Ramalho Ortigão, a Escola Industrial de Lourenço Marques e a Educação Integral
Como cultura física, indigência igual à da cultura mental. Se falando metem os pés pelas mãos, calados metem os dedos pelo nariz. Não têm ‘toillete’, não têm maneiras, e têm caspa” (Ramalho Ortigão, 1836-1915).
Começo por destacar o excerto de uma intervenção de António José Saraiva (1917-1993),
segundo Helena Vaz da Silva, “uma personalidade fortíssima e extraordinária que não seria possível inventar: inocente e sábio, irreverente e académico, boémio e profeta”, que transcrevo:
“Razão tinha António José Saraiva quando em reunião em 1975 do Departamento da Faculdade, em que ‘depois de ouvir longos debates e acesas discussões sobre o que se pretendia com a avaliação dos alunos’, “pediu a palavra, se levantou com cuidado e disse, num tom de voz resguardado (que contrastava com as vozes alteadas dos contendores que o tinham antecedido): ‘Eu queria propor que se desse o diploma de licenciatura aos alunos quando eles fossem admitidos na Faculdade. Depois, só cá ficavam os que queriam mesmo aprender…” E sentou-se. Fez-se silêncio na sala. Era uma frase radical, na realidade ninguém sabia como reagir a ela.’”
Passados estes anos, atribuem-se licenciaturas como quem dá um bodo aos ignorantes e o estado da Educação retrata-nos uma sociedade que se assemelha a um corpo com cérebro, sem espinal medula e como membros atáxicos a executar funções mecanicamente, bem descritas no filme Tempos Modernos, de Charlie Chaplin,
em que os operários de uma fábrica passavam o dia a executar funções semelhantes às dos simples robots.
A espinal medula, de que falo, eram os alunos das antigas escolas técnicas que vinham preparados com noções teóricas para a sua vida profissional, em contraste com uma sociedade em que é valorizado o trabalho mecanicista e em que é subalternizado o know-how. Daí o estarmos a preparar uma juventude escolar – de papel e caneta e consulta ao computador para saber quem foi o primeiro rei de Portugal! – que, não seguindo estudos superiores (o funcionalismo público foi chão que já deu uvas…), se vê a braços, terminados estudos secundários, com a sua inaptidão para pregar um simples prego ou aparafusar um simples parafuso!
Resta, consequentemente, a essa juventude a aspiração em se sentar em S. Bento, obter licenciaturas que não valem um tostão furado, depois de um tirocínio como boys de um qualquer partido político a que ajudaram a colar cartazes.
Disso mesmo nos dá conta a pena mordaz de Eça:
A política é a ocupação dos ociosos, a ciência dos ignorantes e a riqueza dos pobres. Reside em S. Bento”!
Ipso facto, com uma vivência docente na Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque, da antiga Lourenço Marques, depois em Portugal, no ensino liceal e universitário (Universidade do Porto e Universidade de Coimbra), revivo, com os meus antigos alunos, o orgulho de uma escola técnica em que uns tantos seguiram estudos nos antigos institutos industriais e em escolas universitárias de Engenharia.
Os seus antigos discentes são indivíduos caldeados num prática desportiva escolar em que o desporto se assumiu como uma escola de virtudes (a célebre máxima grega: “Mens sana in corpore sano”).
Máxima essa caída em desuso por o desporto profissional actual assumir, não poucas vezes, o papel do antigo circo romano e o próprio desporto amador não conhecer, em sua plenitude, o apogeu de uma cultura integral helénica. Embora longe de serem uns meninos de coro, essa prática desportiva escolar transmitiu-lhes um sprit de corps necessário a uma identificação profissional de que se orgulham e lhes deu o ensejo de homenagearem os seus antigos professores, numa época em que os docentes são agredidos pelos seus alunos e progenitores.
Aliás, antigos responsáveis da 5 de Outubro, em que os colarinhos rescendiam a uma falsa intelectualidade, defensores de eusebiozinhos, “molengões e tristonhos, de perninhas flácidas, memorizando alfarrábios” (Eça), se encarregaram de diminuir a indiscutível importância da Educação Física nos currículos escolares, quiçá, por entenderem ser ela uma gigantesca usina de hercúleos mentecaptos. Apelo, portanto, ao actual ministro da Educação, Nuno Crato, que se debruce sobre estudos internacionais que consideram a Educação Física e o Desporto escolares como uma medicina preventiva contra as chamadas doenças hipocinéticas que assolam uma juventude cada vez mais obesa por horas e horas passadas em jogos frente aos computadores ou confinados em pequenas habitações em que o simples movimento da criança que salta, ri e brinca se torna um pesadelo para os pais e si próprias.
Para o efeito, em desagravo deste statu quo, convido Nuno Crato a dispensar breves momentos da sua atribulada agenda governativa para (re)ler Ramalho Ortigão. A Ramalhal figura (assim tratada por Eça) é para mim, o escritor que mais importante atenção dispensou aos exercícios físicos em ambiente escolar, apresentando o exemplo da sua importância nas escolas inglesas, a ponto de, ele próprio, se ter descrito como ter nascido para homem de forças e hércules de feira. Urge, portanto, acabar com os palhaços que pretendem fazer rir o público boçal levando-o a acreditar que a inteligência está na razão inversa dos músculos!
Debruçarmo-nos sobre o passado leva-nos a conhecer melhor o presente e a preparar cuidadosamente o futuro! E esse futuro terá forçosamente que passar por um juventude solidamente escolarizada sob o ponto de vista intelectual, físico e moral.
P. S. – Pelo testemunho pessoal de uma profícua actividade profissional dos seus autores, este novo texto surge em consequência de comentários de Paulo de Carvalho e João Santos Costa,
meus antigos alunos da EIMA e estimados Amigos de sempre, ao meu post :
“Medina Carreira e o antigo ensino técnico” (16/05/2014).