Em Maputo a manhã estava ventosa e fria…
“O filme de um Contentor”
Prólogo
Se viveu a odisseia da descolonização, este “filme” também pode ser o seu!
Foi nas ex-províncias ultramarinas que centenas de milhares de naturais ou não; fruto de muito trabalho, encontraram a “Árvore das patacas 1” que lhes permitiu honestamente e sem excessos, levar uma vida condigna.
A seguir à independência desses países; muitos cooperantes, no fim dos contratos, aproveitaram a madeira. A tal da “Árvore”! Para fazerem “Contentores”. As “patacas”; juntamente com os melhores anos das suas vidas ficaram lá! Em países que eram um exemplo em África.
“O filme”
É a preto e branco e filmado em Cinemascope para nele “caberem mais contentores e figurantes”.
Só esteve em exibição nos meios de comunicação social.
Conta a estória verídica de um “Contentor e do seu dono”. Um português, que em 1977 no fim do contrato de cooperação, vendo a sua segurança em perigo, decidiu nele colocar os bens de primeira necessidade, que foi autorizado a trazer, e regressar a um “mundo novo” que já não era o seu!
Ficha técnica:
Produção: – BigSlam Produções.
Actores principais : – Meu pai, e o seu Contentor.
Actores convidados: – Eu, minha mãe e muitos regressados.
Director de Fotografia: – BigSlam.
Filmado em Cinemascope: – no Cais Gorjão (Maputo) e Alcântara (Lisboa).
Música: – Contentores, dos Xutos & pontapés.
Realização e Direcção: – João Santos Costa.
Naquele ano, no cais de Maputo, antiga LMarques, o movimento de contentores era intenso.
Quando “O Contentor”, com cerca de doze metros cúbicos de volume, foi entregue para embarque, os fiscais, apoiados por um militar armado, pediram-lhe para o abrir. Queriam verificar se levava bens proibidos.
Depois de aberto, mostraram algum “apetite” para encontrar algo que os satisfizesse! Vendo a sua persistência, o actor principal dirigiu-se ao militar dizendo-lhe que não levava nada proibido. E ofereceu-lhe saguate 2 para que não desarrumassem o que lhe tinha custado muito a arrumar! O militar, homem de poucas palavras, não falava, ou fingia não falar português.
Só lhe restou falar com os fiscais, e fazer-lhes a mesma oferta. Dava-lhes todos os meticais 3 que ali tinha.– Estes, talvez por se sentirem ultrapassados por ter ido falar primeiro com o militar, ou acharem pouco, não cederam! Começaram por vistoriar pequenas caixas com loiças e outros bens.
Os seus olhos fixaram-se numa caixa de papelão, com objectos dos seus filhos. Um rádio portátil, fotografias, discos de vinil, cartas, aerogramas, brinquedos usados e outras “bugigangas”, tudo mal arrumado e acondicionado. Ao tirá-la o fundo cedeu, e o vento – em Maputo a manhã estava ventosa e fria – encarregou-se de espalhar cartas, aerogramas e fotografias, para longe. O actor porque estava a assistir à vistoria, não quis “arredar pé” para as recolher. A esposa com um ataque de nervos começou a chorar!
-“As fotografias, ai as fotografias”
Conseguiu apanhar poucas. São as que recordam a passagem por África.
Sob pressão dos fiscais, que lhes disseram que havia ali “coisas” que não estavam manifestadas! Para evitar mais arrelias, acabou por lhes satisfazer os pedidos.
– Intervalo –
Bem-vindo a um “Mundo Novo”
No cais de Alcântara foi solicitada a minha entrada em cena para, junto da guarda-fiscal, colaborar nas tarefas burocráticas do desalfandegamento.
Num “mar de contentores” chegados do ultramar; quando chegou a nossa vez, o agente que nos acompanhava mandou abri-lo. Tinha de ser vistoriado. Podia trazer armas! – Armas? Pensei eu. Como era possível? Se as dezenas de pessoas que ali estavam pouco mais tinham para vestir as roupas que traziam no corpo. Aquela ideia só poderia ser ainda alguns resquícios do PREC, “Processo Revolucionário em Curso”!
– Só me apeteceu dizer-lhe que lá dentro estavam:
Um avião caça MIG; um tanque de guerra M47; 50 bazukas; 20 morteiros e 500 pistolas-metralhadoras G3, que eram os restos da “descolonização exemplar” de que fomos vítimas. Acalmei! Mas o actor principal, com os nervos alterados ao lembrar-se do que já tinha passado em Maputo, ia começar a disparatar.
