“UMA DATA NA HISTÓRIA” – 9 de Fevereiro de 2014… Cândido Coelho
“In memoriam” de Cândido Coelho, uma entrevista que ele concedeu ao jornal A VERDADE, em outubro de 2008 e que vale a pena recordar.
Cândido Coelho, o Atleta do Século, foi campeão do decatlo no então espaço português, título que ainda mantém. Ele foi “roubado” ao futebol depois de, no defeso, ter experimentado o atletismo, numa descoberta protagonizada pelo personagem que descobriu Lurdes Mutola: José Craveirinha! A nível interno, ganhou tudo e ainda é o recordista nacional do decatlo e do salto à vara.
Estava-se a uma semana dos Campeonatos de Atletismo de 1968. António Matos, “Tau”, o treinador do Desportivo, não sabia o que fazer para lançar alguém que conquistasse os três pontos do terceiro lugar que, pelas suas contas, lhe garantiriam o título. Na altura, a rivalidade com o Sporting e o Ferroviário era enorme.
Vários novatos se candidataram à experiência, sem conseguirem pular acima dos dois metros. “Posso experimentar”, a voz, tímida, vinha do Cândido Coelho, ainda nos seus verdes 16 anos. Ele era ponta-de-lança dos “alvi-negros” mas, no defeso do futebol, ajudava a equipa de atletismo a amealhar pontos nas corridas. Uma dura vara de alumínio foi entregue ao jovem que antes apenas havia tido experiências, com varapaus de bamboo, longe das pistas. A fasquia foi colocada em 1.80 metro. Facilmente a transpôs. Depois… foi voando, voando, qual imperador das alturas, até ser obrigado a parar, após ultrapassar os 2.80 metros. “Vou ser campeão”, gritava o “Tau”, feliz pela descoberta. Depois mandou parar as tentativas, não fosse o jovem lesionar-se. Nessa semana, já em competição, Cândido Coelho pulou três metros na primeira aparição no salto à vara.
Estava descoberto um dos maiores atletas da especialidade, detentor de um recorde até aos dias que correm. Futebol ou atletismo? No defeso do desporto-rei, divertia-se a “pulverizar” recordes do atletismo, surpreendendo tudo e todos, em várias especialidades. Só que, após mostrar as suas qualidades, no reinício da época de futebol, estalou a “bronca”: por qual das modalidades iria optar, se brilhava em qualquer delas? Craveirinha aconselhou-o a seguir o atletismo. Pôs as cartas na mesa desta maneira: se com tão escassos treinos os resultados eram aqueles, até onde poderia ir quando devidamente preparado? Tudo foi acontecendo à velocidade de um meteoro.
Até que… Decorria o ano de 1972 em em pleno serviço militar no Norte do País, Cândido vem de férias a Lourenço Marques. Realiza algumas provas, apesar há mais de um ano fora das pistas. No salto em altura pulou 1,93 metro que passou a ser o recorde de Moçambique. Noutras provas as boas marcas de sempre. Os nacionais de então iriam reunir em Lisboa as selecções das colónias, mais as representações das províncias portuguesas continentais e insulares. Craveirinha sugere-lhe que integre a Seleção de Moçambique. Cândido não acede, com receio de uma punição militar, caso não regressasse ao Niassa, terminadas as férias. Encetou o regresso, penoso, que durou dois dias. Porém, espantado, e mesmo antes de descarregar as mochilas, viu o comandante da unidade que o recebia mostrar-lhe uma mensagem assinada pelo General Kaúza de Arriaga, comandante-chefe da forças armadas, a ordenar a imediata presença na capital para integrar a representação que partiria para Lisboa. Craveirinha havia “movido montanhas” para obter a autorização!
O inesperado reconhecimento!
Já com cabelos brancos, veio a surpresa da nomeação de Atleta do Século, ao lado de José Magalhães e Lurdes Mutola: – “Surpreendeu-me porque neste país, talvez por falta de cultura desportiva, o reconhecimento pelas figuras que deram algo por Moçambique não é prática corrente.
