A Cidade que nos resta
Por Mia Couto
Perguntava-me um amigo estrangeiro, acabado de chegar a Maputo, em que ruas ele podia circular à vontade.
– À vontade? perguntei, apenas para ganhar tempo.
O fulano ficou olhando o meu rosto pensativo. Poucos anos antes eu teria respondido sem muita hesitação. A cidade mantinha áreas de relativo sossego, onde o pacato cidadão podia circular sem riscos. Mas naquele dia eu acabava de receber a notícia que um colega meu do serviço, em plena Rua Joaquim Lapa, a escassos metros da Esquadra, tinha sido assaltado à mão-armada, em pleno dia. No dia anterior, assim rezava o jornal, uma mulher fora violada na marginal. Não acontecera no lusco-fusco. Sucedera à luz do dia. Na noite anterior eu escutara no noticiário televisivo bairros inteiros reclamando contra o reino de terror da bandidagem. Na semana anterior, um estrangeiro que visitava a nossa empresa, próximo do Hotel Polana, tinha sido agredido por um grupo de jovens. Nós tínhamos informado esse mesmo consultor que o bairro era tranquilo e que ele podia caminhar pelas redondezas sem problema. Horas depois, estávamos visitando o pobre homem no Hospital.
– Ora caminhar à vontade …. – ruminei eu, já consciente do preço da minha demora.
O visitante salvou-me do embaraço, decidindo filosofar sobre a tendência universal do aumento da criminalidade. Eu acreditava que o mau momento passara quando ele lançou nova interrogação:
– E conduzir?
– Conduzir?
Ao menos, eu fizesse uso de mais imaginação. A repetição da pergunta era um estratagema que ameaça saturar.
– Sim, conduzir um carro ? Acha que posso?
– Claro que pode, se tiver carta de condução.
– Tenho, sim. Mas é seguro?
– Bem… quer dizer… é preciso ter alguns cuidados…
– Como, por exemplo….por exemplo….
Desta feita, as imagens cruzaram-me a mente com a velocidade de um chapa cem. Como explicar ao pobre turista que nos semáforos não se arranca quando abre o verde. Como explicar que, em certas esquinas, o vermelho corresponde ao verde e só se pára no amarelo? Que em outros cruzamentos o verde corresponde ao amarelo? Como esclarecer que os chapas nunca param nos semáforos e param sempre no meio da estrada?
O estrangeiro entendeu a demora na minha resposta. Deve ter ficado a matutar: a pé não podia, de carro não devia. Como usufruiria ele da cidade?
E a mim mesmo eu me questionei: que cidade nos resta a nós, cidadãos de Maputo? Não podemos oferecer a cidade aos outros porque ela está deixando de ser nossa.
– Deixe estar, disse ele para me tranquilizar. Eu vou ficando no Hotel.
Num impulso eu quase dizia: eu também me vou mudar para o seu Hotel. E enquanto conduzia o meu amigo rumo ao seu alojamento eu fui olhando Maputo e pensando se como o cidadão está perdendo a cidade, como nos restam de Maputo as sobras daquilo que a voragem do caos não está ainda dominando.
2 Comentários
Rogerio Costa
Não duvido o que o Mia Couto relata, infelizmente, pelo que tenho ouvido e assim mesmo.
Vivi em Moçambique ate 1974 e lembro-me do quanto diferente era naqueles tempos.
Morava na Machava e estudava na escola industrial de LM. As aulas acabavam as 6 horas e tinha que apanhar o comboio para casa. As vezes metia-me na brincadeira e perdia o ultimo comboio e fazia o percurso de regresso a casa a pé (acho que 10 KM) e as tantas da noite. Iluminação não havia senão a luz da lua. Eu devia ter naquela altura uns 13 ou 14 anos. Gostava imenso de fazer este percurso porque tinha sempre conversa com muitos outros (pretos claro) que também faziam este percurso à noite. Nunca tive medo e eles diziam – menino não tem medo – nos protégé o menino. Agora passados muitos anos eu admiro-me de como era bom o nosso Moçambique e LM e pergunto como aquelas pessoas faziam aquele percurso todos os dias de manha para o trabalho e a noite de regresso as suas casas. Eu estava a ver as coisas do ponto de vista dos privilegiados que para muitos outros não era assim tão bom. O tempo passou e hoje vivo no Canada, país de “primeiro mundo”, mas nunca me esquecerei daqueles bons tempos de Moçambique.
Agora não e assim não!
Dave Adkins
Me lembro em frente do Hotel Girassol em 73, tinha chamado um taxi, logo falei com o taxista e expliqué que iva cancelar o pedido. O taxista me deu uma pancada, más fez um error ya que Terry Johnson esteve comigo. Terry perseguiu o taxista, o pegou detrás do pensão de Mona Lida e comenzou bater-o sem mercé. Interrupei o massacre, não quise que Terry passasse o noite ou mais tempo encarcerado. . . outra noche em LM, 1973. . em geral. tudo era seguro nas ruas de LM durante esta epoca. .