À Memória De Uma Grande Mãe Luso-Moçambicana
(II Parte)
Perante a realidade atrás descrita, na I Parte (editado pelo BigSlam em 13/07/2018) – Clique AQUI
quem não leu ou quem o fez, mas já não tenha presente o seu teor, embora não obrigatório, seria vantajoso fazê-lo para ter presente os antecedentes do que segue -, a esta mãe não foi nada fácil gerir a sua vida, criar e educar os filhos. Mas fê-lo e conseguiu-o, sem nunca perder o Norte, e jamais ser acusada de negligência, laxismo ou incompetência.
Podia faltar comida à mesa – não poucas vezes tal acontecia nos últimos dias do mês -, mas não podia faltar Escola aos filhos – que grande bênção os almoços diários na cantina escolar. Perfilhando a convicção de que da vida nada ou quase nada havia a esperar, teimou que a esperança para o futuro dos filhos residia nos estudos.
Dia após dia, semana após semana, mês após mês, esta mãe não esmorecia e realizava-se na realização do futuro dos seus filhos, que construía com educação, princípios, valores e Escola. Este modo de pensar e de agir poderá ser surpreendente relativamente a quem vivia em bairros residenciais de gente humilde, carenciada, marginalizada da sociedade, maioritariamente habitada por negros, com eles convivia diariamente, e deles não se excluía. A explicação está em que ela teve berço, como referi na I Parte, passado despreocupado que o presente preocupado não tirou.
Tal como os dias se pautavam pela repetição dos dias iguais, salvo alguma rara excepção, as noites também não fugiam ao repetir dos procedimentos. Os filhos dormiam o sono profundo da inocência das suas idades e revigorador das energias despendidas durante o dia na Escola ou nas brincadeiras (que incluíam futeboladas e “vadiagens”, sempre descalços, em conformidade com a prática dos seus amigos e dos habitantes dos bairros onde e com quem eles iam crescendo), alheios a que na vida corria também uma outra vida que eles ainda não se apercebiam. Mas que a mãe, porque a vivia, e enquanto não adormecia, na escuridão do seu quarto e no silêncio da noite, ia passando em revista tanta coisa feita de coisa pouca, esforçando-se por alimentar uma esperança ténue que ela teimava que teria que haver e que insistia em acreditar. Não poucas noites as lágrimas escorriam-lhe pelas faces, esforçando-se por chorar em silêncio para que os filhos a não ouvissem e para não perturbar o silêncio da noite. Mas que o dia não lhe correspondia na mesma consideração. Tudo isto, agarrado ao terço, com o qual rezava até que o sono pusesse côbro à reza e aos pensamentos.
A culminar tantos anos de sacrifício e abnegação total, chegou ao topo da sua realização pessoal: criou, educou, formou e deu rumo para a vida aos filhos. Com estes lançados, cada um com a sua independência, passou a viver em casa dos filhos, em alternância. Nas suas vidas evitava intrometer-se, limitando-se somente ao que o bom senso e a experiência aconselhavam. Interiormente, e em silêncio, saboreava o doce sabor de ter conseguido suplantar-se e a felicidade do dever cumprido.
Uma rotina nocturna não alterou: o rezar do terço, antes de adormecer, agradecendo e pedindo.
Agradecia a Deus ter-lhe ajudado a cumprir a sua missão, embora com tremendas dificuldades, sacrifícios e lágrimas escondidas. Penar este que várias vezes a levaram a questionar se Deus ouviria as suas preces e se selecionaria a quem acudir, e com que critério. Seja como fôr, mostrava-se grata. Mas não teria havido ajuda divina que valesse, se ela não tivesse feito por ela própria.
E pedia a Deus, agora não para si, mas para os seus filhos, suas noras, suas netas e seu neto. Os bisnetos e as bisnetas já não chegou a conhecê-los porque, entretanto, partira, para a sua última viajem, a de sem retorno. Tinha chegado a sua hora.
Mas antes disso, e porque tempo livre agora não lhe faltava, passara a viajar muito – em pensamento. Recapitulava o que fôra a sua vida, indo sempre a Moçambique, à sua Lourenço Marques natal, revivendo os lugares, os momentos, os acontecimentos, e as “suas gentes”, suas dela, dos lugares e da terra, tudo de si indissociáveis.
Nestas suas viagens da memória, um assombro de ensombramento que constituía um dos seus desgostos (não sei dizer se o maior):
Com a independência de Moçambique consumada, iniciou-se o tempo do acerto de contas com o passado colonial e de construção do homem novo. De acordo com o ideário dos novos governantes, ela (Rosa) já não seria povo, classe social a que a sua prática de vida e a sua condição de indigente naturalmente conferiam. Passaria, devido à claridade da sua pele e à lisura dos seus cabelos, à classe dos colonialistas, racistas, exploradores, reaccionários, sabotadores, agentes do imperialismo e do capitalismo. Podia? Tinha cabimento?
Embora nunca tivesse sido hostilizada, nem ela qualquer problema criasse, e mantendo-se o que sempre fôra (não aderente a qualquer ideologia), passou a sentir-se estrangeira e tolerada na sua própria terra. Como permanecer e como não obter bilhete só de ida? Não havia como!
Eis a justificação da sua partida definitiva para Portugal, com destino à casa de um dos seus filhos que já tinha feito o mesmo. Como antes, muitos milhares já o tinham feito, e como muitos outros viriam a fazê-lo. Brancos, indianos, chineses, mestiços, mulatos e negros. Católicos, protestantes, muçulmanos, hinduístas, budistas, etc. Demagogicamente, eram intitulados de “fugitivos”, “com medo”, “vende pátrias”, etc. Algo não batia certo. Podia o mal radicar nesta gente, tão elevadas a quantidade e a diversidade? Não! O mal e os responsáveis estavam a montante das suas saídas. Montante longínquo e montante recente.
Não há ninguém (individual, colectiva e institucionalmente) que não erre. Reconhecer e admitir os erros, é um sinal de inteligência, bom senso e modéstia. Aprender com eles e não laborar na repetição, é um acto louvável. Aprendamos e melhoremos todos, que todas as “mães Rosa” aguardam-no e o seu exemplo merece-o.
Já muito debilitada, movimentos lentos, voz pausada e cada vez menos audível, olhar fixo e inexpressivo, já mais acamada do que levantada, adormeceu e não mais acordou naquele dia 19.
Na lápide da sua campa está a única condecoração com que foi agraciada, a título póstumo. Sobre a pedra de mármore da laje tumular, foi inscrito:
Esta, a história sucinta (escrita com muito de real e algo de ficção) de uma mãe extraordinária. Ela existiu e viveu a vida aqui retratada.
Que cada um avalie se esta mãe deve ser considerada moçambicana, portuguesa, de ambas as nacionalidades, ou de nacionalidade nenhuma (porque do Mundo).
Paz à sua alma, honra à sua memória.
Pierre Vilbró – Julho de 2018
2 Comentários
Pierre Vilbro
A todos agradeço o interesse: pela leitura, pela reflexão e pelo comentário. Agradecimento e reconhecimento também é devido ao Samuel (BigSlam) pela ilustração do texto.
Angela Reis
Justa homenagem a tantas mulheres que foram deste pais e tiveram que voltar ..mulheres guerreiras sem armas