PALMIRA!
“Mulher de Moçambique” – Pintor José Soares
Palmira era uma das esbeltas negras da Craveiro Lopes. Morava na zona das Lagoas, ali bem perto da esquadra da polícia. Vendia, coitada, o corpo a troco de 20 escudos. Tinha dois filhos. Hoje não sabe deles e “se calhar também eles já se esqueceram que têm mãe”. Foi à Rádio Moçambique colocar um anúncio nas emissões em lingua ronga e changane, solicitando a quem soubesse do paradeiro das “crianças”, hoje com mais de 30 anos de idade, que entrassem em contacto com ela via celular. Até hoje, nada.
A Palmira que encontrei há dias não é (nem podia ser) a mesma que deambulava pelas noites das Lagoas à procura de cliente. Mais velha, naturalmente, agora na casa dos quase 70 anos de idade, mas deixando transparecer que beleza foi coisa que passou por aquele corpo na década de 60.
Hoje, e volvidos mais de 30 anos, ainda sofre os efeitos duma maldita bem como mal implementada “operação produção” de Junho de 1983, que só na cidade de Maputo afectou entre 50 a 100 mil pessoas.
Quem conseguisse provar que trabalhava ou estudava, tinha direito a ficar. Quem não provasse seguia outro rumo, desconhecido por todos e até, talvez, pelos mentores da dita medida, que, revolucionariamente, visava limpar os centros urbanos de pessoas improdutivas, numa tentativa, já naquele tempo, de travar o hoje preocupante êxodo rural para as cidades.
Como prostituta, Palmira, não tinha cartão de trabalho, e por isso mesmo lá foi ela, conjuntamente com outras amigas das Lagoas, enfiada num camião, tal qual sardinha enlatada, e transportada para o aeroporto de Maputo.
Não fazia a mais pequena ideia para onde ia, porque nenhum dos polícias que escoltavam o camião e muito menos o chefe do grupo dinamizador do seu bairro, teve a amabilidade de lhe informar do seu destino. Aliás amabilidade, neste tipo de operação, foi coisa que nunca existiu.
Tremia como vara verde, porque nunca tinha andado naquele bicho que cruzava os ares a 33 mil pés de altitude e a uma velocidade de cruzeiro de 800 kms/hora. Sabia apenas que avião é mais rápido que carro, barco e comboio. Quando depois de pouco mais de duas horas de voo as portas do avião se abriram, ficou a saber que estava no Niassa. A tal operação de 1983 tinha como objectivo encher as cidades de menor densidade demográfica e fazer com que essas pessoas fossem benéficas à sociedade. Produzissem. Produzissem comida.
Chegou com a roupa que levava no corpo. Nos primeiros dois anos viveu num local a 30 quilómetros de Lichinga. Tudo era mato.
Recebeu os seus instrumentos. Catana, faca, enxada e foice. Cortava os paus e o capim e construia a sua cabana. Começou a sentir-se frustrada. Não era aquela a vida que queria. Não fosse a acção da “Caritas” e ainda hoje estaria no Niassa.
Palmira, anos depois, voltou a Maputo. Mudou de profissão. Hoje é vendedeira num dos mercados da capital moçambicana.
Para ela “a operação produção é uma página ultrapassada”. O que tinha como objectivo recuperar delinquentes e marginais, tornando-os produtivos, acabou por constituir violação dos direitos humanos. O adágio popular, segundo o qual “o inferno está cheio de bem intencionados” é capaz de têr aplicação apropriada para o caso dos que conceberam e materializaram aquela tristemente mal famigerada “operação produção”.
João de Sousa – 05.11.2014