A ex-Sociedade de Estudos de Moçambique e o actual Colégio Nyamunda
O barbarismo da nossa época é ainda mais estarrecedor pelo facto de tanta gente não ficar realmente estarrecida”.
Teilhard de Chardin (teólogo e filósofo francês, 1881-1995).
Antes da sua partida por saudoso périplo descrito (até agora) em onze magníficos “Relatos de uma viagem por terras de África”, pedi, ao nosso bom amigo Samuel, “alma pater” do “BigSlam”, notícias sobre a Sociedade de Estudos de Moçambique que a minha intuição me dizia não serem boas novas.
Sem necessidade de me utilizar de uma “lâmpada de Aladino” para ver satisfeita a curiosidade do meu pedido, soube, com grande desgosto meu, através do último post, subtitulado “Almoço e jantar com amigos em Maputo” (12/06/2017), ter cedido lugar esta instituição, jóia da Cultura portuguesa no continente africano, a um colégio privado, de seu nome “Colégio Nyamunda”. Ou seja, a Sociedade de Estudos de Moçambique foi condenada a desaparecer perante o trono do Rei Midas e dos interesses das classes abastadas da sociedade moçambicana e dos filhos das suas elites.
A Sociedade de Estudos de Moçambique foi “ex-libris” do meio cultural moçambicano antes da independência desta terra do Índico, com instalações muito dignas, funcionais e de rara beleza (como se poderá verificar pela elucidativa foto publicada por Samuel de Carvalho) e com um historial de valoroso reconhecimento nacional: “Instituição de Utilidade Pública”, “Oficial da Ordem Militar de Santiago de Espada”, “Oficial da Ordem de Instrução Pública”, “Medalha de Ouro de Serviços Distintos da Cidade de Lourenço Marques” e “last but not least” “Palmas de Ouro da Academia de Ciências de Lisboa” (instituição cultural e científica de reconhecido mérito no panorama de instituições congéneres do mundo inteiro). Acresce que a Sociedade de Estudos de Moçambique foi distinguida com uma das 25 únicas medalhas de ouro atribuídas pela Academia de Ciências de Lisboa.
Foi, portanto, com natural orgulho da minha parte que a Educação Física e o Desporto moçambicanos entrarem nessa instituição pela porta grande, através de duas conferência por mim aí proferidas: “Educação Física: Ciência ao Serviço da Saúde Pública” (1971) e “Os pesos e halteres e a função cardiopulmonar segundo o teste de aptidão do doutor Cooper” (1973).
O impacto destas conferências fez com que eu fosse nomeado vice-presidente da respectiva Secção de Ciências e seu bibliotecário (1973) e, no ano seguinte, ascendesse à respectiva e honrosa presidência.
Na primeira das conferências supracitadas, “Educação Física, Ciência ao Serviço da Saúde Pública” (publicada no respectivo Boletim, vol. 174, Jan./Dez 1973) para justificar o respectivo título fiz, inicialmente, a seguinte pergunta: “Será a Educação Física uma Ciência?” Em resposta, apresentei a seguinte argumentação:
O polifacetismo e a complexidade de que se reveste hodiernamente a Educação Física, polifacetismo de natureza anatómica, envolvendo, como tal, o estudo morfológico dos órgãos e dos sistemas humanos e a complexidade de âmbito fisiológico, pelo respectivo conhecimento funcional; a aceitação da importância da máquina humana que Kant, na “Crítica da Razão” (1787), diferenciava das outras máquinas por estas palavras: “a máquina não pode reconstituir-se por si, se sofre uma avaria, o que, pelo contrário, podemos esperar da natureza organizada”; o conhecimento das leis que presidem ao funcionamento das máquinas simples (alavancas), no que diz respeito ao aspecto locomotor, e das máquinas complexas, no que se relaciona com as grandes funções orgânicas, conhecimento subordinado aos princípios da Mecânica, mas agravado pelas implicações neuropsicológicas a ele atinentes; o difícil domínio da Química relacionada com a contracção muscular; o importante papel que cabe à Educação Física na formação da juventude, denunciado pelo congressista norte-americano Woods Hutchinson ao afirmar, no encerramento do Congresso das Associações Americanas, perante membros responsáveis do governo “ser preferível uma campo de jogos sem uma escola a uma escola sem campo de jogos”; a avassaladora força da Educação Física, actuando com inconcussa autoridade nos grandes problemas sociológicos; a colaboração que a Educação Física aporta inclusivamente à Medicina, através das ginásticas respiratórias e de recuperação; finalmente, e sem pretensões de esgotar o assunto, bem pelo contrário, o contributo que a Educação Física presta à Saúde Pública, facto tomado em conta em países que ministram cursos universitários de Educação Física nas Faculdades de Medicina, justificam, em absoluto, a escolha do tema e os parâmetros em que a mesma se vai desenvolver por a Educação Física ter no mundo de hoje foros de cidadania.”
Com a extinção da Sociedade de Estudos de Moçambique (fundada em 1930) foram apagadas páginas gloriosas da Educação Física e do Desporto moçambicanos escritas em letras de ouro pelos seus atletas no âmbito, v.g., do hóquei em patins, da natação, do basquetebol, do atletismo, do futebol. Limitei-me eu (passe a redundância), para além da minha actividade estritamente profissional como professor de Educação Física, em levar a minha voz a conferências ou simples palestras, sempre que para tanto era solicitado, ou a minha palavra escrita nos jornais, em defesa da dignidade das actividades do malfadado CORPO e sua ligação relativamente a outras disciplinas científicas (Medicina e Engenharia, por exemplo) de que esta notabilíssima agremiação foi expoente máximo de parceria, mais tarde, com o Estudos Gerais Universitários de Moçambique criados em 1962. Ou seja, pretendi tornar obsoleta a crítica mordaz de Ramalho Ortigão à sociedade do seu tempo (fins do século XIX primórdios do século XX), embora vivificada, infelizmente, ainda hoje neste extremo ocidental da Europa, por pretensos intelectuais criados à imagem do enfermiço Eusebiozinho saído da pena impiedosa do festejado autor de “Os Maias”!
Em sua crítica mordaz, a personagens de destaque da sua época, escreveu a “Ramalhal figura” (em citação que faço de Eça, que assim se lhe referia pelo seu porte atlético subjacente à respectiva prática gimnodesportiva e sua defesa em pujantes páginas literárias) : “Como cultura física, indigência igual à da cultura mental. Se falando metem os pés pelas mãos, calados metem os dedos pelo nariz. Não têm ‘toillete’, não têm maneiras e têm caspa”!
Este “barbarismo da nossa época” (Teilhard de Chardin) encontrou expressão fiel na extinção da Sociedade de Estudos de Moçambique. Escreveu Gertrude Stein (1874-1946):
A História leva o seu tempo. A História faz memória”! Por vezes, como neste caso, triste memória!