A Ilha da Xefina
Foi naquelas férias de Natal de 1957…
O homem é formado por corpo, memória e recordações. O corpo é defeituoso, a memória às vezes é mentirosa, mas as recordações fazem dele um jovem na velhice” – Jonh Masefield, adaptado.
Se a memória não me mentir foi em 1957, nas férias de Natal.
Umas semanas antes dessas férias, as turmas da Escola Industrial (EIMA) foram informadas que, na secretaria o Sr. Barqueira aceitava inscrições, em número limitado, para um acampamento organizado pela Mocidade Portuguesa, a realizar na ilha Xefina Grande, com apoio da guarnição militar ali existente.
“…As Ilhas Xefina são três pequenas ilhas estuarinas: a Xefina Grande com cerca de 6,2 km 2, Xefina Pequena e Xefina do Meio situadas da foz do rio Incomáti até ao noroeste da Baía de Maputo.
A proximidade a terra e as extensas áreas de sedimento lodoso permitem agora que nas marés vivas seja possível caminhar até à ilha, pese embora o risco de se ser apanhado pela subida rápida das águas.
Estas ilhas, apesar da sua pequena área, apresentam um elevado potencial florístico. Constituem afloramentos de uma extensa zona sedimentar protegida da erosão direta da ondulação do Oceano Índico por um longo cordão dunar a leste.
Os recifes que circundam as ilhas são considerados como os mais meridionais de África, oferecendo grande interesse para a conservação da natureza dada a sua grande biodiversidade.
A Xefina sofre de grande erosão costeira que tem vindo a diminuir a sua área e a destruir as estruturas existentes. Outro sério problema ambiental é a redução do número de espécies vegetais presentes e a invasão dos mangais degradados por espécies exóticas…”
O nosso acampamento começava numa 2.ª feira e terminava no sábado.
O coordenador era um oficial do exército com a patente de tenente, comandante do pelotão estacionado no aquartelamento da ilha, e contava com o apoio do senhor Marques, contínuo da Escola Industrial, que nós conhecíamos pela alcunha de Picão.
Foi difícil convencer a minha mãe “galinha” para me deixar participar! Mas o meu pai depois de se informar junto da Escola quem eram os organizadores, acompanhantes e apoiantes, autorizou-me a ir.
Embora fôssemos menos de 20 campistas, lembro-me do Malhoa, do Delfim Feliciano, do Dionísio Bacalhau, do Teixeira Pinto e…….. É possível que algum leitor deste artigo se recorde também de outros participantes.
Nessa 2.ª feira apanhámos uma lancha na praia dos pescadores da Costa do Sol que nos levou até à ilha que fica em frente, e relativamente perto.
Quando chegámos as nossas tendas estavam preparadas, dispostas no descampado fora do aquartelamento, e os nossos lugares já estavam destinados.
Possivelmente nenhum de nós sabia, mas também pouco nos importava! Que aquele aquartelamento era uma prisão que albergava desertores do serviço militar e presos políticos moçambicanos que se opunham ao regime colonial.
“…A ilha Xefina é conhecida por ali terem sido encarcerados vários nacionalistas moçambicanos, que se opunham ao regime colonial português e anteriormente como lugar de prisão e desterro, incluindo dos ferroviários que lideraram a greve que em 1926 paralisou os caminhos-de-ferro em Moçambique.
Quando a 22 de Outubro de 1833 as forças nguni comandadas por Soshangane conseguiram conquistar a fortaleza de Lourenço Marques, chacinando a sua guarnição, foi na ilha Xefina que o governador português, Dionísio António Ribeiro, se refugiou. Mesmo assim, o refúgio na ilha foi insuficiente, já que o governador foi capturado e morto….”
Na ilha havia dois poços com água salobra. Um dentro do aquartelamento e outro junto ao nosso acampamento para fazermos a higiene. A logística era feita a partir da praia dos pescadores da Costa do Sol. Com frequência uma lancha ia receber água, frescos e outros géneros enviados pela companhia militar estacionada em Lourenço Marques.
A nossa alimentação era confecionada no aquartelamento e era igual para nós todos, prisioneiros e guarnição.
Quando a refeição era à base de “arroz de tomate” O Malhoa dizia, na brincadeira, que a refeição do dia era Zarcão, devido à cor do arroz! O Zarcão é uma tinta espessa avermelhada anticorrosiva e utilizada para pintar o casco dos navios para os proteger contra a ferrugem.
O nosso regime era idêntico ao militar! Acordámos ao toque da alvorada, e deitávamo-nos ao toque de recolher, tal como na tropa! Dizia o oficial que era para conhecermos a “disciplina e o regime militar”.
