Foi naquele Natal de 1968…
Todos os anos os festejamos, ou não! Os não cristãos, se calhar festejam dois. O nosso e o deles.
De todos que passei, uns tem uma estória para contar, outros não. E outros são para esquecer!
– Os últimos dois, por causa da pandemia do Covid-19, foram atípicos. Passados em sentido restrito, só com a família mais chegada. E por dados recentes creio que este próximo vai ser igual. Por isto vão ficar na história. Mas não têm estória para contar.
– Entre outros, também já me esqueci daquele Natal de 1974. Foi o último que passei em Moçambique. Tenho ideia que foi triste, muito triste! Porque a situação sócio/política que o país vivia foi para esquecer, e não o deixou ficar na estória!
Mas nunca vou esquecer aquela terça-feira, 24 de Dezembro de 1968:
Porque quando, no quartel-general de Lourenço Marques, estava a aguardar a passagem à disponibilidade da vida militar, avisaram-me que nesse dia, por escala de serviço, tinha de chefiar a segurança e proteção do Governador-geral no palácio da Ponta Vermelha.
O Palácio está localizado num promontório de terra vermelha, daí o nome.
Inicialmente foi um armazém, e mais tarde residência do pessoal envolvido na construção da via-férrea entre Lourenço Marques e a África do Sul.
Pela sua localização na cidade, após obras de fundo foi transformado neste lindo palácio, implantado num grande jardim. E passou a ser a residência oficial do governador-geral, nomeado por Lisboa.
Ocupa praticamente a área do quarteirão delimitado a norte pela rua Roque de Aguiar, nas laterais pelas antigas ruas João das Regras e Bartolomeu Dias, e a sul com o antigo Quartel-general, na rua do Farol.
De 1968 a 1970, foi a residência do Dr. Baltazar Rebelo de Sousa, pai do presidente, Marcelo Rebelo de Sousa.
A segurança do palácio era feita a partir do jardim, em turnos de 24 horas. Que começavam às 13 horas, e terminavam às 13 horas do dia seguinte. Sendo depois substituído por novo turno.
Nesse fim de tarde do dia 24, o movimento de entradas começava a ser grande! Para controlo, os nomes dos convidados e as matrículas das viaturas, constavam de uma lista que me foi entregue.
Por volta das 18 horas, já com convidados no palácio, apareceu um criado a dizer que o senhor Governador me estava a chamar. – Tremi como “varas verdes” – Seria que os dois soldados da porta principal tinham procedido mal com a entrada de algum convidado? Ou se esqueceram de apresentar armas a algum oficial superior? Todos os pensamentos me ocorreram a pensar o pior!
Pedi ao 1.º cabo que estava comigo de serviço, para me substituir. Enquanto eu, com os nervos à flor da pele, ia com o criado ao palácio. No caminho perguntei-lhe se sabia o que se estava a passar! Disse que não. Que só lhe pediram para me chamar!
Na porta de serviço fui recebido por um senhor vestido de branco, que me pareceu ser o mordomo ou chefe de cozinha. Que me perguntou porque é que não atendia o telefone interno. – Seria por isto que ia ao palácio, pensei eu? – Expliquei-lhe que estava a controlar as entradas, e não ouvi.
Conduziu-me à porta de um salão onde estavam convidados. Possivelmente a “alta finança” de Moçambique!
Discretamente, dirigiu-se para nós um senhor não muito alto, de óculos e seco de carnes, que ao longe me pareceu ser um oficial general.
Quando se aproximou, o meu acompanhante disse: “Senhor Governador (aí eu tremi como varas verdes! Tenho de confessar que o conhecia mal, por fotografia, e ao perto não o reconheci) está aqui o superior da guarda” (não sei porque não se referiu ao meu posto militar!).
O Governador com voz calma, disse que me tinha mandado chamar para desejar a toda a guarda um feliz Natal e um bom ano. E que nos iam servir um jantar de batatas com bacalhau e bolo rei….Quando me disse isto “respirei fundo”! E até gaguejei a desejar-lhe também as boas-festas, assim como a toda a família.
Já aliviado, telefonei ao oficial-dia do Quartel-General a contar o que se estava a passar, e o susto que apanhei! Disse-me que o jantar no quartel era também batatas com bacalhau. Mas que sendo assim, já não ia mandar.
