FOLHAS DISPERSAS
Ainda estudante do Liceu habituei-me a ler todas as semanas as “folhas dispersas”, uma coluna semanal com retratos mais variados do dia a dia moçambicano, de autoria do jornalista e escritor Guilherme José de Melo, que era publicada no jornal “Notícias”. Conheci-o pessoalmente em 1968. Lembro-me bem que foi à porta da GOLO. E foi aí que ele me perguntou “como consegues decorar os nomes daqueles futebolistas todos” ? Referia-se, claro está, aos relatos que eu fazia. Achei interessante este questionamento, porque, volvidos estes anos todos, ainda muita gente me faz a mesma pergunta.
Guilherme José de Melo casou com uma mulher, mas pediu a anulação do casamento por sentir que não podia viver senão como homossexual, condição que assumiu corajosamente num meio preconceituoso. Nunca escondeu o facto de ter tido um companheiro com quem viveu em Lourenço Marques durante 7 anos e que apresentava a toda a gente como “o meu companheiro”, o que não deixava de causar surpresa. E perante a surpresa ele retorquía: “Sim, sou homossexual, se quiser continuar a conviver comigo, óptimo, se não, paciência. Sou muito franco. E nunca fui achincalhado ou humilhado, nunca tive nenhum amigo que se afastasse por eu ser homossexual. Isso é o meu orgulho”, referia.
Guilherme José de Melo foi um importante colaborador do então Rádio Clube de Moçambique. São de sua autoria alguns textos de teatro radiofónico, numa altura em que esse sector era dirigido por Tomás Vieira, Vasco de Matos Sequeira ou Sarah Pinto Coelho. Importante foi também a sua contribuição na letra de algumas das marchas dos bairros, concurso que o Rádio Clube organizou na década de 60.
Lembro-me da colaboração dada à GOLO em 1971, numa altura em que sobre a Agência de Publicidade pesou a responsabilidade de transmitir para Moçambique, em directo, a partir do Teatro S. Luís em Lisboa, a final do Festival da Canção da RTP.
A responsabilidade da reportagem na capital portuguesa era de Paulo Terra e Fernando Costa, da Delegação da Golo em Lisboa. Em Maputo a coordenação da emissão era garantida por mim. Guilherme José de Melo, de parceria com outras figuras do mundo da cultura, tais como o maestro Artur Fonseca, a cançonetista Liliana Matos, a produtora e locutora Ruth Melo, ou o jornalista Mário José (colaborador do Notícias), fez parte do “júri moçambicano” desse certame. Um júri que não teve influência nenhuma naquilo que foi a decisão final do certame, determinada por um júri oficial criado pela Rádio Televisão Portuguesa.
De Guilherme José de Melo há uma outra história, que importa lembrar. Do tempo em que foi colega de redacção no jornal “Notícias” de José Craveirinha.
Uma amizade de longa data, ao ponto de, quando deixou Moçambique em 1974, sem saber se ia voltar, lhe ter confiado a chave de casa, além das muitas obras de arte que possuía. Ao voltar a Moçambique dez anos depois, Guilherme de Melo ficou siderado ao deparar com tudo o que deixara e que José Craveirinha tinha guardado religiosamente, à sua espera. E só por muita insistência do poeta, que sabia do seu especial apreço por aquela escultura, acabaria por levar para Portugal um Cristo talhado num tronco de árvore e que lhe fora oferecido pelo artista Alberto Chissano.
Em 1980, de alguma forma por influência do Guilherme José de Melo, eu fui convidado a colaborar com o jornal “Diário de Notícias” que se publica em Portugal e para onde ele foi trabalhar, depois de ter deixado Maputo em 1974. Eu escrevia uma crónica semanal sobre um assunto de destaque da política moçambicana. Um ano depois numa viagem de férias a Lisboa, fiz questão de fazer uma visita de cortesia ao “meu chefe”. Convidou-me para almoçar, na companhia de outros colegas do matutino, responsáveis pela coordenação das páginas do jornal dedicadas a notícias sobre África. Mas antes do almoço fez questão de passar por uma livraria, uma das muitas existentes na Avenida da Liberdade. Comprou o livro que acabara de publicar e ofereceu-me o exemplar de “A Sombra dos Dias”.
Na minha viagem de regresso a Maputo, li o livro num ápice. Apercebi tratar-se dum “romance dos dias que passam, dos anos 50 de uma família portuguesa por terras de Moçambique, dos tempos doces de praias a perder de vista e águas cálidas, dos tempos duros da guerra e do regresso perpassando, a sombra da diferença, da homossexualidade, escondida primeiro, provocatoriamente assumida depois, mas sempre motivo de conflito, medo e inevitáveis derrotas. A Sombra Dos Dias, meio século de uma história pouco conhecida – a vida intelectual, artística, social, e também os »bas-fond» e as intrigas de uma cidade, Lourenço Marques, hoje existindo apenas na memória dos que a conheceram”.
PS: o jornalista e escritor Guilherme José de Melo faleceu, aos 82 anos de idade, no passado sábado, em Lisboa. Que os seus escritos possam constituir matéria de estudo e reflexão, principalmente para os jovens que procuram nas artes e nas letras, a sua forma de estar.
João de Sousa – 03.07.2013
Um Comentário
José Rodrigues
Linda e merecida homenagem , feita pelo João de Sousa.
Como jornalista do DN, Guilherme de Melo prestou sempre homenagem aos ” moçambicanos” que iam partindo…
Os anos passaram e ultimamente dizia que “só faltava ele partir”.