Durante o dia tínhamos horários para educação física, desporto, passeio pela ilha e idas à praia!
Essa era a nossa praia! Porque a outra, junto aos canhões era de mar aberto e com ondulação muito forte.
Não me lembro de ver, nem soube se a ilha era habitada! Mas era frequentada por pescadores e também por alguns presos. O nosso passeio era feito pela praia, ou pelos poucos carreiros entre os arbustos que constituíam a vegetação predominante, com algumas espécies de árvores.
Nesses passeios o que gostávamos mesmo de ver, eram os canhões que foram utilizados durante a 1.ª guerra mundial, votados ao abandono. Ferrugentos, sem a devida manutenção e de difícil acesso ao cimo.
“…A Xefina pode ser lembrada como o primeiro baluarte de defesa da Costa Moçambicana durante a I Guerra Mundial…”
Da parte sul da ilha, e relativamente próximo, também podíamos ver um navio italiano afundado no tempo da Grande Guerra, “O Monte Pera”. Mais tarde aquela zona passou a ser utilizada pelos pescadores da caça submarina.
Esta foi a Xefina que eu conheci!
Depois deste acampamento de 1957, nunca mais lá voltei! Admirava-a do restaurante da Costa do Sol e dizia aos amigos: “já estive naquela ilha!”
Do que depois lá existiu, agora só restam ruínas…
Hoje a ilha está habitada por algumas pessoas que vivem em condições sub-humanas, se é que a isto se pode chamar viver! Vivem em condições precárias essencialmente da pesca e de alguma agricultura de subsistência. Mas sem direito a mais nada!
“Não temos nada aqui. Não temos hospital, não temos escola, nem transporte temos!”, diz uma habitante.
Para se deslocarem ao continente e vice-versa, estes habitantes socorrem-se da boa vontade dos pescadores artesanais a quem pagam uma determinada quantia por cada viagem realizada.
As fotos apresentadas foram copiadas, com a devida vénia, de um trabalho da Helena Melo publicado com o título “Moçambique por aí” num passeio que ela fez com amigos à ilha Xefina em Novembro de 2017. São as memórias que restam do tempo colonial.
Diz a autora: “Tive de fazer a visita antes da ilha desaparecer engolida pela erosão”. E pelas fotos, ela tem razão! Já só restam ruínas.
Um vídeo para recordar ou para ficar a conhecer a Ilha da Xefina Grande:
- Informação colhida da Wikipédia e fotos copiadas, com a devida vénia, da publicação “Moçambique por aí”, da autoria de Helena Melo.
Para nós, com o BigSlam, o mundo já é pequeno…. Muito pequeno!
João Santos Costa – Fevereiro de 2024
21 Comentários
António Lemos Domingues
Bom recordar! Obrigado.
Manuel Martins Terra
Caro amigo João, fizeste bem trazer para este nosso ponto de encontro a Ilha da Xefina, que muito ouvíamos falar na cidade, sendo as suas referências mais acentuadas pelo Forte/Presidiário, que com o início da guerra colonial passou por algum tempo a ser o destino de militares, incluindo alguns oficiais milicianos que se insurgiam com o que se passava no terreno. Só com o eclodir do 25 de Abril, esses militares foram libertados e inseridos na vida civil. Convenhamos, que a praia em si era demasiado perigosa, devida ao movimento brusco das marés, e também pela presença de muitos tubarões que dali eram avistados. Daí que devido à constante agitação marítima, se foram registando alguns naufrágios e que foram devidamente registados. Era no entanto, um local muito escolhido pelos desportistas que praticavam Caça Submarina, e pese todos os perigos que os espreitavam, conseguiam capturar espécies de grande envergadura, sobretudo garoupas. João, tu que conheceste a ilha da Xefina, elaboraste um bom trabalho e bem documentado, sobre aquela ilha, de grande valor histórico e em cujas águas se escondem muitas espécies marinhas e outros tesouros. Pena é que devido às alterações climáticas, as suas águas vão-se tornando vulneráveis à subida da água do mar e que a Ilha da Xefina, corra o sério risco de ficar submersa durante este século. Recebe um grande abraço, do amigo Manel.
Francisco Duque Martinho
Gostei de ler e saber … com excepção da evolução do estado de degradação, infelizmente a acontecer em muitos casos, quer em Moçambique quer em Portugal. Parabéns ao autor.
Braga Borges
Obrigado Johnny pelo artigo.