Quando contei a camaradas que como eu, estavam à espera de substituto para passar à disponibilidade, disseram-me que era tradição na Páscoa e Natal os militares que ali prestavam segurança, serem presenteados com “batatas, bacalhau, filhoses e doces”. – Só que eu não conhecia essa tradição!
Não sei se esta tradição se manteve a partir de 1970, porque creio que a partir desta data o Palácio passou a ter segurança própria. Feita por militares de carreira e/ou pela polícia de segurança.
Recentemente, durante a campanha de Marcelo Rebelo de Sousa para a presidência da república estive a ver se o encontrava por perto para lhe contar o que se passou naquele Natal de 68, onde ele também esteve presente e possivelmente “não deu conta!”.
Não sei se o Presidente, nestas datas festivas, segue o exemplo do seu pai. Mas uma coisa eu sei! O pai tinha uma grande relação e contacto com todo o povo moçambicano, percorria Moçambique de norte a sul. Embora os tempos sejam outros, e a posição do presidente Marcelo, neste contacto ultrapassa o seu pai. É um homem do mundo!
Nota: Este 24 de Dezembro de 1968, foi o dia da minha vida em que estive mais tempo ao telefone. Foi para a minha namorada, porque as chamadas, eram gratuitas!
Desejo a toda a “Família do BigSlam” umas Boas Festas, e um 2022 com muita saúde e muito melhor que o 2021!
Para nós, com o BigSlam, o mundo já é pequeno. Muito pequeno!
João Santos Costa. – Dezembro de 2021
16 Comentários
Amélia Carreira
Acabei de ler a tua odisseia no Natal de 1968. Apesar do susto que apanhaste. valeu a pena pelos momentos que viveste e que são imperdíveis e que nos fazem lembrar a nossa querida terra. Obrigada, João por este lindo texto, que por vezes nos brindas.
Desejo-te um Natal e um Ano Novo muito feliz e com muita saúde, assim como a toda a Família Big Slam. Beijinhos.
Amélia Carreira
Paulo Carvalho
O Natal de 1968, é também aquele de que melhor me lembro mas, por ter sido desagradável!
Estava no Norte de Moçambique, em Vila Cabral, a prestar serviço militar e, a 24 e 25 de Dezembro, foi realizada uma grande operação militar em 2 locais diferentes, tendo provavelmente estado envolvidos, todos os grupos operacionais estacionados na capital do Niassa. No pelotão onde estava integrado, estivemos na eminência de ter sofrido uma grave emboscada!…
Não tivemos a Ceia, que nos quarteis normalmente havia o cuidado de ser servida, tendo-nos contentado com as rações de combate mas, com a satisfação de termos regressado ao quartel, todos bem.
ABM
A residência do GG que retratas em cima foi (minha opinião) uma piroseira construída cerca de 1939 no lugar da original, habitada por Mouzinho de Albuquerque, que eu achava dez vezes mais bonita mas que já estava um pouco nas lonas e ainda por cima vinha aí (em Agosto de 1939) o Marechal Craveiro Lopes na primeira viagem presidencial a Moçambique. Era um palacete digamos que um pouco formal e pesado, tanto assim que, apesar de permanecer como a residência oficial do subsequente presidente de Moçambique, que eu saiba nenhum residiu lá, preferindo abarbatar o Grémio e a AAE de Coimbra e ali fizeram uma casa digamos que mais funcional e informal, que o Guebuza, com umas massas valentes (alegadamente) dos chineses transformou num palácio à Bollywood. Acresce que com a paranóia da segurança, que nunca preocupou nenhum GG de Moçambique mas que digamos que é um problema latente em Moçambique, o local era considerado inseguro. Casas a mais ao lado, ruazinhas e as Torres Vermelhas ali ao lado. ABM
João Costa
António, muito obrigado por esta tua “achega”! Julgava eu, que os presidentes de Moçambique, também com a segurança militar, habitavam no palácio. Mas pelo que contas, embora seja a residência oficial, mas pela insegurança causada pela volumetria das novas construções feitas na zona, os presidentes decidiram habitar nos locais que referes.
Um abraço.
