A INVEJA por MIA COUTO
Entrevistamos esta semana o Presidente da Comissão Nacional dos Invejosos, Dr. Shipreita Vida Doutro. Sabendo da importância da inveja, verdadeiro motor de actividades e inactividades da nação, colocámos a este dirigente questões que têm a ver com todos nós. Eis os extractos desta conversa:
Pergunta – Dr. Shipreita, como nasceu a ideia de criar uma Comissão Nacional de Inveja?
Dr. Shipreita – Nasceu por inveja. Nós já estávamos cansados de ver nascerem estruturas e instituições, de ver dinheiros e financiamentos para todos, menos para nós. Então decidimos criar esta Comissão.
Pergunta – Qual é a vossa actividade principal?
Dr. Shipreita – É destruir todos aqueles que se evidenciam ou se colocam acima da média. Nós mobilizamos as forças da inveja e atacamos as pessoas ou as obras que se destacam …
Pergunta – Esse ataque pode manifestar-se como?
Dr. Shipreita – Temos vários métodos: para começar, a tecnologia tradicional. Consultamos um feiticeiro e encomendamos o serviço de desgraçar o tal fulano que está a ter sucesso. Às vezes, recorremos a métodos mais modernos: ameaçamos de morte, intimidamos. A Comissão Nacional não tem matadores próprios, mas temos boa relação com o Sindicato Nacional dos Assassinos, mandamos uns faxes e eles implementam os nossos pedidos.
Pergunta – A inveja é a seiva da Nação e o motor do futuro – este é o vosso lema …
Dr. Shipreita – A ideia é a Nação passar a devorar os seus melhores filhos. Por exemplo, um grande atleta: em vez de sentirmos orgulho, fazemos circular boatos que acabam por lançar o fulano na lama. Um grande artista? Cercamos o tipo de silêncio, ele passa a ser reconhecido só lá fora e acaba por se calar ou mesmo emigrar. Assim, nos vemos livres desses indivíduos que tanto provocam a alma dos invejosos. Outra estratégia é homenagear um valor nacional apenas quando ele já morreu. Aí não há problema, constrói- se uma estátua e ninguém fica ofendido.
Pergunta – Mas não corremos o risco de nos tornarmos uma sociedade pobre alinhada pela mediocridade?
Dr. Shipreita – Mas a mediocridade é a única hipótese de construir uma sociedade igualitária. Fala-se muito de democracia, mas só a inveja é que reduz as diferenças. Deixa de haver bons e maus. Só há mediocres e os resignados pela mediocridade.
Pergunta – E para ser membro da Comissão o que é preciso fazer?
Dr. Shipreita – É preciso ser invejoso a ponto de querer muito mal aos outros. Estamos lançando uma campanha de angariação massiva de membros. Estamos a tentar mostrar que o sucesso de um moçambicano nunca provém do trabalho ou do seu suor. Tem sempre outras causas.
Pergunta – Que mensagem queria, por fim, transmitir aos leitores?
Dr. Shipreita – Quero agradecer a colaboração geral que temos recebido. É muito estimulante ver que a inveja está tão bem distribuída, desde intelectuais responsáveis a simples elementos do povo. Se recebermos fundos compatíveis, iremos instituir o Prémio Nacional da Inveja. E termino desejando ao Imaginadâncias votos de que tudo vos corra mal, isto é, bem.
Mia Couto
3 Comentários
Luis Machaieie
Incrível e espectacular, a forma com que Mia Couto descreve o assunto inveja. Ainda bem que o problema é internacional pois ficava sempre com a seguinte pergunta, porquê eu sinto isto(inveja) por outros e os outros também por mim?
José Miguel Rodrigues
Brilhante trabalho de Mia Couto, sempre com desasombro tocando nas feridas; mas atenção não é só em Moçambique que esta “doença” existe.
Por cá, neste rectangulo á beira mar plantado , ui ui! de forma encapotada , mais devastadora , mais feroz , existe e de que maneira!!!
Clara van Zeller
Já tinha lido. Muito bem observado. Mia Couto definitivamente não é monótomo.
A sua escrita espelha um maravilhoso universo ficcional, intensamente ligado à cultura e imaginário moçambicanos e aos mitos rurais e urbanos que, sustentados em formas de arte verbal da oralidade popular, fazem deste escritor um contador de histórias único.
Obrigada, Samuel pela partilha.
Bj