito trabalho para registar o que de novo estava a acontecer num país fervilhando de novas utopias. Na área documental, são incontornáveis os magazines informativos que levaram o nome de “kuxa Kanema” e a que estão associados muitos jovens realizadores dos anos 70 e os jornalistas que escreviam os textos que acompanhavam os jornais noticiosos. Nos meios rurais, milhares de pessoas viam pela primeira vez, fascinados, imagens em movimento com estórias do seu próprio país.
Na sombra, nunca triunfou a corrente jdanovista do realismo socialista que pretendia trazer para a novel cinematografia moçambicana a influência da União Soviética e da RDA. O CAIL (Complexo Agro-Industrial do Limpopo) transformou-se num importante centro de confrontação ideológica, pois, por via do cinema do INC pretendiam-se mostrar as imagens dos “novos kolkhozes” moçambicanos, com máquinas combinadas importadas da Bulgária. Como as máquinas se enterravam facilmente nos arrozais do Chókwé, as imagens eram feitas nos parques de máquinas com intermináveis desfiles decalcados dos modelos soviéticos. Infelizmente, ou naturalmente, as confrontações não eram apenas no cinema.
Américo Soares sobreviveu a todas essas convulsões lutando muitas vezes quixostescamente contra o impossível. Por exemplo, como importar directamente película “kodak” sem pagar “royalties” à “Casa Bayly” que era a representante legal da marca americana. Como se os CFM pudessem contornar os “royalties” devidos ao representante da General Electric por cada GT22 que colocavam nas ferrovias moçambicanas.
Como as revoluções ou o seu epílogo deixam muitos amargos de boca, Américo Soares deixa Moçambique para um novo exílio em Portugal. Sempre com a sua inquebrantável energia e o desejo de fazer novas coisas. Estabelece-se em Avanca, perto de Aveiro. E consegue os direitos da película Fuji para fazer máquinas de revelações rápidas. A ideia fui um sucesso instantâneo como o foi uma experiência sucedânea com a cooperativa Alfa em Maputo. Mais uma revolução. Quase em simultâneo, lança um “franchise” em todos os PALOP, a “Moldura Minuto”, uma forma barata de fazer caixilharia, mas com assinaláveis padrões estéticos para enquadrar retratos e peças de arte. Mais uma ideia de sucesso que o fez triunfar na “frente de negócios” que estendeu também à Africa do Sul e ao Brasil. Em Maputo, ainda hoje, grande parte dos ministérios encomenda na “moldura minuto”, os quadros com as fotos oficiais do PR.
Com energia “para dar e vender”, em Avanca, Américo Soares cria ainda uma pequena distribuidora de filmes, para além de estar ligado ao Festival Internacional de Cinema, Televisão, Video e Multimedia.
A morte apanhou-o desprevenido na penúltima quarta-feira de Dezembro.
Para trás fica uma fantástica estória de vida. Ou um livro de aventuras.
De um dos que a vida nunca derrotou.
Autor: Fernando Lima (Presidente do concelho de administração da Mediacoop que detém o semanário moçambicano SAVANA)
7 Comentários
LUIS TRIGO DE MORAIS
Foi com tristeza que tomei conhecimento do falecimento do Américo à uns dias atrás.
Foi contudo com alegria que li a maravilhosa narrativa do Fernando Lima sobre alguns periodos da vida do Américo. Alegria, porque me fez recordar alguns bons momentos passados naquela tão especial Escola Comercial, nas aulas e nos intervalos.
Descansa em paz amigo.
Condolências à familia enlutada.
Manuel Martins Terra
Uma história de vida bem relatada por Fernando de Lima, que nos traz ao conhecimento o exemplo de vida de Américo Soares, mostrando que a fé e a vontade do ser humano, move montanhas. A par da história do Américo, o Fernando avivou-nos episódios do nosso quotidiano, enquanto estudantes . À familia do Américo,os meus pêsames e que descanse em. paz.
Ana Paula Parente
Linda narracao da vida do Americo Soares, nosso colega. Obrigada Fernando pela linda historia e que a alma do Americo esteja em paz. Abraco a todos e ao Fernando!
Carlos Hidalgo Pinto
Que descanse em paz.
Condolências à família.
IP
Que maravilha! Obrigada.
Isabel.
ABM
Magnifico.
O Fernando Lima, que sabe escrever e que viu o que viu, deve ter dez mil histórias como esta na gaveta. Que saiam. ABM
Celisa Silveira Quelhas
Fantastico!
Fez-me dar muitas voltas à minha memória, pois acompanhei uma grande parte da trajectoria da vida do Américo Soares, que viveu proximo da minha casa.
Um abraço amigo Fernando Lima.