Valorizo a distinção, mas ressalvo que houve outras pessoas que tiveram grande papel e que continuam esquecidas”. Vai referindo: – “Todas as áreas estão pejadas de oportunistas, preocupados com tudo menos com o que interessa ao desporto. Isso condiciona o surgimento e desenvolvimento dos talentos”. E passa às comparações: – “É tão simples como isto. Num dos últimos nacionais, o primeiro lugar do salto em altura, em seniores, terminou onde eu nunca comecei: 1,65 metro. Repare que, há quase 40 anos, eu punha a fasquia em 1.75 e, às vezes, para chegar mais fresco às marcas que pretendia, colocava-a em 1.85. A minha melhor marca foi 1.93, das melhores de sempre em Moçambique. Como treinador recordista, possui um registo até agora imbatível, como treinador de futebol. No ano de 1982, o Desportivo entrou em campo para o primeiro jogo da segunda volta do Nacional, levando para o campo garrafas de champanhe, em comemoração do título. Autor da proeza? Cândido Coelho.
É que, antes, como que possuído por uma febre, participou em vários cursos de treinador e estágios em Portugal e Brasil. O sucesso no Desportivo não eliminou algumas confusões. Daí que tenha acedido a um convite de Mansur Daúde, de Xai-Xai, para orientar na época seguinte o Gaza que andava pelas ruas da amargura. O seu “dedo”, permitiu ganhar dois títulos provinciais, um dos quais perdido na secretaria.
Sangue no Tartan do Jamor
No Estádio do Jamor, a azáfama era visível. O seu grande adversário no decatlo – conjunto de dez provas – era o Tadeu de Freitas. O tempo para treinar era escasso. Apenas dois dias. E, para agravar, no salto em comprimento os seus sapatos de pregos abriram-lhe uma grande ferida num dedo da mão direita. O médico, face à extensão do rasgão, recomenda-lhe que não participe. Pela frente, haviam entre outras provas, o salto à vara, os lançamentos de peso e dardo, em que a mão lesionada teria que ser chamada. Deitar a toalha ao chão”, era algo que não lhe passava pela cabeça: “disse ao enfermeiro que não iria obedecer. Pedi para que me suturassem o dedo, pois iria tentar fazer o meu melhor.” Esquecendo a dor e pensando apenas em vencer, foi realizando as provas com sucesso, espantando tudo e todos. Até a si próprio. Antes da última corrida, levava já uma vantagem pontual confortável e apenas necessitava de cortar a meta, para obter a pontuação mínima: – “Foi o maior suplício da minha vida. Os 1500 metros eram a prova de que eu menos gostava. Estava cheio de febre, mas sentia que não podia desistir. A ferida sangrava e os meus calções brancos ficaram vermelhos de tanto limpar o sangue que brotava do dedo. O certo é que, após metade da prova, todo o batalhão lhe passara à frente. Exausto, perdera a capacidade de reação. A 150 metros da meta, começou a andar aos ziguezagues. Os colegas da delegação saltaram para a pista, quase empurrando-o para a meta. Ia meio inconsciente, mas despertou a 50 metros da meta devido aos gritos que o iam mantendo em pé. Depois… – “Fechei os olhos, aproveitei o balanço que trazia e caí para a frente, desmaiado. Estiveram quase meia-hora a reanimar-me e, quando subi ao pódio, como Campeão do decatlo, tive que ser amparado por duas pessoas”. Na sua edição do dia seguinte, o prestigiado jornal “A Bola”, titulava: “Sangue no tartan! Cândido Coelho supera a dor!”.
Cândido Coelho, esse eclético desportista moçambicano que praticou ginástica aplicada, basquetebol, hóquei em patins, futebol, futebol de salão e atletismo, foi “Atleta do Século”, de parceria com José Magalhães e Lourdes Mutola.
Faz hoje 8 anos que o “Becas” deixou de estar connosco fisicamente. Que esteja em paz!
Fonte: Jornal a Verdade
4 Comentários
lena relvas
Candido Coelho (Becas) o atleta mais completo que conheci e um amigo incondicional. Tenho muitas saudades tuas meu Querido !
Henrique Lacrau
Companheiro, Amigo, um Ser Humano fantástico com um sorriso que lhe saía da Alma.
Deixaste uma Saudade enorme grande Campeão.
Descansa em PAZ.
Lacrau
Zé rodrigues
Candido “becas” , “ Gente Boa e Campeão “ , um virtuoso desportista. R.I.P.
Manuel Martins Terra
Um verdadeiro campeão, que há oito anos nos deixou. Atleta eclético , que deixou a sua marca em todas as modalidades que praticou, tentando sempre ser o melhor. Fez do GDLM, a sua segunda grande família. Grande, Cândido Coelho, serás eternamente lembrado, pelo o homem e desportista, que sabia como ninguém granjear amizades. Repousa, Cândido, na paz do Senhor.