“Olá…! Olé, Olá…!” – Por Carlos Gil (Crónica retirada do livro Xicuembo)
As bancadas estão quase repletas e foi com esforço que conseguiu subir para as filas mais altaneiras onde gostava de assistir aos jogos, com uma visão total da multidão que enchia o pavilhão e do rectângulo iluminado onde os ídolos faziam magia com a bola.
Nessa tarde a fila para os bilhetes alongara-se por umas dezenas de metros mas ele não se importara de esperar pois era ali que o jogo começava. Os comentários dos ferrenhos que discutiam as equipas, juravam prognósticos e adiantavam estratégias para anular as estrelas adversárias eram parte fundamental do espectáculo do jogo, que gostava de partilhar silenciosamente, ouvindo e aprendendo.
Um rumor persistente flutua no pavilhão com as conversas, os risos dos mais jovens sempre irrequietos, gritos de chamamento a amigos, e num dos topos a claque do Desportivo de LM já ensaia a sua coreografia vocal.
Das cabines emerge sob ruidosos aplausos e gritos de incentivo, e muitos assobios, a equipe da casa, o poderoso Sporting de LM e as suas estrelas vão-se sucedendo na entrada para o aquecimento, com exclamações nas bancadas de reconhecimento aos astros. À frente os “mais” de todos, Mário de Albuquerque e Nelson Serra, depois o Vítor Morgado na sua magreza longuínea plena de energia, e uma cabeça loira emerge lá atrás, no túnel: Hucks, o gigante sul-africano vai jogar!
Desajeitado em perícia, mas os seus imponentes 2,14 fazem valer-se nas tabelas mesmo que demore “meia hora” a correr duma a outra… o último a entrar é o grego, o Vassilius Goumas.
A multidão sportinguista ruge e explode em gritos de satisfação quando o Nelson ensaia as suas mortíferas “meias-distâncias” e vê-se que está com a “mão quente”: só falha o primeiro lançamento! Os incitamentos redobram quando o maestro Mário afunda com aquela calma que lhe é peculiar pois parece executar os movimentos mais hábeis sem esforço visível e numa elegância que até os adeptos adversários aplaudem, por de classe inquestionável. Por contraste e fazendo o pavilhão estremecer com os aplausos, logo Vassilius o segue mas deixando-se ficar pendurado no cesto breves segundos sendo o rangido da tabela audível por todos.
Um grito forte emerge das bancadas, secundado por palmas intensas quando o primeiro jogador do Desportivo aparece em campo, seguido por todo o grupo. Frank Martiniuk, nem mais! O norte-americano que encantava uma legião de adeptos do bom basquetebol, com os seus compridos cabelos loiros caindo em caracóis sobre os ombros, emoldurando a sua face onde sobressaíam as bastas patilhas – outra das suas imagens de marca. Entra à frente da equipa batendo energicamente a bola com uma segurança que de imediato contagiou os adeptos “alvi-negros” que irrompem em aplausos que se sobrepõem aos apupos e assobios leoninos. Atrás, o Paulinho, o Manuel Lima e o Arruda, as estrelas sucedem-se e, certamente, o eco que o pavilhão gera ouve-se em toda a zona da baixa da cidade, fronteira ao pavilhão do Sporting.
A claque do Desportivo faz ouvir ritmadamente o seu mais famoso cântico de guerra, chefiada pelo “Tubarão”, o futebolista brasileiro que rapidamente adoptara-se como “laurentino” e com um bom gosto acentuado pelas suas espécimes femininas mais jovens…
“Olé, Olá! O Desportivo está jogando p’ra ganhar! Olé, olá!”
A agitação nas bancadas é grande e o pavilhão está cheio, com as entradas repletas de atrasados que olham ansiosamente para as bancadas, procurando um espaço que não há, um chamamento que não vem. Na mesa já estão os cronometristas e, nos bancos, os fatos de treino vão-se acumulando, enquanto os treinadores dão as últimas indicações. O círculo de jogadores do Desportivo é o último a desfazer-se, já os árbitros tinham apitado chamando os “cincos” iniciais para a formação de apresentação inicial. Talvez a presença do John Hucks tenha provocado acertos de estratégia para anular os pilares daquela torre imensa, trôpega e lenta, mas imensa…
Hucks raramente jogava pois residia na África do Sul, embora todos os anos o Sporting o inscreve-se no início da época. Hoje era a final do campeonato distrital de Lourenço Marques, era o jogo que ia decidir esta mini-liga cujo título era sempre disputado ardorosamente por cinco equipas, dado que só as duas melhores neste campeonato jogariam na discussão do provincial, e onde eram por norma as favoritas.