Rosa Maria Soares
Grande final da cerreira militar, João.
Bom ter estas situações para recordar, afagam o coração.
Agradeço os votos que retribuo com grande amizade.
Um beijinho.
João Costa
Não foi muito grande; Rosa! Porque contava sair logo em Janeiro de 1969, e fiquei à espera de substituto até 4.deMaio.de 1969.
Mas sabes o que te digo? Como tudo já passou, ficam essas memórias para contar.
Um bjinho.
Eduardo Horta
Um Feliz e Santo Natal, para ti João e toda a equipe do Bigslam.
Também eu tive um breve contacto com o Dr. Baltazar Rebelo de Souza, não nesta data mas numa outra em deslocação de avião integrado eu, numa embaixada desportiva, em que veio até mim e me indagou sobre pormenores relacionados com esta digressão. Foi simpático da sua parte o mostrar interesse no que faziamos , o que pensávamos etc.
Também me despertou a curiosidade do nome das ruas que mencionaste, pois morei uns anos na Av. Bartolomeu Dias e mais tarde na Couceiro da Costa, ambas bem perto da Ponta Vermelha.
Um abraçoJoão e a todos no Bigslam.
João Costa
Eduardo, tu também moraste ao pé de mim, junto aos Velhos Colonos, assim como, entre outros, os irmãos Murinelo. Ou estou enganado? É que nós estávamos sempre na piscina, no bar e nas tardes dançantes!
José Gonçalves
Presumo que guardas com grande carinho todas estas estórias vividas na lindíssima cidade das acácias.O único privilégio que nos resta é, de vez em quando, vasculhar no baú das nossas memórias e “reviver” aquelas que nos marcaram mais.
Um Feliz Natal a todos e um abraço.
Cristóvão Antunes
João
Uma bela história no Natal de 68, que passaste, e que jamais esquecerás. Imagino o “cagaço” que apanhaste ao se chamado ao interior do palácio. “A mais grossa devia ser como o azeite”, pois estavas próximo de passar à “peluda”.
A minha passagem fora um ano antes, no Agrupamento de Engenharia de LM.
Já passaram, e muito de repente, 54 anos.
Um Santo Natal para ti e toda a equipa do BigSlam
João Costa
Tens razão Cristóvão! O meu maior “cagaço” é que estava para passar à “peluda”, que afinal ainda tive de esperar quase 5meses! E apanhar um castigo naquela altura não vinha nada a calhar!
António Alberto Isaac da Mata de Oliveira
Não havia processo por dívidas ocultas.
O bairro não tinha sido todo evacuado nas redondezas, as ruas na vizinhança não tinham sido fechadas ao trânsito em nome
da segurança ao Marcelo.
António Oliveira
Manuela Coelho
Para si e toda a sua equipa bem como a todos os participantes vão os meus votos de um Feliz Natal com saúde , paz e mais amor entre os Homens de boa vontade.
Que 2022 seja melhor que os anteriores.
Um abraço
Manuela Coelho
Aníbal Santos
O “senhor de branco” era efectivamente o responsável pelo palácio, entre outras coisas, e era o meu pai.
Baltazar Rebelo de Souza e a esposa eram pessoas de trato excepcional.
Pela natureza das funções que desempenhava o meu pai lidava mais com as esposas dos governadores e está marcou-o muito mais que todas as anteriores.
João Costa
Aníbal, é possível que fosse o teu pai! Mas depois de estar junto ao salão verifiquei que havia mais pessoas a colaborar, também vestidas de branco. E realmente havia um que estava a orientar todos os outros.
Fernando Pedro
Feliz Natal também para o amigo Costa e sua família!
Bonita história a que conta sobre o seu Natal de 1968. Também prestei serviço no Quartel-General no período entre 25/1/1969 a junho de 1970, até me mandarem de férias para Mueda. Depois de obter autorização no quartel da Ponta Vermelha, fui residir na Av. António Enes nº368 em frente à Farmácia Pigale, passado uns meses mudei-me para a Rua dos Aviadores nº244, até parece que foi ontem e já lá vão 52 anos. Ainda hoje a minha alma sente saudades de Lourenço Marques…
A todos os Amigos do BigSlam desejo um Feliz-Natal e muita saúde!
Fernando Pedro