Orlando, gostei de ler as notícias a teu respeito. Abraço
Nino ughetto
Olà B.Borges. Sei que podes esquecer de mim. Fomos colegas no Don Bosco na Namaacha. Sou o Ludovico pequeno,, e em adulto frequentei a escola comercial.. Trabalhei nos correios e Sobretudo no Instituto de Crédito, (banco) enfim quando saii de L.Marques, vim (ou fugi) porque fiz 4 anos de serviço militar e 2 anos na guerra no Norte ou seja todo o Norte de Vila Cabral lago Niassa Marrupa Tete a Mueda e Mocimboa d a Praia e tantos outros lugares… VIm para França e refiz a minha vida com os bolsos vasios… Hoje estou muito bem, Sou casado tenho 3 filhos e 9 netos e a 20 anos que estou reformadp.. GRAçAs a DEUS tenho uma saude de ferro ,Nào conheço nenhuma doença, e “sou contra” as vaccinas “covide”… enfim tudo vai bem graças a Deus…E espero sinceramente que estejas bem também. Um abraço
Braga Borges
Olá Ludovico. Lembro-me muito bem de ti. Espero que a vida te sorria. Há uns anos, almocei com o teu irmão. Foi um convívio com pessoal do IMA. Eu, o teu mano, o São João, Lino, Cândido e o Manuel Carlos.
Um forte abraço e felicidades para ti e toda a família.
Jorge Esteves
O texto está muito bem escrito, como sempre. A informação é verdadeira.
Também lá passei umas férias da EIMA em 59 ou 60, não me lembro bem, onde o Malhõa e outros colegas mais velhos também estavam.
Bons tempos.
Um abraço João
José Alexandre Bártolo Wager Russell
Um belo texto, sobre ilhas ali tão perto de L.M., mas que nunca conheci. Conhecer aqui, as ilhas que se viam da Costa do Sol , foi interessante. Obrigado por nos dares a conhecer as Xefinas.
Orlando Valente
João Santos Costa, obrigado pela reportagem sobre a Xefina. Tenho 81 anos de idade, nasci na Ilha de Moçambique, fui estudante no IMA da Namaacha, desde 1952 a 1961, tirei o curso de construtor civil diplomado( Mestre de Obras) e posteriormente, o curso de Agente Técnico de Arquitectura e Engenharia. Estive na Africa do Sul 35 anos, onde trabalhei na empresa de Construção Civil (LTA) e trabalhei por conta própria em Arquitectura. Presentemente estou reformado, vivendo há sete anos na Irlanda. Dediquei-me a escrever historias, já aprontei 57 contos e tenciono publicá-los. Ainda continuo a escrever. Continuando com o que nos conta sobre a XEFINA, tenho fortes lembranças, pois visitei-a por três vezes… uma das vezes tinha 17 anos de idade, fui convidado por um vizinho a ir pescar… ele tinha um barco de madeira, a remos, com um mastro e um vela…para alcançar a XIFINA, havia vento e rapidamente la chegamos, não propriamente a Ilha, mas a um barco onde apenas restavam metade da estrutura salvo erro, chamava-se ao local “MONTE PERO”. Lembro-me que as ondas entravam pela caverna da parte do barco existente, faziam um estrondo e saia em altos repuxos pelo chao enferrujado… o barulho era assustador…dizia-se que havia mergulhadores de pesca submarina que iam para aquela carcaça de barco pescar, onde se constava que havia uma uma garoupa gigante que tina ali feito o ninho… Contaram-me na altura que havia em LM um pescador de pesca submarina e um outro amigo dele (que era um sujeito chines, também muito conhecido) e ambos iam para la pescar. Quando a tardinha os meus vizinhos vieram embora, não havia vento e o mar com ondas bem altas. Tivemos que remar… parecia que não saiamos do “sitio”, as mãos começaram a aparecer bolhas, comecei a vomitar porque a ondulação era enorme… transpirava frio… de vez em quando vinha uma onda grande, levantava o barco por baixo, a pequena embarcação subia com a onda e não sei se era alguma alucinação dava- me a sensação que as luzes da cidade estavam a nossos pés logo a seguir, eramos puxados para baixo… pensei que tinha chegado o meu fim…
Não quero narrar mais este acontecimento… eram cerca das 11 horas da noite quando finalmente chegamos a LM. Não quero contar o que depois aconteceu… a minha mãe, os meus irmãos todos em pânico, choravam pensando no pior.
Por hoje termino. Os meus sinceros parabéns ao senhor João Santos Costa, pela simpatia e pela maneira como descreve a XEFINA, como nos conhecemos e que hoje infelizmente apenas ruinas nos fazem lembrar tempos passados que já não mais voltam, mas que nunca será varrida nossa memoria… e ao ver as fotografias enviadas, vemo-las agora sim…. mas com as rugas trazidas pelo tempo… e com os nossos olhos tao cansados…
A todos bem hajam./
Orlando Rodrigues Valente
joão santos costa
Olá Orlando
Tudo que nos contas neste teu comentário, sobre o navio Monte Pera e as garoupas que havia no seu interior eu também já tinha ouvido contar. O pescador de caça submarina que referes deve ser o Leong que na altura apanhou uma garoupa enorme nesse pesqueiro.
