Os Tramways – Transportes que marcaram uma época em L. Marques
Falando de Lourenço Marques de antanho, ficou percetível que aquela imensa terra africana crescia a passos largos e não havia que duvidar do rumo a políticas de modernização, que a haviam de projetar para uma cidade de incontornável beleza transformando-a numa joia de África. Ainda o século XX não figurava no calendário, e já a 6 de Novembro de 1894, era inaugurada a linha ferroviária entre Lourenço Marques e a Província do Transvaal, possibilitando aos bóeres de forma mais eficiente o transporte de ouro e diamantes, que eram descarregados posteriormente para interior dos navios de carga que aportavam ao cais marítimo da capital moçambicana, entretanto já em obras de ampliação e que o tornariam como infraestrutura estratégica, dada a sua posição geográfica. Naturalmente que todas estas operações constituíam uma mais-valia para a economia local, aliada à vinda de muitas comunidades do exterior, que ali fixaram residência.
Junto à zona portuária e espaços adjacentes, tendo em conta o intenso movimento da atividade ferroviária e marítima, foram sendo construídos armazéns de mercadorias, os estabelecimentos comerciais, quiosques e bares de diversão noturna. Na zona da Baixa, já era notório o movimento de transeuntes, quando para lá se deslocavam para trabalharem e fazerem compras. Vinham dos espaços dos arrabaldes, enquanto a cintura urbana ia ganhando dimensão. Mas naquela cidade pensava-se o futuro, e o executivo camarário atento à expansão da sua urbe, estabeleceu em 1891 o primeiro regulamento de transportes urbanos, que assentava numa carroça equipada com bancos, puxada por cavalos. Contudo, em 1900 foi aberto o concurso para dotar a cidade de uma rede de transportes públicos, movidos a eletricidade. Decisão tomada, tendo como exemplo o modelo britânico implementado na cidade de Alexandria, no Egipto, com uma rede de elétricos que operava desde 1902, o que veio a suceder também na cidade do Cabo, em Joanesburgo, na África do Sul, e em Nairobi, capital do Quénia.
Em Lourenço Marques, não se falava de outra coisa e em 1903, depois de um processo conturbado, a edilidade local deu parecer favorável aos trabalhos de assentamento da via metálica, associado à instalação elétrica através de rede aérea (550V em CC) e a construção da Estação Geradora de Energia Elétrica (875 KW) que abastecia o Porto Marítimo e os Caminhos de Ferro, sob a supervisão da recém-criada, em Londres, The Delagoa Bay Development Corporation Limited.
Os trabalhos corriam a um ritmo alucinante, e um ano depois eram feitos os primeiros ensaios com os carros elétricos encomendados à Inglaterra. A inauguração oficial dos transportes públicos, ocorre a 15 de Fevereiro de 1904, e o serviço regular de passageiros tem lugar no dia seguinte às 7 h00 da manhã. O hangar estava localizado na Av.24 de Julho, defronte do lugar onde mais tarde veio a ser construído o Cineteatro Manuel Rodrigues.
No auge do seu funcionamento a frota adquirida às empresas Dick Kerr & Milne Car Company, era composta de 14 carros motores, três atrelados e três carros para carga. Os carros eram abertos com bancos transversais, com uma lotação máxima de 32 lugares. As crianças em fase escolar, pagavam 2/3 das tarifas em vigor. A linha mais comum, ligava a Estação dos Caminhos de Ferro, passando depois pela Rua Consiglieri Pedroso, Praça 7 de Março, terminando no alto da Av. Aguiar (depois Av. D. Luís).
Um segundo troço, ligava o alto da Av. Aguiar, derivando para a Av. 5 de Outubro até ao Quartel Militar do Alto-Maé.
A terceira via, partia da Capitania e entroncava com a linha da Estação, subindo a Av. Aguiar (depois D. Luís) até ao início da 5 de Outubro, virando para a Av. Central (depois Av. Manuel de Arriaga) e parando junto do Cemitério S. Francisco Xavier, dando o nome à linha do Cemitério.
Depois foi criada a linha da Polana, que utilizava a via da Av. Miguel Bombarda (depois Av. Brito Camacho), a Av. António Enes e terminava no cruzamento da mesma, com a Av.24 de Julho.
Foi também lançada a linha para a praia da Polana, ou seja, o prolongamento da mesma até à zona de banhos. Esta linha tinha como ponto de partida a Estação dos Caminhos de Ferro.
