Catembe: O outro olhar sobre a Baía…
Neste desfilar de recordações de um tempo remoto, não poderia deixar de relembrar a Vila da Catembe, aquela bela península entalada entre o mar e os rios, e que se situa na outra margem da Baía do Espírito Santo. Acredito que muito poucos foram os laurentinos, que um dia não tivessem atravessado o estuário até aquele pedaço de terra pitoresca e povoada de gente trabalhadora, que ali assentou arraiais pelos mais diversos interesses. Lembro-me com muita saudade das inúmeras vezes que por lá passei e ocorre-me a entrada pela porta A, da ponte cais até ao local de embarque dos “gasolineiros” ou “catembeiros” como alguém lhes chamava e lembrando talvez por comparação os cacilheiros que se deslocavam de Lisboa para Cacilhas, em Almada.
Retenho na memória, o Janina, o Neptuno, o Estrela do Mar e o Élia, que em viagens de vaivém estabeleciam a ligação entre Lourenço Marques e a Catembe, com uma grande margem de segurança. Procurava sempre a parte de cima, o chamado varandim para melhor poder apreciar a vista panorâmica da cidade de cimento e o bulício do Cais Gorjão. Após 20 minutos de um trajeto agradável, o gasolineiro atracava ao velhinho cais, cujos pilares evidenciavam em muitos deles a nudez do ferro oxidado e corroído.
Já com a povoação aos nossos pés, saltava à vista as casas dos pescadores goeses, que no desenrolar da década 30 do século passado chegaram ali em grande número; comunidade que escolheu aquela terra para se fixar. Dada as condições de excelência para a captura do camarão, com barcos por si construídos iam para a faina com resultados bem conseguidos. Habitavam em básicas casas de madeira, suportada por estacaria bem fixa na areia de forma a se protegerem do movimento das marés. Estes homens do mar, professavam um sentido fervor religioso tendo em S. Pedro, o seu santo padroeiro.
Tinha lugar na Catembe, ao dia 29 de Junho de cada ano, a tradicional procissão marítima em que a pequena imagem do santo era transportada inicialmente em pequenos barcos à vela. Depois era carregada em ombros, até ao um barco de transporte de passageiros reservado aos padres encarregados da cerimónia, que benziam as embarcações participantes. Pelo meio, não faltava um lanche à base de petiscos confecionados com frutos do mar. A cerimónia terminava com o lançamento de uma coroa de flores ao mar, em memória dos pescadores e outros membros da comunidade goesa, e rezava-se para pedir boas pescarias.
Muito próximo do bairro, situavam-se as instalações da Mocidade Portuguesa, que serviam de apoio às atividades náuticas de muitos jovens.
Na saída do porto de desembarque, descortinava-se a estrada que ligava a Catembe até à Ponta do Ouro, passando por Catuane e Matutuine. Para se chegar à paradisíaca praia tinha que se vencer a distância de aproximadamente 120 Quilómetros, e partir para uma prova de resistência. O mais aconselhável seria recorrer a um jipe para superar trajetos de terra solta, e os buracos onde se alojavam lamas a que nos chamávamos matope. Com um pouco de sorte e volvidas mais de duas horas de aventura, fitava-se aquele paraíso marinho situado no extremo austral de Moçambique e a curta distância da fronteira com a África do Sul.
Voltando ainda à zona portuária, existia um posto de abastecimento de combustíveis e o terminal da empresa de autocarros Cruzeiro do Sul, que estabelecia as ligações da Catembe à Bela Vista e Salamanga. Como era agradável fazer uma caminhada pela praia com o sol a reluzir e ouvir o esmagar das ondas na areia mansa, até à Ponta Mahone. Mas a Catembe, tinha outros pontos de atração como a Praia dos Amores, que distava a 30 Quilómetros e servida por um troço estreito de terra batida salpicada por capim alto.
Depois as dificuldades do terreno, obrigava os visitantes a uma caminhada pedestre por trilhos matizados de vegetação minúscula e arvoredo tropical. Chegava-se então à orla marítima, para a seguir romper pelas areias de modo a observar aquilo que a natureza é obreira, fazendo dos grandes rochedos autênticas cavernas esculpidas ao longo dos tempos pelo mar-escopro. Ali o silêncio reinava, apenas quebrado pelo piar das aves e pela passagem de alguns banhistas e pescadores locais.
Imperdível era o espetáculo deslumbrante do pôr-do-sol visto ao fundo, onde o esplendor da gigante bola avermelhada ia esmorecendo e perdendo seu fulgor.