Gostei de ler este teu comentário.
Aparece sempre aqui no nosso ponto de encontro.
Um grande abraço.
"
Amigo Joao Santos Costa. Obrigado pelo teu contato que foi bem vindo. Sobre a nossa terra Mocambique, e com trtisteza que nos lembramos dela… terra maravilhosa a beira mar plantada e como cantava o JOAO MARIA TUDELA …”TEM A GRACA E TEM O TIQUE DE UM SORRISO… DE MULHER”. Hoje, ao lembrarmos da nossa terra, e como se continuassemos a SONHAR… e recordarmos de um passado cheio de tanta saudade, onde o mundo que nos rodiava era um mundo onde a vida era vivida com prazer, onde o mais humilde era feliz porque a terra nos dava tudo e nos momentos dificeis, havia sempre uma mao amiga que nos ajudasse…
Gostaria de poder continuar com esta onda de pensamento…mas, por outro lado, nao gostaria de ser massador…
Um abraco
Jorge Cabral
Esta ilha serviu de “defesa” na segunda guerra. O meu Pai esteve lá como militar. Ali assistiu a naufrágios de barcos com europeus fugidos da guerra. Alguns deles morriam comidos pelos tubarões. Outros eram salvos pelos militares. Assim se foram formando em LM comunidades de, italianos , indianos, chineses, franceses ingleses e até alemães. Dizia-se que franceses, alemães e ingleses eram espiões, pois iam continuadamente para junto do cais ver chegar os navios… Nessa altura a minha casa era na Pinheiro Chagas. Uma casa grande e como o meu Pai era militar, na altura e como o dinheiro não abundava alugou, parte da casa, a um alemão encontrado todo nu, pois estivera 12 horas a boiar depois do navio ter sido afundado. E também a uma francesa. O alemão acabou por ser meu padrinho e ainda tenho uma foto dele.
Victor Valério
João Santos Costa,
Nunca li tanta informação sobre a Ilha Xefina, embora soubesse do respectivo quartel, quando estava em Moçambique (nasci em L. Marques), constando nessa altura que, efectivamente lá havia prisioneiros. Mas que me lembre nunca vi fotos desse tempo, nem sabia dessa sua ou vossa “aventura”. Obrigado pelo relato. Um abraço!
LUIS MANUEL ANDRADE RODRIGUES BATALAU
Olá. Belo texto, informativo sobre uma ilha que apesar de estar ás portas de LM, poucass pessoas lá iam/foram. Eu não conheci a Xefina, a não ser de nome. Obrigado Amigo
Arnaldo Pereira
Belo texto, bem informado e esclarecedor.
Pena não haver uma reportagem fotográfica mais completa – do antes e do durante… porque do depois (isto é, pós independência de Moçambique, está muito bem documentada….
Obrigado e PARABÉNSq
Aquele abraço.
Wanda Serra
Mto obgda João por mais este maravilhoso artigo a que nos habituaste .
Adorei toda a info tao explicita da ilha Xefina.
Beijinhos
José Moreira
Obrigado pelo texto e pelas fotos.. Desconhecia a existência destas ilhas. Um abraço.
Raul Almeida
Bela reportagem João. Fizeste-me lembrar a primeira vez que fui à pesca de barco. Fui com o meu pai e uns amigos dele e descobri que enjoava. Fizeram-me beber vinho pela primeira vez 🙂
Obrigado por recordares a Xefina
Grande abraço
João Donato
Documento muito interessante !! Obrigado pela partilha !
Abraço forte.🤗
Rodolfo
A Xefina aonde fui tocar na festa de aniversário do comandante da prisão militar, organizada por alguns dos presos que podiam andar cá fora, Os Diabólicos que acompanhámos o Aníbal Coelho, Techa, Berta Laurentino e outros mais. Fomos de LM num rebocador com os artistas, aparelhagem e um dos organizadores.
Mais tarde, sempre que possível ía fazer praia, ao domingo com o meu amigo Byron Nicolau ( Ronil) no seu barco/lancha de motor fora de bordo e filhos Eve e Jorge….. praia muito agradável e maravilhosos dias para recordar.
Alberto Lopes
27 anos em Mocambique e nunca a visitei. Obrigado Joao Santos Costa pelo artigo.
Bem Haja.