Procura! Ando sempre à procura!
Olhe, daquilo que eu ando à procura? Ando sempre à procura! Sempre à procura! Um caminho, é um caminho sem fim! Ando sempre à procura!”
Foi assim que Carlos do Carmo respondeu à pergunta (Ao romper com o fado fadário ou a elegia marialva, o que procurava?) colocada pela jornalista Fátima Campos Ferreira, em entrevista bibliográfica concebida em 5/09/2016, espreitando e caminhando na sua cidade, do Bairro da Bica (onde nasceu) ao Chiado (por onde passeou), até ao Quartel do Carmo (onde foi pela primeira vez).
Surpresa! Carlos do Carmo foi surpreendido na sua adorada Lisboa, pelo deslumbrante miradouro, onde enalteceu e evidenciou a imaculada luz da cidade, a sua eterna menina e moça, concebida na Rua da Saudade (em casa de José Carlos Ary dos Santos, [1937-1984], poeta e declamador).
A entrevista serviu de mote ao presente escrito, onde evidencio os traços marcantes (aos olhos meus) do vulto intemporal do Fado, enquanto gênero musical identitário da valente e imortal nação portuguesa!
O Fado foi elevado em 2011 à categoria de Património Cultural e Imaterial da Humanidade da UNESCO (Artigo 2º Alínea_1: O património cultural imaterial, transmitido de geração em geração, é permanentemente recriado pelas comunidades e grupos em função do seu meio, da sua interação com a natureza e a sua história, proporcionando-lhes um sentimento de identidade e de continuidade, contribuindo assim para promover o respeito pela diversidade cultural e a criatividade humana).
Procura, incessante procura, o lema de vida de um homem na cidade (de menina e moça, com luz, alma e uma música! _Lisboa tem alma! _Lisboa tem uma música! _Roma é frenética! _Madrid é frenética! _Lisboa é uma cidade apaziguadora!), que cantou e encantou os poemas sentidos vertidos de fina pena, como se as palavras saíssem de dentro de si, embaladas com alma, num timbre e dicção, superiores!
Tem a palavra, Carlos do Carmo, a voz do fado, mas não só (ver, ouvir e contemplar a magnânima entrevista em www.rtp.pt), na primeira pessoa, numa síntese pessoal e titulada segundo o meu prisma e enquadramento:
- «O Fado é tradição oral, expressão sentimental, qualquer coisa genuína que vem da alma, que deve ter boas palavras, que deve ser bem cantado, bem estilizado, como fazia o Sinatra, que era um grande fadista! Bem estilizado, como fazia o Marceneiro! O fado tem o seu espaço, mas não é a música portuguesa! O fado, é o fado!»;
- «Alfredo Marceneiro [1891-1982], o mestre, inesquecível, profundo respeito, profunda admiração, não era um bota-elástico, era um homem muito para a frente, disse-me uma vez, questionado sobre o meu primeiro fado em disco e as inovações respectivas: “bou bêr se no próximo disco gravo com uma cortina de violinos!”;
- «Quando falamos na história do fado, as grandes figuras são cinco ou seis, e cantaram centenas deles! Carlos Ramos [1907-1969], uma maravilha! Maria Teresa de Noronha [1918-1993], era uma coisa absolutamente divina! Beatriz da Conceição [1939-2015], a minha Bia, da minha geração, e também da minha geração, a Maria da Fé [Porto-1945], canta maravilhosamente! (…) Agora, não faço ideia, acho isto tudo tão rápido! Fala-se de um artista, e de repente deixa-se de falar!»;
- «A Maria Judite é o meu pilar, minha esposa num casamento ralhado, foi o pilar da minha carreira! Eu sou um artista, a minha mãe era uma artista (Lucília do Carmo [1919-1998], fadista), os artistas são difíceis!»;
- «Em Espanha tenho um público fiel, não numeroso, mas fiel! Têm orgulho que tenha ganho um Goya (melhor canção original com o “Fado da Saudade”, do filme de Carlos Saura “Fados”, na 22ª edição dos Prémios Goya, em 2008)»;
- «Grammy Latino de Carreira em 2014 (a celebrar 50 anos de carreira), dedico-o a todos os portugueses! Fui ao longo da minha vida, muito bem tratado! Agradeço-vos isso!»;
- «O público é que nos elege! Eu gosto de cantar, atirar a alma cá para fora e quem quiser que lhe pegue! Quando canto a “Gaivota”, estou a ver o céu de Lisboa!»;
- «A única coisa que sei distinguir são os silêncios, nunca são iguais!»;
- «O amor é a chave da vida, não há volta a dar! O que mais gostas de fazer, Carlos? -Amar!»;
- «Tudo tem o seu tempo, tudo isto foi vivido, foi bom! Tudo tem o seu tempo, como diria a Piaf: “Non, je ne regrette rien!” (Edith Piaf, [1915-1963] “não, eu não lamento nada!”)».