Instantes depois as réstias de luz extinguiam-se, deixando cair a noite escura sobre aquele amor de praia. Mas a Catembe, tinha mais referências e foco-me nos seus valiosos recursos geológicos, que levaram à construção em Salamanga de uma pedreira de onde era extraída pedra de boa qualidade e cal, materiais empregues em moradias tradicionais. Dos seus arenitos carbonatos, era apurada uma brita avermelhada lançada sobre as estradas de terra batida que ligavam a vila ao interior.
Os laurentinos procuravam também a Catembe, pela qualidade gastronómica dos estabelecimentos de restauração. Quem não se lembra do Restaurante Diogo? Filho de um pescador goês, que um dia embarcou na aventura se se fazer ao Índico, e deixando-se embalar pela força dos ventos alcançou a terra que avistou no horizonte, jurando-lhe amor eterno. Hoje o seu filho é talvez o rosto mais conhecido da localidade, e um verdadeiro cicerone que nos fala dos mitos da região.
O seu espaço gastronómico, sublinhado pelo requinte cardápio de tradição goesa, era o local referenciado para se poder comer um bom prato de camarões grelhados ou fritos, um bom caril de frango ou caranguejo, como também apreciar um prato de chacuti ou sarapatel, não esquecendo um saboroso vindaloo também conhecido por vindalho. Para as entradas, nada melhor que uma chamuças estaladiças e uns recheados rissóis de camarão. Isto só de pensar, faz crescer água na boca e despertar a saudade…
Decorridos mais uns breves quilómetros, a velha estrada poeirenta apontava ao Restaurante/Pousada Marisol, creio que à época gerida por uma família chinesa nativa de Moçambique, que ali se estabeleceu para firmar os seus créditos.
Um espaço criado com muito gosto, sobressaindo uma cativante decoração e amplas salas com saída para o terraço, de onde se podia comer e observar ao longe a cidade de Lourenço Marques. Com uma seleção de pratos de excelência, desde logo foram conquistando todos os paladares e sendo vizinha do mar, não faltavam às mesas as travessas com o identitário marisco da região. Ainda me lembro que o Marisol, possuía duas carrinhas VW ( tipo pão de forma), bem ilustradas que durante o dia incisivamente faziam o percurso entre o restaurante e o cais, levando e trazendo de volta os seus clientes. Também me recordo que sobretudo os mais jovens, depois do farto repasto desciam o escadario até ao areal e descalços faziam a etapa até ao cais de embarque. Uma boa conduta para exercitar o físico, e ajudar a digestão.
- Podem ver a seguir o atual Restaurante Marissol famoso desde 1958 pelos melhores camarões LM, integrado no complexo Catembe Gallery Hotel.
Na Catembe, era bom de ver as machambas verdejantes, muito pela sua composição argilosa que mantinha os solos húmidos e fertilizados, permitindo boas colheitas. A pacatez daquela terra de pescadores tinha muito a ver com a dispersão da sua população, e só aqui ou acolá se enxergavam algumas moradias. Também a espaços se achavam as tradicionais cantinas, onde as populações compravam os seus bens alimentares e se faziam trocas comerciais. A circulação automóvel era muito reduzida e a Catembe desesperava pelo surgimento de infraestruturas que lhe fizessem chegar mercadorias, materiais de construção e meios de transporte. Nada mais de tudo o que era primordial, para resolverem as apoquentações dos seus residentes.
Em 1972, surgia o primeiro ferryboat que zarpava do cais de embarque defronte do Edifício da Fazenda, rumo ao cais de acostagem da outra margem da baía, com capacidade para transportar 250 passageiros, 10 viaturas e 4 camiões. Uma viagem que superava por vezes a meia hora de navegação, e sempre condicionado pelas condições meteorológicas.
Recordo-me que em muitas cavaqueiras, se falava já à época de um projeto para a construção de uma ponte a ligar duas margens do estuário. A ambição antiga das gentes da Catembe e porque não dos laurentinos, foi como um sonho que se veio a concretizar em 2018, com a inauguração da ponte que liga hoje Maputo à Katembe, o ponto de encontro entre os dois lados, como uma mão procurando apertar uma outra, sabendo que um dia deixariam de viver separados.
São estas coleções do tempo, a que eu continuo a embrenhar-me e tão gratificante é saber quanto a Catembe, de um tempo passado, continua tão presente nas minhas memórias.
Agradecimento: Algumas fotos foram retiradas com a devida vénia dos blogs – The Delagoa Bay, The House of Maputo e Kundalini.pt
Manuel Terra – Fevereiro de 2024
- A titulo de curiosidade, quem se recorda da famosa Catembe, uma mistura de Coca-Cola + Vinho Tinto?
14 Comentários
Delfim loureiro
Era eu muito MUFANITA e os meus pais levavam a família aos fins de semana para a Catembe passar o dia.eram dias bem passados num lindo local.a travessia no barco.era um belo passeio.saudades.KANIMAMBO
José Moreira
É bom recordar outros tempos vividos nesse belo país. Obrigado pela partilha.