Disse-lhe em voz baixa: “O pai não se mete!”.
Mandei-o ir para junto do camião onde “O contentor” ia ser carregado. Falei calmamente com o agente. Também ele atencioso! Dei-lhe um aperto de mão com uma nota de mil escudos entre os dedos, (o saguate2 podia até ultrapassar os 3 contos de reis -15€!) e a vistoria limitou-se à conferência do nome e destino, e a perguntar se o que levava lá dentro era o que constava da guia.
Naquela altura, todos os contentores que chegavam das ex-províncias (já novos países) passaram por idêntica situação. Dava pena ver a angústia de outros actores a abrirem os contentores para serem “bisbilhotados”, só porque não queriam, não sabiam ou tinham acanhamento de falar no saguate!
O filme termina quando passado algum tempo, por queixa dos actores intervenientes e pressão da opinião pública, pelo triste espectáculo que o país estava a dar. Estas vistorias foram canceladas.
– Fim –
Epílogo
A última vez que “O” vi foi há cerca de 39 anos. Estava no quintal ao lado da casa que os meus pais habitavam na aldeia. Nas faces com tinta branca escorrida ainda se podia ler: O nome do meu pai; o do navio – “Carvalho Araújo”; por baixo; -Lisboa. E em letras garrafais PORTUGAL. Tinha também um número com três algarismos que julgo ser o mesmo que estava na guia de levantamento.
Quando perguntei ao meu pai o destino que lhe ia dar, disse-me que o Zé Lixa já se tinha prontificado a comprar para aproveitar a madeira. A tal, da “Árvore das patacas”! Mas que lho ia oferecer porque o tinha ajudado a descarregar…
- Expressão utilizada como sinónimo de dinheiro fácil.
- Gratificação dada em mão por um serviço prestado.
- Moeda moçambicana.
Música dos Xutos & Pontapés – “Contentores”
Para nós com o BigSlam o mundo já é pequeno!
João Santos Costa – Fevereiro de 2017
5 Comentários
ERS
Para memória futura, e para que todos aqueles que directa ou indirectamente se sintam ligados ao que foi o fim do último Império Colonial, todos os registos serão de importância maior, e este é um desses trabalhos. Bem-haja a todos aqueles que tiveram essa bela ideia e a realizaram, não foi uma época fácil para quem viveu aqueles momentos dramáticos, portanto aqui quero deixar os meus agradecimentos ao realizador deste registo que imortalizará aqueles tempos difíceis pelos quais muitos de nós tiveram que passar.
Adérito Rodrigues
… Parabéns João, por nos trazeres um assunto que marcou a nossa passagem por “lá” e da pior maneira. Saí de L.M. a 13 de Maio de 1975 e como um de ideias fixas… Nunca mais lá voltei e será difícil verem-me lá. Foi dos 6 aos 30 anos e depois mais 18 na África do Sul. Na viagem até à fronteira também houve senas muito parecidas e até de grande agressividade por os locais a isso se adaptarem. Já do outro lado da fronteira até o chão “beijei” em Agradecimento e por me sentir aliviado da pressão e odio que se notava nos olhos “dos defensores emprestados a Moçambique”. João, andei depois, mais de um ano, a ser vigiado a uma falha nervosa que me alterava o coração. Tudo passou e se recompôs e ainda cá andamos para partilhar o que muito boa gente não quer ouvir.!!! Um abraço a todos e a ti em especial.
João SCosta
Olá Adérito. Conheço muitas pessoas a pensar como tu. LM nunca mais! Vamos vivendo das recordações do nosso tempo. Sabes o que te digo? Tivémos muita sorte em virmos embora. Hoje aqui estamos infinitamente melhor! Depois de conhecer os países que tenho tido a sorte de conhecer, não troco o nosso por nenhum. Sinto uma alegria enorme quando ouço a hospedeira mandar apertar os cintos porque vamos aterrar em Lisboa. Obrigado pelo teu comentário. Um grande abraço.
Mario Garcez
Independentemente de terem razão na nao existência do metical,’e um pormenor que não interessa nada para ser motivo de discussão numa bela cronica de um filme vivido por milhares de nos.
Um abraço moçambicano do tamanho do Mundo para todos.
João SCosta
É verdade, Mário. Um filme vivido por milhares de nós! Obrigado pelo comentário. Um abraço.