A RM e o MUNDIAL DE FUTEBOL
Se a memória não me atraiçoa, desde 2002, no mundial organizado em conjunto pela Coreia e Japão,
que a Rádio Moçambique (RM) tem estado a transmitir os relatos da principal prova futebolística do planeta. Não havia na altura (hoje também não) condições financeiras para a aquisição dos direitos de transmissão impostos pela FIFA. Nesse ano uma empresa sul africana ligada à área da comunicação adquiriu os direitos de transmissão dos relatos para a rádio, que são, como devem saber, mais baratos do que os direitos para transmissões televisivas. Fez uma proposta à Rádio Moçambique. Essa empresa recebia em Joanesburgo o som ambiente dos estádios, que tecnicamente costumamos designar de “som guia”. A RM teria apenas que escalar os relatores desportivos para, a partir duma tela gigante de televisão, relatar os jogos. A RM ainda tentou que esse “som guia” pudesse ser recebido nos seus estúdios em Maputo. Não foi possível, por razões de natureza técnica e financeira.
Como a entidade sul africana pagava tudo (passagens aéreas no trajecto Maputo/Joanesburgo/Maputo para dois relatores, alojamento, e alimentação) a RM alinhou no projecto. Recordo-me que o assunto foi discutido numa das sessões do Conselho de Administração. Chamaram-me e disseram-me que “um dos relatores que vai a Joanesburgo és tu”.
O outro seria escolhido entre o Rui Barata e o Castro Jorge.
Eu recusei-me terminantemente. E recusei porque pessoalmente não concebo a transmissão dum relato (seja ele de futebol, de basquetebol ou de hóquei em patins) a partir de imagens dum televisor. Isso eu não sei fazer. Como profissional não alinhei naquilo a que eu na altura apelidei de “aldrabice radiofónica”. Relatar um jogo, fechado num estúdio, é coisa que não passa pela minha cabeça. Para mim o relato tem de ser feito no local do evento. Eu tenho de ver os jogadores ao vivo. Tenho de sentir ao vivo a reacção do público. Tenho de ver coisas que se calhar a televisão não mostra. Um relato para a rádio não é a mesma coisa que um relato para a televisão. A forma de narração, a cadência, a velocidade, o ritmo, são diferentes. Por isso disse “não”. No decurso dessa reunião do Conselho de Administração alguém ainda me perguntou como me atrevia a não acatar uma decisão do órgão supremo da Rádio. Mantive a minha posição. Disse que não acatava a decisão, pelas razões de natureza técnico-profissional expostas. Acabaram por compreender os meus argumentos e decidiram pelo envio a Joanesburgo de dois colegas meus: o Castro Jorge e o Rui Barata.
Esta história vem a propósito duma afirmação feita pelo meu colega e amigo Moisés Mabunda,
a propósito dos relatos da Rádio Moçambique, relacionados com este Campeonato do Mundo de Futebol. Transcrevo o seu comentário, publicado numa das redes sociais.
“Porque será que a nossa RM está muito “busy” a fazer os relatos dos jogos do Mundial? Será muito prioritário isso no nosso contexto, ou mesmo no contexto da própria RM? Não era muito mais importante a fortificação da qualidade técnica da RM ? Quem ouve esses relatos do Mundial? Apenas os centros urbanos? E quanto custa à RM estar lá e fazer esses relatos?”.
Naturalmente que este comentário provocou outros. Uns diziam que ninguém escuta a RM na hora dos jogos. Que a maior parte das pessoas prefere as imagens da televisão. Outros afirmavam que os relatos eram benvindos e úteis porque os que estavam privados da televisão na hora do jogo, por estarem fora das suas casas, tinham o recurso à rádio. Outros davam variados exemplos sobre a utilidade dos relatos através da Rádio. Um dos internautas chegou mesmo a dizer que “o guarda do meu prédio está sintonizado com o Mundial de Futebol através da RM”. Isto para além naturalmente das pessoas que à hora do jogo se encontram nos carros pessoais, ou no transporte público, nomeadamente nos “chapas”. Muitos consideram a Rádio uma alternativa à Televisão e acrescentam que “nem sempre estamos em casa ou onde haja um receptor de sinal de televisão. Até pelo celular podemos acompanhar o mundial. Vale a pena contar, ainda, com a Rádio.”
Pessoalmente acho que o meu amigo e colega Moisés Mabunda não se apercebeu que os relatos do Mundial de Futebol que a Rádio Moçambique tem estado a fazer, não obrigou ao envio de relatores desportivos ao Brasil. Não acarreta custos. Sai tudo a custo zero. Esses “relatos” são feitos nos estúdios da Rádio Moçambique com recurso às imagens dum canal de televisão que esteja a transmitir o jogo. O ambiente dum estádio de futebol que se ouve em fundo nada mais é do que o som ambiente previamente montado e reproduzido na altura em que o relator faz a narração.
O problema é que (como dizia um internauta) “quando a ética e deontologia estão em jogo nem sempre o fim justifica os meios. Isso aí (de relatos virtuais) é como tentares tirar a carta de condução nos carrinhos de choque do Luna Parque”.
João de Sousa – 26.06.2014