Isabel Morais
Que bom é poder recordar a nossa Terra. Fotos maravilhosas. Voltar às raízes é sempre bom. Obrigada por partilharem estas fotos.
Arnaldo Ferreira
Saudosas e inesquecíveis vivências Moçambicanas, da minha terra ! Hambanine.
José Alexandre Bártolo Wager Russell
Fui à Catembe várias vezes. Era um lugar em que me sentia bem. Olhar para a cidade do outro lado parecia um postal ilustrado. Parabéns pelo artigo .
ABM
Excelente artigo que enche o olho. Quando eu era miúdo e vivia na Polana o meu sonho era ir viver numa palhota para o mato do outro lado da baía…não sendo tal possível devido às prioridades da vida e à situação descolono-político-epidérmica, a que basicamente era alheio por razões etárias, acabei comprando a mesma coisa mas desta vez perto de Lisboa. Aqui é quase a mesma coisa que África mas ninguém me chateia, o que não tem preço. Com a ponte chinesa do Mr. Guebs, a Catembe daqui a 30 anos vai ser a mesma chafurdice insana que já caracteriza a área metropolitana de Maputo, senão pior. A Baía, essa, está-se a tornar numa verdadeira cloaca a céu livre, pois que eu saiba não há estações de tratamento dos resíduos. Vai tudo directo ali para dentro.
josé carlos alves da silva
É bom recordar. Incrível.
Nino ughetto
Ah sim Quantas vezes fui a Catembe …Ulala, e foi là que levei de motorizada a minha namorada (hoje minha esposa Beatrice).Meu Pai Ludo trabalhava na fabrica de cale em Salamanca..Estive là também com o meu irmào a passar férias de aprendizes de caça. Foram tempos que so em cinema se pode imaginar ou entào foi apenas um sonho ???Hoje contar o que vivi é impossivél de acreditar.A minha vida foi uma inceclopedia (50 anos aqui em Fr ,jà nem sei escrever correctamente)foi um romance de aventuras de “400”colpes” e d”amores o serciço militar de 4 anos dos quais 2 anos em TODO Norte de Moç Là também deixei centenas de conhecidos e amigos nessa guerra,para nada…Catembe dos pescadores e dos camaroes ,…Enfim Tudo passa tudo acaba
Orlando Valente
Caro amigo Ludovico pequeno.
Este era o nome como te chamavamos quando andavamos no IMA. Eu era o Valente pequeno. Ambos tinhamos irmaos mais velhos que frequentavam o mesmo colegio. Ainda hoje, trato o teu irmao por Ludovico quando na realidade o nome dele é Antonio Ugetho.
Muitas coisas teriamos que recordar e reviver… mas pode acontecer que nos havemos de nos encontrar. Vivo na Irlanda, ha 8 anos, estou reformado, ja sou BISAVO, cheguei a conclusao que o tempo nao passa…SOMOS NOS QUE PASSAMOS… mas as nossas amizades essas sim, PERPETUAM-SE EM NOS e nem os ventos do passado conseguem leva-las para o esquecimento.
Que tudo esteja bem contigo e com a tua familia sao os meus maiores desejos.
Um abracao do
Valente pequeno (Orlando)
LUIS MANUEL ANDRADE RODRIGUES BATALAU
Guardo relíquias da Catembe, local onde passei dias maravilhosos. Saudades. Abraço amigo que fez recordar a minha TERRA.
José António mártires Fonseca
Tanta saudade, eu vivi na Catembe na casa do guarda fiscal , á saída da ponte do lado direito, o meu pai era o guarda fiscal, r o restaurante do lado esquerdo foi dos meus avós.
Ângelo Santos
Comentários para quê?
Saudades…saudades…saudades!!!
Moises Santos Gil
Catembe, um lugar que conheci desde 1961 quando pela primeira vez, eu e o meu Tio Carlos Santos Gil apanhámos o barco para ele ir comprar um terreno lá para construir uma casa de campo, machamba, naquele paraíso em bruto palmilhando os carreiros de terra para então fazer a marcação do terreno adquirido sob um sol abrasador. Assim foi e a partir dai passámos a ir aos fins de semana para desfrutar daquele paraiso.
Para aqueles que não sabem, o Janina era um barco da Firma Parceria Maritima do Xai-Xai que pertencia ao meu Tio Avô Paulino dos Santos Gil.
Também recordo que a rua que dá acesso à Ponte da Catembe, sentido Maputo/Catembe, tinha o nome do meu Tio Avô que o Governo da Frelimo, como homenagem ao grande industrial que a Lourenço Marques dedicou a sua vida, sem nada pedir.
ABM
Teu tio-avô um grande homem e uma referência do Desportivo, onde nadei.