Também a linha do Cemitério, sofreu a ampliação da sua extensão, estendendo-se pela Av. Pinheiro de Chagas, até ao Bairro do Alto Maé. Aquando dos trabalhos de construção do imponente Hotel Polana, foi crido um ramal que partia da Gare, seguindo a Av. 24 de Julho, até ao cruzamento com a Av. António Enes e direcionado depois até ao Hotel Polana.
Aos sábados e domingos, pelas 23 horas, os “Tramways” perfilavam junto à Praça 7 de Março, recolhendo os habitantes que passeavam pela Baixa citadina, com destino ao Alto Maé e Polana, recolhendo depois à gare. Havia quem afirma-se que o primeiro dia os “Tramways” foi o mais funcional, tendo sido vendidos cerca 7000 bilhetes, num clima de grande festividade. Já não se poderá dizer o mesmo dos dias seguintes, com o incómodo do incumprimento horário, e o desespero de quem os esperava. Depois nos trajetos, e por se tratar de vias de um só sentido, acabariam vezes sem conta, por se encontrarem frente a frente dois elétricos, que como seria de supor obrigava um deles ao recuo até um circuito de derivação, originando protestos dos utilizadores.
Os tempos que se seguiram, não vieram de forma alguma melhorar a qualidade dos serviços, levando a frequentes queixas apresentadas à empresa concessionária, que iam dos constantes atrasos muitas vezes provocados pela avaria dos elétricos, a falta de manutenção, aposta no investimento e pior do que isso, a conflituosa relação dos utentes com os guarda-freios de origem inglesa, acusados de trabalharem em evidente estado ébrio. Aconteceu o que já era previsível, quando a Companhia inglesa anunciou a 30 de Abril de 1931, a suspensão dos serviços e que nos termos do contrato implicou a perda de concessão.
A Câmara Municipal, decidiu de forma direta a 26 de Novembro de 1931, reiniciar o serviço dos transportes elétricos e nessa fase devido à delicada situação financeira com que se viu a braços, reuniu o executivo e ficou decidido diminuir o salário a todos os funcionários ligados aos transportes, até conseguir uma redução de 40 contos, relacionados com o défice dos “tramways. Mas os males antigos prevaleciam, e aconteceu aquilo que os laurentinos quase em surdina vaticinavam; A 24 de Novembro de 1936, chegava o fim de linha da época dos famosos “tramways” deixando para sempre de se ouvir na cidade, o som cavo das rodas metálicas nos carris.
Competiria depois aos Serviços Municipalizados de Viação (SMV), assegurar os transportes públicos da cidade, com uma frota de machimbombos que marcou uma mudança significativa no sistema de transporte público. Hoje, muito provavelmente já ninguém se lembrará dos “tramways” circularem na nossa cidade, e as marcas desse tempo estão apenas gravadas e cravadas no asfalto das artérias, onde era possível descortinar as bitolas percorridas.
Contudo, estou em crer, foi um erro crasso não se ter construído o Museu dos “tramways”, que poderia ter expressão na estação de recolha, sede da The Delagoa Bay , e que mais tarde passou para a competência dos Serviços Municipalizados da Água e Eletricidade (SMAE). Uma forma de dar a conhecer àqueles que nasceram depois desta época, o popular meio de transporte que ganhou rapidamente o agrado da população, fazendo parte do quotidiano das pessoas e do crescimento de Lourenço Marques. Diria que primeiro se estranhou, mas que depois se entranhou de uma forma romântica. A ida e a volta para o trabalho, e modo cortês com que os usuários acenavam para os moradores das artérias percorridas. As idas para banhos, e festas de diversão. Os namoricos no elétrico, e os costumais passeios dominicais, marcaram uma época histórica merecedora de se devolver a memória à cidade de que todos nos orgulhamos.
- Fotos retiradas com a devida vénia dos blogs: The Delagoa Bay e The House of Maputo
Manuel Terra – Julho de 2023
9 Comentários
pereira.marioneto@gmail.com
Investigação muito interessante e uma bela leitura. Obrigado.
Armindo Matias
Não nasci em Moçambique, não cresci em África, apenas passei por LM onde fiquei por 2anos depois de uma aventura nas picadas do Niassa, mas fui contaminado por esse bichinho que infetou tantos portugueses, deixando saudades que me levam a ler com grande interesse estas histórias cativantes e muito bem contadas, de um mundo já tão distante. Parabéns Manuel Terra. E venha a próxima.
