OS LUARES DA MAFALALA
Narrador (ficcionado): Um qualquer mufana (menino) da Mafalala, de e em qualquer tempo.
Aquela grande Estrela nos encantava e clareava as nossas noites. Contrariamente ao Sol que nós considerávamos um Rei (leia ou relembre Os Sóis Da Mafalala, publicado pelo BigSlam, em 29 Out. 2018), essa Estrela era para nós uma Rainha, dada a sua beleza, candura e feminidade. Essa Estrela era a Lua.
A Rainha Lua tinha quatro representantes que, lá do alto do seu trono, ela enviava um de cada vez para estarem connosco, mufanas (meninos) do bairro da Mafalala. Esses representantes eram os Luares, e chamavam-se Nova, Cheia, Quarto Crescente e Quarto Minguante.
A Lua exercia sobre nós uma certa magia e, porque não dizê-lo, um certo mistério, e proporcionava às nossas noites passadas ao luar nos areais descampados e nos becos de caniço, momentos de sonho. E este sonho, não tinha limites. Mas para lá do limite da nossa condição, meninos sem condição, todo sonhar era pura ficção.
Esse sonhar, era termos também o que os outros meninos – da cidade com as noites iluminadas electricamente – tinham: água canalizada, rede eléctrica, saneamento, casas com o mínimo de dignidade e salubridade, escola, pão e cuidados de saúde. Mas sabíamos que tudo isto era um sonho que não teria fim, pois ouvíamos os mais velhos dizerem que poucos ficavam com quase tudo e muitos ficavam com quase nada.
Mas os nossos momentos de sonho também tinham muito de encantamento. Quando esses enviados da Rainha Lua, os Luares, desciam até nós, as noites ganhavam uma certa luminosidade que compensava a ausência de iluminação pública. Então com a presença do enviado Lua Cheia, as noites transformavam-se em quase dia e a cor dos nossos areais parecia quase branca, de tão claros que eles ficavam.
Tanto nas noites quentes de Verão como nas noites frias da época do Cacimbo, encontrávamo-nos todos no exterior das nossas casas e, sentados ou deitados (no Verão) sobre a areia ou reunidos à volta da fogueira (no Inverno), conversávamos, gozávamos uns com os outros, contávamos anedotas e histórias.
Estes convívios eram mais demorados nas noites de Verão do que nas de Cacimbo.
As fogueiras alimentávamos com caniços e com ramos secos de árvores – cajueiros, mangueiras, canhoeiros e mafurreiras, principalmente. Nas histórias, muitas vezes figuravam espíritos, curandeiros(as) e animais – fundamentalmente cobras, jacarés e leões -, e tinham, na maioria dos casos, sido ouvidas dos mais velhos, numa passagem de geração em geração, por via oral. Pela oralidade, perpetuava-se no tempo a sobrevivência das histórias ancestrais .
– Karingana wa karingana! (poder-se-á traduzir por Era uma vez!) – começava o contador da história.
– Karingana! – respondiam os ouvintes.
Seguia-se a contagem das histórias. Durante o seu desenvolvimento, muitos dos ouvintes transfiguravam-se nas personagens escutadas, humanas ou não, tal o empolgamento, e os mais novos e os noviços da plateia chegavam mesmo a experimentar algum temor. No meio de nós, sempre o Luar, o convívio, a amizade, o companheirismo e o sonho inspirado pelas histórias e pelas carências. Coisa tanta, para quem tinha quase nada.
Entretanto, os anos foram passando, eu (mufana narrador deste cenário) e os restantes mufanas (meninos) meus companheiros fomos crescendo, tornámo-nos adultos, outras gerações de mufanas se foram sucedendo na Mafalala, todos sonhando e encantando-se à luz do Luar, mas os sonhos de todos – de dignidade mínima de vida – continuavam e continuam adiados.
Entretanto, os meninos da cidade com as noites clareadas pela electricidade, que nós invejávamos, e todos aqueles poucos que quase tudo tinham, foram embora, e a cidade da luz passou a ser habitada por outros meninos e os poucos detentores de quase tudo passaram a ser outros.
Na cidade electricamente iluminada, possivelmente não reparam nos Luares, no quanto a Lua e a sua luz são belos, inspiradores e fazem sonhar.
Mas na Mafalala, a rainha Lua e os seus enviados Luares nunca faltaram ao compromisso sagrado que têm com os seus habitantes, e continuam a honrá-lo, nunca faltando com a sua presença e a sua utilidade.
Que os humanos detentores do poder se inspirem e sigam o exemplo da rainha Lua, honrando e cumprindo a promessa e o compromisso que assumiram perante a Mafalala e todas as Mafalalas, e as suas gentes.
Pierre Vilbró – Dezembro 2018
Um Comentário
Manuel Martins Terra
Mais um excelente texto sobre o bairro mítico da Mafalala, ilustrado desta feita sobre o encanto do luar, que iluminava nos serões de amigos e famílias, os sonhos dos seus moradores. Na verdade, se os homens das leis tivessem como referência a benção dos céus, talvez o mundo fosse diferente. Parabéns, Pierre Vilbró, pela perspicácia com que escreve.