Eugénio Lisboa e o Museu das Descobertas
A história é uma mediação entre o passado
e o presente num círculo hermenêutico”
Paul Ricoeur
Debruço-me sobre o último artigo do ensaísta e académico Eugénio Lisboa, querido Amigo de saudosos tempos de Lourenço Marques transplantados para a capital deste “jardim à beira-mar plantado”, titulado “Um Museu das Descobertas?”, publicado recentemente no “Jornal de Letras”.
Trata-se de um tema por si excelentemente documentado, como ele próprio defende, “sem complexos de culpa”, que parecem atormentar a (in)consciência de determinados esquerdalhos que, ignorantemente através da “pena ao vento”, como diria Eça, pretendem opor-se histericamente à criação de um “Museu das Descoberta” em homenagem histórica a heróicos marinheiros portugueses de antanho que deram “novos mundos ao Mundo”.
Só falta, consequentemente, passarem eles a exigir em petição pública a demolição da “Torre de Belém, pedra por pedra centenária, com caboucos no estuário do Tejo, como quem rasga, página por página, um passado por “mares nunca dantes navegados”, na gesta do nosso imortal Vate, Luiz de Camões.
Congratulo-me e honro-me, como tal, em trazer ao conhecimento dos leitores do “BigSlam” um tema de profunda e honesta meditação por parte de Eugénio Lisboa com a chancela de ter sido ele um declarado combatente contra o Estado Novo numa altura em que esse facto trazia amargos de boca.
Segue-se a transcrição “ipsis verbis” desse seu texto:
Descoberta – acto ou efeito de descobrir (algo),
retirando-lhe a protecção, a cobertura, a capa ou invólucro
que cobre, esconde; descobrimento.
(Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa)
A América exporta muitas e variadas folias que, depois de levantarem poeira e fazerem não poucos estragos, internamente, vão, de seguida, agitar o “milieu” europeu e, com um pouco de atraso, acabam por aterrar, gulosas, na pátria lusíada.
Entre as folias que os americanos produziram, com grande alarido, primeiro para consumo caseiro, depois, para exportação urbi et orbi, encontra-se a famigerada “political correctness” com, a tiracolo, o vigilante policiamento da linguagem.
Falar, escrever, nomear passou a ser o mesmo que pisar terreno minado. Cada palavra passou a ser escrutinada com lupa vigorosamente selectiva e duramente punitiva. Nada escapa a esta folia vigilante, obtusa e omnipresente.
A obra-prima de Mark Twain – As Aventuras de Huckleberry Finn – foi compulsivamente retirada das escolas porque alguns personagens, no romance, se referiam aos negros, tratando-os por “nigger”. Não é, obviamente, Mark Twain quem é o racista: o racista, se o for, será, quando muito, o personagem do romance, apresentado ou não – conforme o caso – como vilão.
Não importa: a “political correctness” é implacável, na sua vigilância eriçada e pidesca.
Vem isto a propósito da ridícula celeuma recentemente levantada entre nós, relativa a um futuro Museu das Descobertas que a Câmara Municipal de Lisboa teria em projecto. Imediatamente após ventilar-se a ideia, as vestais da “political correctness” puseram-se ruidosamente ao alto:
“Descobertas”, “Descobrimentos”? Que horror! Que abominação! O que aquelas palavras temíveis não escondem de ignomínias perpetradas pelos descobridores lusíadas! O colonialismo, a escravatura, a exploração desenfreada… Celebrar as descobertas? Nunca! Descobrimos o quê? Se os povos até já lá estavam…
As tontices, já se vê, atraem-se umas às outras, em corrupio foleiro. Claro que houve, em séculos que já lá vão, descobertas, muitas e variadas e de enorme valor. Um mundo deslumbrantemente novo se foi destapando, aos olhos impreparados dos atrevidos navegantes portugueses.
Planisfério de Cantino (1502), a mais antiga carta náutica portuguesa conhecida. Biblioteca Estense Universitária de Modena. Fonte wikipedia.
Nesse magnífico livro, Ensaio sobre a Essência do Ensaio, de Sílvio Lima, que veementemente recomendo não só aos arautos da “political correctness”, mas a todos que ainda o não tenham lido, glosa-se, magistralmente, o que foi esse encontro fascinado com o novo:
“O espaço terrestre dilatara-se. À dimensão marinha mediterrânea e báltica – própria da Idade Média – acrescentara-se agora a dimensão atlântica, índica e pacífica: o infinito «mar-oceano». No formoso dizer de Humboldt, os portugueses e os espanhóis duplicaram para os habitantes da Europa a obra da criação.”
Esta ampliação do universo disponível causava vertigens:
“Suponde”, observa o filósofo Sílvio Lima, no seu livro fundamental, “[suponde] uma pessoa, posta num imóvel aposento claro, cercado de seis grossas paredes e que as visse de repente tornarem-se elásticas, móveis, fugirem vertiginosamente, como que sem fim, para longe, para a direita e para a esquerda, para cima e para baixo, para a ferente e para trás. Sensação de desprendimento físico, de queda ponderal, e de estonteamento visual dinâmico.”
