“Namorados” – Por Fernando Lima
Perguntam-me, Zundapp é nome de quê ?
De mota. Como eram as “Sachs V5” (quem tinha era máguérra). Tomahatsu era a mais estilosa, antes de aparecer a Honda, propriedade de um conhecido cardiologista local.
Lembra-me da Florett. De uma Florett, vermelha e preta, resfolegando a subir a Paulo Samuel Kamkhomba, ali mesmo na escola João Belo. Passava todas as manhãs. Com o dono, a esposa montada de lado, braço arredondado à volta da barriga do próprio, a filha sobre o tanque da gasosa, um enorme cesto de verduras preso com tira de borracha de câmara-de-ar na parte traseira. Grandes motas, as Florett.
Passava também o carro do lixo, trabalhadores de caqui, CMLM nas costas (Câmara Municipal de Lourenço Marques). Ficavam furiosos quando usámos aquelas outras palavras para dizer CMLM, que lembra balde e Zavala.
Nós, acompanhávamos todos os dias, enquanto comprávamos amendoim embrulhado em folhas amarelecidas de páginas amarelas, chuinga de balão com cromo Yul Bryner de bacela, pirolitos verde-vermelho dois uma quinhenta, montinho de gengiva canela.
Pretexto para olhar para ela.
Ela quem ?
A namorada. Bata branca, pesponto azul, pasta Leitz com folhas e livros encostados ao peito, à espera do “19”, Xipamanine-Museu. Era namorada mas ela não sabia. Decidíamos nas nossas cabeças. Curtíamos arrebatados o mais puro dos platonismos, palavrão que viemos a descobrir mais tarde, quando desaguámos na literatura e na filosofia. Era minha, era dele, de mais uns quantos, tantos quantas cabeças elegessem a musa como A namorada. Quando fumávamos Havana castanho, 20 sobre 20, escondidos num qualquer lugar, o papel era doce, carteiras de fósforos ardidas para coleccionar Yaúca, Santana, Matateu e Águas. Posso trocar Júlio César e Marco António por Cleópatra ?
“É minha”, “é mas é minha porque olhou para mim esta manhã”, “mas eu vi primeiro”. Tantos pretextos para uma sessão de piropos, sopapos e tabefes ali no descampado em frente à escola. Mas no recreio do lanche lá estávamos empoleirados no muro a espreitar as manas Pinto, da D. Leonor Sá Sepúlveda. Mais tarde, acontecia o mesmo com a Lúcia, que apanhava o autocarro CTM para os estudantes, todos os dias às 06.30h. , na esquina do “Madruga”, na estrada velha da Matola. Ou com a Farida da Mafalala, que punha os nossos corações em alvoroço com bata de popelina fora das normas, bainha a meio das coxas, fita vermelha do “Comércio” sobre a bunda dengosa. No tempo do Percy Sledge, da Jane Birkin e do “Je t’aime mois non plus”, dos “parties” da garagem com “luzes psicadélicas” embrulhadas em papel celofane colorido, com “arrancadores” de lâmpada néon.
Eram as nossas namoradas. Mas elas não sabiam. Até hoje não sabem.
Xi, é mesmo falajar de quarentão em tempo de Internet. Que nada. Até posso ir ao centro de Inhambane, do poeta Xiphefo montado no Rocinante, imaginando Porto Alegre e globalização acenando à marginalidade com computadores. Ali, onde no pasa nada, arranjo dez namoradas sem ruborizar, roer as unhas ou gaguejar. Sou esbelto, louro, atleta, culto graças à Encarta, negão reluzente. Tudo na Internet. Falo com a Irlanda, com Roma, Valparaíso. De Inhambane para Inhambane: desejo@objectivo.org.Vou ao sítio “montanha azul” e mando o “bouquet” com as mais vermelhas rosas ou morangos do Nordeste ao valentino\valentina de ocasião. Até posso fazer “sexo seguro” com “webcam” (olho óptico) ligada ao computador.
São os namoradinhos do século XXI.
Agora que a Jane Birkin já não vai aos bailes de garagem e a Farida se mudou para o Polana Cimento.
Nota: a Avª Paulo Samuel Kankomba é a antiga Avª Gomes Freire.
Um Comentário
Mun Tó
Adorei este curto mas tão rico artigo que me fez sorrir e recordar esses belos tempos vividos tão intensamente. Parabens pela bela escrita!