Académica, Desportivo, Ferroviário, Malhangalene e Sporting – qualquer delas capaz de noites de glória e mercê do talento dos seus génios conseguir a época perfeita e arrebatar todos os troféus. O Hucks funcionava como se fosse a “arma secreta” do Sporting, que o importava mais pelo factor psicológico atemorizante que por real mais-valia. As suas longas pernas, onde pontificavam uns calções sempre muito puxados para cima e que ficavam à altura do peito da maior parte dos jogadores adversários impressionavam, e os seus braços erguidos eram uma barreira poderosa à frente da tabela, toldando os lançamentos. Impunha a sua altura mas era fraco saltador, e quantas vezes as gargalhadas ecoavam naturais quando era enganado por outro poste um bom palmo mais baixo, ou quando um hábil penetrador passava por ele, em movimento enganador que o deixava “plantado” a olhar para o súbito vazio, e, nas suas costas, saltava à tabela marcando um cesto. Nas disputas nesta o facto de usar óculos em nada o ajudava, e nem o elástico com que os prendia impedia que, por vezes e em movimento mais brusco ou matreiro, um poste adversário os fizesse saltar.
A multidão está ao rubro quando a mesa apita para iniciar a contagem e, no círculo central, Hucks salta mais alto que o Lima, ganhando a bola que endereça ao Mário. Este, na sua proverbial calma, domina-a e recua protegendo-a com o corpo, permitindo a organização das equipas no primeiro ataque do jogo.
Sem surpresa, vê-se que o Desportivo defende à zona, pois é por regra fatal cobrir “homem-a-homem” os malabaristas verdes e brancos. A bola fica com o Nelson Serra e passa-a ao Goumas, que penetra no garrafão passando por um Lima estático, salta para a tabela e… Frank Martiniuk é mais ágil e desarma o lançamento! Todo no ar, entrega a bola ao Paulo de Carvalho que corre perseguido pelo Nelson e pelo Vítor, enquanto os outros procuram posições e coberturas com excepção do inefável John Hucks que ainda vai a meio campo quando o Arruda entra pela linha de fundo e, em elegante salto faz uma “ganchada” por baixo da tabela e marca os primeiros pontos da noite, para o Desportivo!
“Olé, Olá! O Desportivo está jogando p’ra ganhar! Olé, Olá!”
É o delírio nas bancadas e o barulho é ensurdecedor. O puto salta e grita como os outros, irmanado naquele clã anónimo mas de íman poderoso que as cores clubistas reúnem, a noite promete ser de sucesso! Lobrigam-se na bancada por trás da mesa outros heróis da bola ao cesto, tantas vezes carrascos dos leões nas suas aspirações a títulos: os figadais inimigos jogadores da Académica de LM, Quim Neves e Quen Gui, aquele um poste temível e este um dos melhores lançadores que Moçambique conheceu, ainda no tempo em que um cesto eram dois pontos e a modernice da linha de três pontos não era sonhada. Não se manifestam mas trocam entre si comentários quando uma jogada em campo é mais espectacular, quando um desarme acontece com particular brilhantismo e, em letal contra-ataque vai oscilando alternadamente o marcador que, quando o intervalo soa assinala empolgantes 44-39, a favor dos leões.
O Vítor Morgado, que cedo fora substituído pelo Luís Almeida, regressa ao campo por troca com o grego que já acumulava três faltas, parecendo estar em “noite sim” pois converte três lançamentos seguidos do meio do campo, autênticas pedradas nas tabelas que fizeram a bola alojar-se no cesto sem defesas possíveis, e arrancaram fortes aplausos aos afectos, para além dos mordazes comentários já habituais: “- A meter cestos destes deve estar bêbado!”. Era um dos mitos das noites de basquetebol de quartas e sábados; quando o Vítor Morgado dava dois passos além do meio do campo e arremessava a bola à tabela, com uma potência de lançamento que parecia excessiva mas bem certeira após tabelar, dizia-se que estava alcoolizado… Acredito hoje que sem o mínimo fundamento, mas era um dos mitos do basquetebol local e, na altura, o puto acreditava em heróis e nos seus mitos, nas bancadas do sonho e da ilusão havia vaga permanente a construção do imaginário…
No intervalo e receoso de perder o lugar pois não conhecia ninguém que o guardasse, não saiu e comprou um gelado “Quibom”, e entreteve-se a ver os miúdos do mini-basquete num rápido jogo de exibição para encher o programa. Os miúdos esmeravam-se para brilharem perante um auditório risonho e colaborante nos aplausos que nunca eram regateados e, certamente, fazia-os sentirem-se na pele das estrelas que, naquele momento, descansavam e conspiravam nos balneários.
A segunda parte ainda foi mais recheada de emoções que a primeira e esvaiu-se rapidamente sob completo delírio da assistência, tendo na sua parte final o Frank invertido o resultado, afastando-se inteligentemente das tabelas onde era inferiorizado pelas torres leoninas, não falhando um lançamento do canto junto à linha de fundo, e fazendo o “Tubarão” e a sua já rouca claque ganharem forças vocais adicionais para uma sucessão de cânticos que silenciaram os “lagartos”, então muito justamente apreensivos.
“Olé, Olá! O Desportivo está jogando p’ra ganhar! Olé, Olá!”
No “machibombo” que o levava a casa após aquela noite para um dia recordar, os seus olhos brilhavam de satisfação e rememorava jogadas, o corpo franzino ainda eléctrico pelas emoções vividas.
Ah…! um dia ele também seria jogador do Desportivo e, “abafando” um lançamento do Nelson ou afundando na cara do sul-africano que àquela hora já devia ir a caminho do aeroporto, a multidão também cantaria para ele: “Olé, Olá…! Olé, Olá…!”