Tal como este aposento, o universo, no tempo das descobertas, alargava-se irresistivelmente, física e mentalmente, trazendo espaços e gentes novas e ensinamentos também novos:
“À vivência do atordoamento físico junte-se o vinho, de picante agulha, do exotismo. Não só o espaço terrestre se dilatara; o planeta complicara-se também com outras «novidades»: faunas, floras, minerais, meteoros, estrelas, etc. Como se fosse um «leitmotiv», a palavra novo ressoa a cada passo, vibrante e cálida, na sinfonia geral.” (Sílvio Lima, opus cit.)
O filósofo dá-nos exemplos de textos em que a palavra novo cintila constantemente, com orgulho deslumbrado:
“Foi descoberto um novo mundo e novas terras numa Nova Espanha ou Índias Ocidentais e nas Orientais.” (Francisco Sanches) “El descubrimiento deste nuevo indiano mundo.” (Bartolomé de las Casas) … A nova do achamento desta vossa terra nova.” (Pero Vaz de Caminha) “Outro mundo novo vimos / Per nossa gente se achar.” (Garcia de Resende) “Eis aqui as novas partes do Oriente / Que vós outros agora ao mundo dais.” (Camões) “Un monde nouveau et si enfant” (“Um mundo novo e tão criança.” (Montaigne) E, entre outros, o grande matemático Pedro Nunes: “Descobriram (os portugueses) novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos; e o que mais é: novos céus e novas estrelas.” E Garcia da Orta, que proclama com incontido orgulho: “que se sabe mais em um dia agora pelos Portugueses do que se sabia em cem anos pelos Romanos.” Todo este “novo” surpreendente causava espanto (“Cousa certa de alto espanto”, dizia Camões) e surge como grande “maravilha” (“Grandes cousas estranhas / Outras muitas maravilhas!” – Garcia de Resende).
Estas maravilhas vistas, experimentadas, vividas pelo homem novo vão dar ao conhecimento científico uma ousadia nova: o que está escrito nos livros dos antigos deixa de ser sagrado: ao que está escrito sobrepõe-se agora, com orgulho, o que é “claramente visto” e experimentado criticamente. Nas palavras de Sílvio Lima:
“O perípato, o «magíster dixit», o comentarismo medievo eram vencidos pelos factos concretos. «Rien n’est plus écrasant qu’un fait.» (Broussais). As necessidades comerciais e industriais de Florença e Veneza, as necessidades lusas de navegação ou pilotagem matemático-astronómica, por outras palavras, o económico e o técnico, em íntima conexão, arrastavam o varão renascente ao contacto e ao exame directo do real. A natura substituía a escritura, a experiência derrubava a glosa, a ciência desterrava a erudição. Os regimentos, os roteiros, a nova teórica do céu, os progressos da hidrografia, da cartografia, da oceanografia, a inesperada colheita de factos novos e exóticos, a contrastaria de erros de observação do pretérito, etc., não consentiam já o jugo mental de Aristóteles (…)”. Por outras palavras, “à natureza amortalhada nos textos, sucedera o experimentalismo crítico.”
O homem novo acreditava, orgulhoso e deslumbrado, no que via e experimentava e não no que os livros antigos diziam: “Eu o vi certamente (e não presumo / Que a vista me enganava)”, como dizia, atrevidamente, Camões. O filósofo inglês Bertrand Russell observou, a propósito, que Aristóteles poderia ter evitado afirmar que as mulheres têm menos dentes do que os homens, pelo expediente simples de pedir à Senhora Aristóteles que abrisse a boca.
As descobertas trouxeram precisamente isto: um homem novo, curioso de ver e registar o que via (“Vi claramente visto o lume vivo”), rejeitando as “escrituras” e atento apenas à “natura”.
Com as descobertas, o mundo do conhecimento alargou-se enormemente e afirmou-se decisivamente uma nova forma de adquirir esse mesmo conhecimento: não, glosando textos antigos e obsoletos, mas, antes, vendo, muito claramente e muito criticamente, o que ali estava para ser visto.
Venha, pois, sem complexos de culpa ridículos, um bom Museu das Descobertas, que testemunhe, com vigor, aquela aventura humana tão prenhe de consequências.”
Quem foi personagem da “descolonização exemplar” (?!), sentindo na pele o látego impiedoso dos seus efeitos, pela certa, encontrará na leitura do texto de Eugénio Lisboa uma forma ímpar de reflexão que se deseja desapaixonada, tanto quanto possível. Ou seja, independentemente do espectro político em que se situe o leitor devendo, todavia, ter sempre presente que “os factos são sagrados e os comentários são livres” (G.P. Scott, editor do “Manchester Guardian”).
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