À Memória De Uma Grande Mãe Luso-Moçambicana
(I Parte)
Nasceu em Moçambique, em Lourenço Marques (Maputo, hoje), no princípio do século XX, reinava ainda a monarquia naquele Portugal que se dizia ser do Minho a Timor, onde todos nasciam e morriam portugueses, e faleceu em Portugal quando o século se aproximava do seu final, imperando já a democracia que, entretanto, tinha sido restaurada à república (portuguesa).
Viveu 90 anos, dos quais 71 em Lourenço Marques, donde nunca saíra. Desconhecia, na sua prática de vida, que havia mais mundo para além dos limites territoriais da sua terra natal. Para o viver que tinha, o mundo aqui começava e terminava nos seus arredores.
Quando saíu, em 1977, foi só com bilhete de ida. Fê-lo, desencantada e desgostosa com o rumo que a sua terra (entretanto já independente) seguia, e lamentando o futuro sombrio que previa que se abateria sobre Moçambique e os seus cidadãos. Antes se tivesse enganado.
Viveu a monarquia e várias repúblicas, regimes democráticos e ditatoriais, salientando-se duas ditaduras de sentidos contrários, uma, fascista-colonialista e, outra, comunista-estalinista.
Seu nome, Rosa.
Sua vida, teve menos de pétalas, da flor, e mais de espinhos, da haste (caule). Vá-se lá saber se a sua vida foi o que foi para fazer jus ao nome, mas que os espinhos se sobrepuseram à flor, ou se o nome lhe foi dado em premonição do que viria a ser a sua vida.
Foi uma verdadeira heroína anónima, como milhares de mulheres em Portugal, em Moçambique, e em todo o Mundo. Heroínas conhecidas e reconhecidas unicamente pelos familiares, pelas amigas e pelas vizinhas, sem imprensa, sem entrevistas, sem condecorações, sem discursos, sem nome dado a coisa alguma e gravado em placa alguma, senão na do túmulo funerário. Heroínas condecoradas unicamente por si próprias, pela sua consciência e pelo seu sentido de responsabilidade e de instinto de mães.
Embora as linhas que seguem sejam uma homenagem a essa mãe, Rosa, elas ajustam-se a todas as mães heroínas-anónimas que todos sabemos existirem milhares e milhares por todo o Mundo. Mães casadas ou descasadas, juntadas ou solteiras, empregadas ou desempregadas (mas nunca sem trabalhar), vestidas de vestido, de capulana, de sari, ou de burka, calçadas ou descalças, rosto descoberto ou tapado, mulheres ou procriadoras, livres ou escravas, prostitutas ou não. Mas todas, mães, que é delas que eu estou a falar.
Nascida no tempo em que imperava a rigidez dos valores, da educação e da disciplina, Rosa teve uma educação pretensamente monárquica e estudou em colégio. Teve uma infância e uma adolescência despreocupadas, mas a rigidez da sua educação desprotegeu-a para a vida. Falecidos os pais, começaram as dificuldades. Perdido o marido e ficando com filhos pequenos, as dificuldades ainda mais se agravaram.
Perante as dificuldades e as carências que a vida lhe ia presenteando, tornou-se equilibrista da sobrevivência e economista-gestora dos seus parcos recursos, tendo-se licenciado na universidade prática da vida, vindo a doutorar-se na gestão de orçamentos reduzidíssimos.
O orçamento que mensalmente dispunha era de 1.025,00 Esc. (mil e vinte e cinco escudos), ou sejam 5,125 € (aproximadamente cinco euros, vinte e cinco cêntimos), isto, a valores das décadas de 50 e 60 do século passado:
– Pensão de sangue, do Montepio Geral ……………………………………… 175,00 Esc.
– Subsídio de pobreza, da Assistência Pública ………………………………. 350,00 Esc.
– Senha para a mercearia, da Acção de S. Vicente de Paulo ………………. 100,00 Esc.
– Trabalhos de costura (média estimada) ……………………………………… 250,00 Esc.
– Ajuda de um dos irmãos ……………………………………………………….. 150,00 Esc.
- Total: 1.025,00 Esc.
Dispunha ainda de outras dádivas que não consigo quantificar:
– Anualmente, subsídio para livros escolares para os filhos, da Assistência Pública;
– Episodicamente, oferta de vestuário e brinquedos, da Acção S. Vicente de Paulo;
– Diariamente, panela com sopa, da Missão (católica) da Munhuana.
Apesar deste magro orçamento mensal, nunca gastava mais do que dispunha (provavelmente por se tratar do seu dinheiro e não dos outros), fazia uma vida compatível com os meios disponíveis, e nunca falhou com os seus compromissos. Quando surgia uma situação imprevista que a obrigasse a um pedido de empréstimo junto de alguma amiga ou vizinha, ou de fiado na cantina/mercearia, liquidava sempre e nunca recorria a subterfúgios para protelar ou fugir ao pagamento, norma que hoje parece estar instituída. Honrar a palavra dada e os compromissos assumidos era, para ela, norma habitual. Não era de estranhar, portanto, que na cantina e junto da vizinhança tivesse crédito, respeito e estima.
À medida que a sua vida progredia na via das dificuldades e carências, ela avançava do “xilunguine” para os subúrbios, onde conseguia rendas de aluguer da casa muito mais baixas. A alternativa ao apartamento passou a ser as “vivendas” em chapas onduladas de zinco e quintais vedados em caniço.
As noites passaram a ser iluminadas por candeeiros a petróleo e por velas, a água era transportada do fontanário público, e a sanita substituída por um balde no interior de um caixote de madeira com abertura circular no topo e abertura no lado virado para o exterior da casa, a partir do qual o balde era despejado à noite pela “brigada da merda” (funcionários de saneamento da Câmara Municipal).
Por força do magro orçamento que dispunha mensalmente e da integração no meio social de que agora passava a fazer parte, em casa e nas brincadeiras os filhos passavam o dia descalços, e a alimentação foi também alterada (enriquecida na diversidade e empobrecida na qualidade), passando agora a incluir também:
Passou também a entender o dialecto ronga, pelo que percebia quando as vizinhas se lhe referiam, comentando: “ela é uma branca preta”, “esta já é das nossas”, etc. Melhor elogio e conforto não poderia haver, vindo de quem vinha.
Pierre Vilbró – Julho de 2018
3 Comentários
Pierre Vilbro
A todos agradeço o interesse, que os comentários atestam.
Ao Pepita: Gostei de saber de ti. Claro que me lembro do extremo-direito do S.C.L.M., que, da bancada, anos a fio, me habituei a ver jogar, e com quem também treinei nos séniores, durante um ano em que joguei nas reservas, após saída dos júniores. Um grande abraço.
Ao Samuel (BigSlam), o meu agradecimento e apreço pela extraordinária ilustração do texto. Não deve ter sido fácil, e os níveis de stress devem ter aumentado, e muito. Ganharam o texto e as suas mensagens, e, certamente, ganharam os leitores.
Nita Malta
Sem dúvida uma das muitas “Mulheres Guerreiras”!
Esperança Marques
Muito grata pela maravilha que acabei de ler. Retrata na perfeição a verdade da vida de cada mulher que tanto sofreu para levar para a frente a sua vida, Parabéns pelas pinturas do Malangatana, muito bem enquadradas e parabéns a Pierre Vilbró pela excelente crónica, que adorei ler. Saudações Moçambicanas.