Natais Virtuais em Lourenço Marques
O texto que segue é inspirado na realidade da vida de um menino laurentino.
Em Lourenço Marques, no tempo em que a capital de Moçambique assim se chamava, durante os anos da sua meninice e na época natalícia, um menino, sempre que passava em frente a estabelecimentos que comercializavam presentes de Natal, principalmente brinquedos, parava em frente das montras e maravilhava-se a mirar os brinquedos e os presépios expostos.
Começava com o olhar e, acto contínuo, o seu encantamento transportava-o para o mundo mágico do Natal, imaginando-se a brincar com tantos tipos de brinquedos. Brinquedos que nunca lhe eram comprados.
Olhando para o lado, para a porta, o menino via pessoas a entrar, outras a sair com embrulhos contendo presentes de Natal. Quando os adultos se faziam acompanhar pelos filhos pequenos, estes também levavam embrulhos nas mãos e sorrisos de felicidade estampados na cara. Embrulhos que ao menino jamais fôra proporcionado transportar e abrir.
Era assim que o menino vivia o Natal dos brinquedos, o seu Natal virtual.
Para contornar esta carência, resultante da muita precária situação financeira do seu agregado familiar que impossibilitava gastos com a compra de brinquedos, a mãe ia com os filhos ao Dispensário de Santa Filomena, sito na avenida Pinheiro Chagas, próximo do Cinema Infante, no bairro do Alto-Maé, onde as irmãs católicas distribuíam brinquedos pelas crianças carenciadas, os quais eram oferecidos para o efeito pela sociedade civil da cidade. Cada criança era contemplada com alguns brinquedos.
Ao nosso menino, a eles se resumia o seu Natal real.
Saindo do Dispensário, à esquerda continuava-se pela cidade urbanizada (com redes de abastecimento de água, de esgotos, de iluminação pública, rede telefónica e arruamentos), para os bairros da Malhangalene e da Polana, por exemplo; saindo em frente, descia-se para a baixa da cidade; a nossa personagem e os seus seguiram para a direita, onde a cidade urbanizada terminava e começava a outra Lourenço Marques, a dos bairros dos subúrbios, sem infraestruturas urbanísticas, e de casas sem chaminés. Aí vivia o nosso menino.
Nas noites de Natal, não se cumpria a consoada. Adormecia-se à hora habitual, a mesa não era posta, não havia árvore de Natal montada, nem presentes para abrir pois o Pai Natal nunca aparecia (talvez porque a casa não tinha chaminé, porque ele soubesse que estivessem todos a dormir e que ninguém estivesse à sua espera).
Portanto, os Natais do menino não eram feitos de consoada, de vinda do Pai Natal e de abertura de presentes. Os Natais reais eram ausentes da sua vida, substituídos pelos Natais virtuais, preenchidos pelos brinquedos recolhidos no Dispensário e pelo fascínio vivenciado em frente das montras das lojas comerciais.
Entretanto, os anos foram passando, o menino tornou-se adolescente, depois fez-se homem, iniciou a subida da escada da vida, sempre subindo, até que sopraram os ventos da História. Com o vendaval que estes trouxeram, decidiu deixar a sua terra, donde jamais saíra, e rumou a paragens aonde nunca antes aportara.
Foi somando anos à vida, vivendo sempre o fascínio do Natal, já não virtual, mas real, agora consubstanciado nos Natais que os filhos viveram e depois nos dos netos.
Com este texto lembro todos os meninos sem Natal. Os da minha terra e todos os outros por todo mundo. Ano após ano, sempre com Natal virtual. Porque havia, há e, infelizmente, sempre haverá meninos de Natal virtual.
Pierre Vilbró – Janeiro 2025
10 Comentários
Sila
Sr. Pierre Vilbro, que lindo e ao mesmo tempo tao triste este texto. Pensar que eu fui uma dessas que saia a sorrir das lojas com brinquedos… Quantas e quantas criancas devem ter querido tanto ter a mesma sorte que eu. Nesses tempos e hoje tambem. Obrigada pelo texto, a vida para tantos e tao dificil e triste … 🙁
Brito Gouveia
Caro amigo Pierre, muito obrigado por estas belas e inesquecíveis recordações da nossa juventude na linda, hospitaleira e e vibrante cidade de Lourenço Marques, em Moçambique. Um grande abraço
Nino ughetto
Ulàlà que maravilhosa cidade.. tanto movimento tanta alegria, tanta gente, ulala pretos e brancos todos circulam sem diferenças toda genta todos juntos e ha quem ousa ladrare, que os portugueses (Moçambicanos) eram racistas ??? Bon, ,falemos desse bom tempo, ,foi um sonho , como foi possivél terem destruido tudo tudo tudo.. Enfim ‘Tudo passa tudo acaba’ Hoje aqui estou(estamos) sozinho nesse Pais que nào é o meu Pais, nem a minha gente…Vivo, so com a minha esposa, e todos os dias sào iguais,,Nada de novo nem interessante…O Tempo passou, quando vejo esse decumentario tào lindo, vejo os adultos que 80% jà morreram, e as crianças, hoje jà teem 50,,60 anos e outros como eu. 80 anos e mais…sem nada mais na vida que essa recordaçào de nossos amores… Um abraço e obriggado por essa boa decomentaçào…
José Moreira
Parabéns por mais um relato do que era viver na Lourenço Marques de então, neste caso do Natal dos meninos pobres. Lamento ver uma criança, como a que é relatada nos acontecimentos recentes e que não achou uma melhor alternativa que não fosse participar no saque de uma loja. O que irá ser o futuro desta criança?…
Um abraço para si e um novo ano muito feliz.
Eduardo Castro
Absolutamente exato!!!
António José Correia de Almeida
Os meus parabéns pelo texto.Adorei.
Eduardo Horta
Caro Pierre, desta vez, e ao contrário dos tuas crónicas anteriores, que tenho gostado de ler, bem como esta, claro, decidi “aparecer” e por uma razão simples. Ao mencionares o Dispensário de Santa Filomena e os Natais virtuais na vida do menino Laurentino, ao mesmo tempo que referes alguns bairros da nossa ex cidade de Lourenço Marques, relembrei o local onde vivi até aos meus 20 anos, ou seja a casa de meus pais, na Luciano Cordeiro,no quarteirão traseiro do Dispensário, onde por várias vezes entrei, mas sómente para as habitiais vacinas, afinal, bem perto de muitos “meninos Laurentinos” e dos bairros por eles habitados. Não sei se ainda te lembras de mim do tempo em que fomos companheiros nos Infantis do basquetebol do Sporting e por coincidência ao vir morar para Caldas da Rainha acabei por conviver mais com outro Vilbro, teu irmão, que encontava com frequência no café junto aos nossos locais de trabalho. Parabéns pelo texto e um forte abraço.
Pierre Vilbró
Caríssimo Horta: Lembro- me bem de ti dos nossos tempos de basquete no Sporting. Há momentos da vida que ficam para sempre gravados. Foi para mim um prazer saber de ti ao ler este teu comentário que gostei. Recebe um cordial abraço. Pierre
LUIS BATALAU
O REALISMO DO TEXTO ENQUADRA-SE NO QUE ERA A VIDA NUM TERRITÓRIO E NUMA CAPITAL MARAVILHOSA, QUE OS MANHOSOS ESQUERDISTAS DE PORTUGAL ESTRAGRAM E CONTRIBUIRAM DECISIVAMENTE PARA O QUE É HOJE MOÇAMBIQUE E PORTUGAL!
eduardo.castro@idemaspas.pt
Absolutamente!!!