Antonio Mendes
Muito interessante. Parabéns.
Firmino Fonseca
Manuel Terra, muito obrigado por este contributo, importante para um maior conhecimento da cidade que nos viu nascer e crescer! E parabéns !
ABM
Manuel
Muito bom. umas achegas – e falo de memória.
1- Quando os tramways pifaram, os SMV não apareceram logo. Primeiro houve uma operadora de machimbombos que era do Paulino dos Santos Gil, que na altura já era dos maiores empresários que Moçambique tinha. Eventualmente, penso que no início dos anos 50, ele alienou a empresa ao município que se tornou nos SMV.
2- basicamente os Tramways eram só para brancos. O resto presumo que andava a pé.
3- na LM entre 1903 e 1940, quase ninguém tinha carro. O transporte público era usado por toda a gente de todas as classes. As pessoas faziam tudo usando o transporte público. Para o resto, havia táxis.
4. a cessação do serviço não foi só por causa do mau serviço. Para além de intermitente, era caro. Mas o beijo da morte foi que a Delagoa Bay Development Co. não queria investir na manutenção e na expansão do serviço. O machimbombo tinha a vantagem de não exigir carris nem cabos eléctricos.
ABM
Manuel Martins Terra
Caro amigo António Botelho de Melo, tens razão quando esclareces que após o final de linha dos tramways (havia quem lhe chamasse tramados), foi por algum tempo que o grande empresário Paulino dos Santos Gil, possuidor de uma pequena frota de autocarros, assegurou os transportes urbanos da cidade .Acontece, que o Estado Novo fez forte pressão junto do governo da Província, no sentido de retirar aos ingleses, a administração de serviços públicos e assumir os mesmos. Paulino dos Santos Gil, um homem de grande carater, deve ter sido abordado e conhecedor das intenções do Estado Português, deve ter negociado os seus cerca de 16 autocarros, com o diretor do então designado Serviço de Viação Municipal .Entretanto, também a The Delagoa Bay, que detinha a distribuição de água e fornecimento de eletricidade à cidade, perdeu a concessão que passou para a esfera da Câmara Municipal. Creio que a partir de 1940, por deliberação do seu executivo, foram criados dois órgãos municipalizados; os Serviços Municipalizados de Viação (SMV) a quem competia gerir os transportes urbanos, e os Serviços Municipalizados de Água e Eletricidade( SMAE), onde trabalhei, que tinham que assegurar o fornecimento de energia e manutenção das redes. Até à data que regressei a Portugal, esses órgãos ainda se mantinham em atividade. Posteriormente , os transportes públicos, passaram para os TPM, e surgiu também a Eletricidade de Moçambique. Mas como em Moçambique, se espreitava sempre o futuro, lembro-me que em algumas cavaqueiras de café e nomeadamente nas mesas do CONTINENTAL, já se falava à boca cheia, que estava na forja um plano para a instalação do Metro de Superfície, da responsabilidade de um grupo de empresários locais de idoneidade reconhecida. Estávamos, no ano de 1972. Obrigado António, pela tua sempre oportuna intervenção e disponibilidade. Um abraço amigo, do Manuel Terra.
Augusto Martins
Muito obrigado ao Manuel Terra e a todos os outros que têm contribuído para a reconstituição de uma época da real história da minha querida terra.
Quero acrescentar (se me permitem) dois pequenos pormenores para este capítulo dos “eléctricos” : 1- a marca deste autocarro encarnado e branco da foto, em que inúmeras vezes me desloquei, era BUSING NAG; 2- na língua nativa local, os “eléctricos” eram designados pela onomatopeia “xigurrugurro dandan”, que correspondia ao som produzido pela sua deslocação sobre os carris.
Grande abraço.
Manuel Santos Silva
….de qualquer modo, muito obrigado ao Sr Manuel Terra pela excelente reportagem aqui apresentada.
Cumprimentos.
Manuel Santos Silva
….sem dúvida, foi um erro crasso não se ter construído o Museu dos Tramways de L.Marques no local onde os carris partiam/acabavam, e que ainda lá se encontram, frente ao ex-cinema Manuel Rodrigues, agora abandonado à sua sorte…