Os Chãos Da Mafalala
Era suposto ser legítimo admitir-se que aquela era a sua terra, nascidos ou não nela. Legitimidade outorgada pelo seu amor sincero e profundo, cimentado ao pelos chãos serem levados com trabalho, dedicação, sacrifício, suor, lágrimas, e assimilação de uma cultura e costumes próprios, fossem os chãos de areia, cimento, asfalto, picadas ou matos, e se localizassem no Sul, no Centro ou no Norte desse grande Moçambique. Mas não foi entendido assim. Outros desígnios se impuseram.
1º Narrador: Um qualquer mufána (menino) da Mafalala, de e em qualquer tempo.
Onde houvesse chão na Mafalala, havia os nossos pés. Chão e pés numa união natural, sólida e indestrutível, que nos levavam a tudo quanto era sítio na Mafalala e nos bairros circundantes. Era assim que não havia sítio que nós não conhecêssemos, levados pelos chãos nas nossas brincadeiras e vadiagens, principalmente na Mafalala.
Sobre os chãos públicos nos deslocávamos, brincávamos, sentávamos e deitávamos. Sobre os chãos dos nossos quintais e casas, comíamos e dormíamos – sobre esteiras.
Iniciávamos e terminávamos os dias, com chão, e era o chão que nos acolhia à noite. Assim começávamos a aprender a “ter os pés no chão”. Para alguns de nós, senão mesmo muitos, “ter os pés assentes no chão” passou a ser uma filosofia de vida, um modo de a encarar, perdurando ao longo da vida.
A nossa relação com os chãos, além de cumplicidade total e salutar, era feita de respeito e conhecimento. Aprendemos a conhecer os seus segredos e sinais, e a respeitá-los. Ao conhecermos e respeitarmos os chãos, respeitávamos o lugar, a terra e os antepassados. E eles retribuíam-nos, protegendo-nos.
Em reconhecimento desse respeito, da autenticidade do nosso ser e sentir, da ingenuidade do nosso pensar e agir, e do nosso apego aos chãos daquela terra que era a nossa, obtínhamos a bênção dos deuses, a protecção dos espíritos, e a companhia e conforto do Sol e da Lua. Todos eles nos fizeram príncipes dos areais, dos capinzais e dos becos de caniço, locais onde nós reinávamos, respeitando tudo e todos, de todos obtendo complacência. Complacência para um reinado sem poder, senão de liberdade para as brincadeiras, para as vadiagens e para sermos jovens à nossa maneira.
O Sol nos abrasava (no Verão) e confortava (no Inverno), a Lua nos encantava e inspirava, o dia nos cansava, a noite nos recuperava, e os chãos nos levava, alimentava e adormecia. E a terra dos chãos que diariamente nos levava, terra que era a nossa, pois nela tínhamos nascido e nela crescíamos, ia-nos ensinando a conhecê-la e a amá-la, e ia moldando o nosso carácter.
2º Narrador: O Autor
Peguemos na situação concreta da ficção acima descrita, dos chãos e dos meninos da Mafalala, e extrapolemos para todos os chãos e para todas as pessoas em Moçambique, à data da acção ficcionada (década de 1950).
Os chãos, sejam eles das cidades, das vilas, das aldeias ou dos lugares; de cimento, de asfalto, de solo, de picada ou de mato. As pessoas, fossem elas moçambicanas (originárias ou de coração) ou não (quantos já divorciados do vínculo ao torrão natal).
Pessoas a serem diariamente levadas pelos chãos de todo o Moçambique, fazendo a sua vida honestamente, trabalhando para ganhar o seu sustento e o dos seus, fosse qual fosse o ramo e o local da sua actividade, muitos em trabalho e condições árduas. Deste modo, cada um com a sua quota parte contribuía para o desenvolvimento da terra dos chãos que dàriamente os levava para a luta da vida. Vida muitas vezes de sofrimento, suor e lágrimas.
Toda esta ligação e interdependência com os chãos, inculcava nas pessoas o amor à terra e a identificação com ela, fazendo dela a sua terra, sem embargo de que urgia a resolução urgente de muitos e graves problemas de que a terra enfermava. Mas esta resolução era política.
A política que deveria primar pela justiça social, equidade na distribuição da riqueza, igualdade e dignidade entre todos os cidadãos, não era da sua competência mas das entidades governativas. Os cidadãos moviam-se (e sempre se moverão) condicionados pela política definida e imposta governativamente. Assim era, assim é, e assim sempre será, qualquer que seja o regime político.
Invocar o contrário, é arranjar bodes expiatórios e é justificar outros desígnios. Agravando ainda, a invocação de factos históricos ocorridos há centenas de anos, e já desactualizados face à realidade. O curioso é que essas invocações convenientes tiveram a conivência de responsáveis militares e políticos d`aquém e d`além mar.
Não convinha fazer a destrinça, mas sim confundir as árvores doentes com o todo da floresta. Os resultados, inevitavelmente, estão à vista.
A legitimidade à terra natal ou à terra adoptada, por tanto serem levados pelos seus chãos, não conveio ser reconhecida como tal. Outros desígnios se impuseram.
Pierre Vilbró – Janeiro de 2019
6 Comentários
Julio
Amigo Pierre
Li o texto com vivo interesse, não só pela beleza da escrita, mas pela forte mensagem que encerra. Mais do que comentar de forma apressada, o conteúdo seria matéria para muitos e grandes debates. Fico-me pelos Meus sinceros parabéns. Vai um forte abraço. Tenho a esperança de que um dia vais publicar, senão um livro, pelo menos uma coletania dos teus escritos. A não ser assim, seria uma grande pena…
Vitor Ferreira
Segundo me dizem o Alto Mae já era .
Tudo era , agora já não é .
Só ficou o cheiro e as lembranças.
Bem hajam
Fernando Vieira
Ao meu grande amigo e companheiro Pierre os meus sinceros parabéns pela bela prosa que nos fez lembrar os “bons velhos tempos” da nossa juventude!! Não frequentei estes chãos porque me considero “velho colono Xai-Xaiense” mas os “chãos”, esses, eram idênticos ! Grande abraço.
f.ramos34@hotmail.com
Vivi no Mucumula, que muitos confundem com a Mafalala por estar a ela ligado e ser um bairro muito pequeno. Veio á memória toda aquela área, desde o antigo posto de polícia á entrada das lagoas ( junto á Caldas Xavier ) até á Av. de Angola. Bons tempos de mufana, que tantas saudades me trazem…
Adalberto Mendes
Excelente…retrata com fidelidade… parabéns
Adalberto Mendes
Tony Brassard
Gostei do teu texto Pierre, e só quem viveu e passou por aqueles momentos que descreves, poderá lembrar-se do calor e do cheiro da nossa terra,e que tantas saudades nos trazem, para além das muitas recordações da nossa linda infância. Abraços.