O Bazar Vasco da Gama
Já no render do século XIX, o major-engenheiro António José Araújo, um técnico militar de reputada carreira, tinha praticamente concluído o projeto de uma cidade modelo, traçada a régua e esquadro, que se começava a erguer dos pântanos desterrados, que circundavam a velha fortaleza e a orla marítima. No papel estavam então delineadas as grandes artérias rabiscadas a carvão e tinta, que seriam a médio prazo sublinhadas à escala dimensionada, com alcatrão, cimento e terra. Estabelecida a ligação entre a parte baixa à alta, a cidade que se haveria de transformar numas das mais bonitas do continente africano, ia ganhando colorido sobre um cenário maravilhoso ao fundo.
Lourenço Marques, crescia com pressa e pelo relembrar dos mais antigos, foram então implantadas três praças; a saber a Praça 7 de Março, transformada num pequeno jardim repousante, em linha retilínea à Praça Mac- Mahon, e a pouca distância da Praça Vasco da Gama. Este espaço verde, transformado em jardim solarengo, arvorejado e de pequenos canteiros, era paralelo à grande artéria que começava a ganhar dimensão, batizada com o nome de D. Carlos, passando depois a chamar-se República, para assinalar a queda da Monarquia.
Não muito longe, numa faixa de terreno vendedores ambulantes que ali acorriam expunham para venda, produtos da terra e peixe, à torreja do sol ou ao castigo da chuva.
Ao que se consta, verificadas as poucas condições higiénicas, a autarquia ergueu um mercado provisório com cobertura de zinco, como solução de remedeio. É a partir daqui que começa a história do Bazar Vasco da Gama. O progresso trazia à cidade muitos embarcadiços provenientes dos quatro cantos do mundo e que aportavam ao cais, que ia ganhando forma e equipado com alguns guindastes para facilitar o transbordo de mercadorias para os vagões que seguiriam para o Transvaal. Depois de aprovado o projeto de construção do Bazar Vasco da Gama, quiçá a primeira grande obra pública da cidade sob a égide da Câmara Municipal, surgiu a polémica entre a defesa da Praça – Jardim ou a sua implantação no seio da mesma, restando-lhe apenas as partes laterais. Ganhou a tese de que a Praça era o ponto mais estratégico, considerando a proximidade da extensão da zona portuária e a construção que começava a proliferar de armazéns de mercadorias e lojas. As obras do novo edifício tiveram início em 1901, sendo importado da Bélgica, as colunas de ferro e aros, assim como as asnas para a cobertura.
A 30 de setembro de 1903, era inaugurado solenemente o Bazar Vasco da Gama, pontificando na sua elegante fachada, ao centro a cúpula seleta que realçava o mastro para içar bandeiras e o brasão que com fidelidade anunciava por baixo a municipalidade gestionária desde 1901. Por ali se achava o seu portão principal de beleza emblemática, que nos conduzia ao seu interior.
O velhinho bazar traz-me recordações da minha infância e adolescência, das vezes sem conta que por lá passei para as necessárias compras. Recordo o bulício no seu interior, onde realçava uma perfeita e sã harmonia entre vendedores e compradores. Nas bancas do peixe, era notório a qualidade e a variedade do mesmo capaz de satisfazer a clientela, sempre atenta aos conselhos das peixeiras. Nas bancas de marisco e outros víveres do mar, era quase paragem obrigatória para a compra dos crustáceos, não fossem eles referenciados como os melhores do mundo, preparados com um mosaico de sabores tão ao gosto das gentes de Moçambique.
Nas traseiras das bancas, fixava-se o movimentado snack-bar do “Xico” distinto pela qualidade dos seus “pregos”. Ao fundo do seu interior, jogavam-se partidas de damas muitas acaloradas, em cima de tabuleiros já gastos pelo tempo Na ala contrária, estavam dispostos os talhos e postos de venda de pão e doçaria de várias panificadoras da cidade. Mais ao centro, estavam dispostas as bancas de venda de fruta tropical. Como era agradável sentir no ar, o aroma daquelas suculentas mangas, tingidas de amarelo e vermelho, lacrimejando um fio de resina, papaias sarapintadas, ananases e abacaxis enfeitados com as suas coroas de folhas, citrinos do Umbeluzi, tangerinas de Inhambane, goiabas e a famosas bananas-maçã, num desfilar de sabores inconfundíveis. Por norma, regateava-se o preço de todos os frutos. Em outras bancas, vendiam-se maçãs, peras, pêssegos, ameixas, uvas e meloas, importadas da cidade do Cabo.