Dizem os amigos que foi generoso, versátil, inspirador, culto, inteligente, com poesia na voz, (…), em busca incessante da melhoria! Figura maior do Fado, que fez pontes e uniu gerações! Ouviu cantar os melhores, e não se limitou a imitar, não quis ficar por aí, tinha que inovar, de fazer algo diferente, e fez! Aquele, que ao longo da sua vida cuidou do seu fado! Aquele, como nenhum outro, interpretou a alma da cidade de Lisboa! Um anotador do quotidiano!
Digo eu, deste admirável senhor, um grande senhor que parte! Parte, deixando para contemplação, estudo e consideração (quem sabe, uma pura delícia em proeminente êxtase!), a sua imponente obra (“nem obra-prima, nem obra-tia, canções que as pessoas gostam, fados de sucesso!”), em soberana vida, vivida!
Há muito, muito tempo, prendeu-me a atenção, a interpretação ímpar de Carlos do Carmo, vibrante conjugação de palavras sobre ondulantes notas musicais, na canção “Estrela da Tarde” (poema de Ary dos Santos e música de Fernando Tordo). Fiquei rendido à sua voz colocada, engalanada em sentimentos, polvilhada por harpejos d’alma e marcada pela luminosidade num turbilhão unipessoal. Êxtase!
Anos mais tarde, foi poema escrito em tarde de espera! As palavras marcantes do intenso e denso poema foram partilhadas em alerta, prenúncio e desígnio, «”Era a tarde mais longa de todas as tardes, Que me acontecia, Eu esperava por ti, tu não vinhas, Tardavas e eu entardecia, Era tarde, tão tarde, que a boca, Tardando-lhe o beijo, mordia, Quando à boca da noite surgiste, Na tarde, tal rosa tardia, (…)”».
Realço ainda na esfera familiar, o senhor Alfredo [1942-2011], senhor meu pai (o Zé Bispo do Talho no Mercado Engenheiro Silva), que adorava e cantarolava em épicos momentos, o seu fado preferido do Carlos do Carmo, «“Duas lágrimas de orvalho, Caíram nas minha mãos, Quando te afaguei o rosto, Pobre de mim pouco valho, Para te acudir na desgraça, Para te valer no desgosto, Pobre de mim pouco valho, Para te acudir na desgraça, Para te valer no desgosto, Porque choras não me dizes, Não é preciso dizê-lo, Não dizes eu adivinho, Os amantes infelizes, Deveriam ter coragem, Para mudar de caminho, (…)”». Letra de João Linhares Barbosa e música de Pedro Rodrigues.
Mas, não foi só em ambiente familiar, que escutei com atenção, fervilhando de emoção, as canções e os fados de Carlos do Carmo, estive ao vivo na plateia do Pavilhão Atlântico (29/11/2008, comemoração dos 45 anos de carreira dedicada ao fado e ao grande amor por Lisboa) e no Casino-Figueira (22/03/2013, na celebração dos 50 anos de carreira, num percurso sólido e consistente no panorama artístico português). Foram tantas as emoções sentidas e vividas, são momentos que eu não esqueci, detalhes pequenos ou maiores, consoante o bater do coração. Pára, deixa de bater, eu já não te acompanho mais! Este parte, aquele parte, e todos, todos se vão!
Obrigado, Carlos do Carmo [1939-2020].
Figueira da Foz (maravilhosa cidade, linda e bonita), 04 de janeiro de 2021
Aos beijos e abraços (sanitários e solidários), Paulo JF Craveiro, v/devoto incensador de mil deidades,
2 Comentários
Jaime Nascimento
Muitas vezes vi e ouvi Carlos do Carmo. Curiosamente, não me recordo de o ouvir mencionar os nomes dos “fazedores” dos poemas e músicas por ele interpretador! Cantar, quando a voz para tal empresta, digamos que é um dom natural, sempre apreciável claro!
Acho porém que, escrever um poema ou colocar numa pauta um trecho musical, tem muito mais de genial que uma simples interpretação!
Nunca os recusei e, mesmo dum palco, tive a oportunidade de enaltecer a qualidade interpretative de Carlos do Carmo!
Resta-me deixar uma questão: quem agora é que irá dar voz aos enormes êxitos de José Carlos Ary dos Santos, Paulo de Carvalho ( só para citar alguns…)?
Carlos Hidalgo Pinto
Carlos do Carmo foi um grande intérprete da música portuguesa, introduzindo inovações no fado que segundo ele, chegou a se dançado.
Foi um homem que pugnou pelos direitos humanos e mesmo tendo sidp de esquerda, era uma personagem heterodoxa, congregando admiração e respeito em todos os quadrantes da vida política nacional.