Ao lado, as lojas dos comerciantes indianos de onde exalavam deliciosos aromas do Oriente, que faziam a delícia de um bom caril, sarapatel ou as clássicas chamuças. Pertenciam também a esse clã, os vendedores identificados pelos cofiós vermelhos na cabeça e as suas esposas trajando vestes de sari, que transbordavam simpatia correspondida pelos clientes que procuravam adquirir bugigangas, capulanas garridas, lembranças, missangas, brinquedos, chinelos, artigos de praia e uma diversidade de artesanato africano, correspondente à cultura do seu povo. Na loja que se perfilava em frente, vendiam-se volumosas melancias. As restantes lojas, vendiam produtos da terra e fama tinham os agriões do produtor Louro. Nas traseiras do Bazar, junto ao portão de saída, vendiam-se as aves de capoeira.
O Bazar Vasco da Gama, conheceu ao longo do tempo, melhoramentos para o seu bom funcionamento, com uma cobertura central e a montagem de mais bancas ligadas entre si por toldos que protegiam do sol inclemente, os que por ali passavam. Sofreu uma forte contrariedade quando em julho de 2005, um incêndio de grandes proporções destruiu parcialmente o seu interior. Mas felizmente que tal não constitui o fim de ciclo, e numa atitude louvável o Conselho Municipal de Maputo, conseguiu reabilitar e com gosto o seu bazar, ganhando internamente um novo e moderno visual que se aplaude. Hoje chamado de Mercado Central de Maputo, Bazar Vasco da Gama de ontem, mas sempre um espaço de cultura, mescla de gente de todas a raças que continuam a dar vida aquele edifício ex-libris da cidade.
Ainda que não escute as badaladas do paciente sino de latão, a anunciar o fecho, cabe-me a mim encerrar o bazar sempre jovial aos olhos de quem o viu com carinho e muito orgulho, que tudo vendia, à exceção da simpatia que nos era oferecida pelos seus arrendatários.
- Algumas fotos foram retiradas com a devida vénia dos blogs: The Delagoa Bay e House of Maputo.
Manuel Terra – Dezembro de 2020
6 Comentários
Moisés Gil
Quem não se recorda das idas, quase obrigatórias, todos os sábados a este icon da nossa cidade jardim. Recordo com saudade destes tempos. Feliz Natal a todos os moçambicanos e a todos que viveram estes momentos de convívio.
Abdul
Excelente descrição. Felizmente conheci e conheço o bazar hoje mercado municipal fui vendedor de frutas nos 60/70, lembro o azáfama nas quadras festivas do fim do ano. Tínhamos frutas do cabo e de Portugal recebíamos melão de Leiria assim como uvas embaladas em caixas de madeira com serradura.foram tempos inolvidável.
Obrigado Big slam
Odete Gabriel
Verdade, tinhamos o bom produto e as cores e cheiros que nos enchiam a alma!
Luiz Branco
Xoane,
É Abdul do Bazar que tinha a banca da fruta? jogou futebol no Benfica de LM?
A minha mãe era sua cliente assidua e o meu pai conhecia-o bem se for a pessoa que estou a pensar.
Sou o filho do Branco da Wagons-Lits e do Benfica.
Obrigado
Zé Carlos
Uma bela descrição do primeiro Ex Libris da Baixa e caldeirão cosmopolita da cidade.
Não sei se são as brumas da memória ou esquecimento… Na esquina do lado esquerdo à entrada não havia um salão de bilhar?
O que lembro bem é após uma manhã bem atarefada nas compras com os pais ou avós, antes de regressar a casa, sentar-mo-nos à mesa do café/bar e dependente da hora do dia, saborear um bolo de arrôz ou um prego no pão, acompanhado por um refregirante da Reunidas e ao sair, observar no passeio os engraxadores sentados nas suas caixas do oficío, com orgulho a fazer o pano de polir estalar e chiar no brilhante sapato…
Manuel da Silva
“Hoje chamado de Mercado Central de Maputo, Bazar Vasco da Gama de ontem, mas sempre um espaço de cultura, mescla de gente de todas a raças que continuam a dar vida aquele edifício ex-libris da cidade … bazar sempre jovial aos olhos de quem o viu com carinho e muito orgulho, que tudo vendia, à exceção da simpatia que nos era oferecida pelos seus arrendatários.”
Tendo eu visitado este bazar algumas vezes, obviamente também fui daqueles que sentiu um bazar sempre jovial que me foi dado a recordar com carinho e muito orgulho. Recebi como toda a gente a simpatia oferecida pelos seus arrendatários.
Excelente descrição do Sr. Manuel Terra. Parabéns a si e ao BigSlam.