HISTÓRIAS DO NOSSO TEMPO: MOÇAMBIQUE E MOÇAMBICANOS (1965)
Por Cândido Azevedo
AFINAL A “BOCA” DO CALHEIROS ERA BEM VERDADEIRA: ZANZIBAR FOI GOVERNADA POR MOÇAMBIQUE.
Durante a nossa moçambicana juventude, nos meados dos anos sessenta, quando já crescidinhos nos juntávamos ao cair da tarde no restaurante Safari, na 24 de Julho, entre as pastelarias Princesa e Cristal, para muitos, eram momentos para os trabalhos escolares ou para acesas discussões académicas, principalmente em áreas como as de História e Geografia. Para outros, a pretexto de irem estudar, era a oportunidades para umas horas de namoro. Que o digam o Stélio Osório ou o Eduardo Couto e Silva. Referi-me à História e Geografia, pois, todos acompanhávamos as convulsões políticas que a África sofria, e nós portugueses vivíamos dolorosamente a luta armada que depois de Angola e Guiné se iniciara recentemente no Norte de Moçambique.
Recordo-me de um dos temas quentes numa daquelas tardes, ser a Revolução de Zanzibar, ilha vizinha de Moçambique que em 1963 deixara de ser um Protectorado do Reino Unido e o novo governo e seu sultão, de maioria árabe, haviam sido derrubados por revolucionários africanos em 1964, criando o pânico entre os ilhéus. Precisamente pouco antes de se iniciar a luta armada em Moçambique. Nesse ano de 1965, não eram poucas as conjecturas, sobre o que iria acontecer ao negro continente. No caso da ilha de Zanzibar seria a nova Cuba em África, dizia-se, pois alguns membros do Partido Umma, o partido que se apossara do poder vestiam fardas militares e usavam barbas ao estilo de Fidel Castro e fuzilavam indiscriminadamente, fazendo alguns milhares de mortos, o que foi interpretado como uma indicação de apoio cubano .
Nessas tardes do Safari e quando se “partia pedra” sobre o andamento da revolução dos zanzibares, lembro-me do Zé Calheiros, colega de turma do 5º ano nos Maristas, tido como o “bocas”, referir com ar sério, que ao tempo em que a ilha de Zanzibar era governada por Moçambique, viver a ilha um ambiente pacífico. De imediato uma risada geral por “tão disparatada boca”. Porque já à época era eu um curioso aprendiz de História, seguro que nunca ouvira o Irmão Justino Hartman, nosso Professor, (que embora brasileiro incutira em mim o gosto pelo estudo de História de Portugal) a tal se referir, dirigi-me na tarde seguinte à Biblioteca da Associação dos Velhos Colonos, para de imediato me certificar da veracidade de tal afirmação: Zanzibar, governado por Moçambique?
Referir esta Biblioteca obriga-me a uma pequena paragem, pois, foi com livros desta e de uma outra de um primo, de seu nome Álvaro Gonçalves, que eu descobri o prazer da leitura. Qual iniciação ao pensamento adulto e responsável, possibilitaram-me tais bibliotecas, desde os meus 14 anos, ler consagrados autores como Leon Uris, Eric Maria Remarque, Sven Hassel, Rabindranath Tagore, Ernest Hemingway, Caryl Chessman, Pablo Neruda, Drummond de Andrade, Jorge Amado, Alan Patton e muitos mais. Perante a sofreguidão da leitura avisava-me o primo: “Prepara-te Cândido, para viver realidades estranhas que te parecerão raiar o absurdo”. E vivi. Com a leitura de resmas de livros, eu e seguramente amigos meus, envolvemo-nos em temas inquietantes como o da vida, guerra, morte, racismo, dúvida, aqui pelo facto do filósofo Sartre estar na moda, etc. etc., todos eles encerrando questões, por vezes, para além da nossa compreensão. Desvendei então um vasto leque de modos de ser e viver. E a minha vida mudou! Quantas vezes interrompia a leitura e perguntava a mim mesmo, pateticamente: Porque existe o ser em vez do nada? Será o tempo a coisa mais aterradora do mundo? Outras vezes, tentava dar um sentido profundo à minha vida e dava comigo procurando descobrir o lado admirável e belo da tristeza… tristeza sim, depois da partida inesperada da minha primeira e recente paixão, Manuela de seu nome, para o Gurué, para lá se fixar. Horas e horas ali mergulhado na leitura como que procurando descobrir o mistério da geometria incalculável daquilo a que se chama vida e a que tanto agarrava… Aquela década de 60, naquela cidade das acácias, foram tempos, para mim e seguramente para toda a juventude moçambicana, de viver e partilhar sonhos e segredos, criar amizades para sempre, e tornarmo-nos nós próprios, descobrindo o instante único da vida…
Retornando à História e a Zanzibar. Perdido entre vários volumes da Enciclopédia Portuguesa e Brasileira que viera consultar, dou conta que afinal desta vez a “boca” do Calheiros era bem verdade: a Capitania de Moçambique enquanto integrada no Estado da Índia teve a governação de Zanzibar, de diferentes formas ao longo de décadas, algo que se havia iniciado em 1504 quando o capitão Rui Ravasco Marques, perdido da sua armada, avista e bombardeia Zanzibar, porque hostilizado por navios árabes. Poucos anos depois exploradores e comerciantes portugueses ali iniciavam uma atividade comercial, estabelecendo-se em pequenos núcleos. Administrada por um representante dos portugueses a ilha de Zanzibar era inicialmente parte da empírica “região portuguesa de Arábia e Etiópia”. Quando da paragem em Moçambique, por volta de 1571, de D. António de Noronha, que se dirigia para Goa para se assumir como o 11º Vice-rei para a Índia, passou Zanzibar para a dependência e hegemonia dos portugueses da Ilha de Moçambique, que se tornara na capital política e residência dos Capitães, mantendo a sua subordinação ao Vice-rei na Índia.
A partir dos finais do século XVI, já sob a proteção da grande Fortaleza de Jesus de Mombaça,
mais concorrida se tornou a presença de comerciantes portugueses, principalmente idos de Moçambique ou vindos da Índia. Fica então conhecida por Ilha das Especiarias, porque ali se reproduzia facilmente todo o género destas, tais como a noz-moscada, açafrão, canela, cardamomo, gengibre, tamarindo e, principalmente a pimenta. Inicialmente os portugueses limitavam-se à cobrança do tributo, mas perante os avanços dos turcos do império otomano, viram-se obrigados a estabelecerem-se de forma permanente, levantando para o efeito, nos inícios do século XVII um pequeno forte.
Mesmo existindo diretrizes comuns a todas as Capitanias no além-mar, havia adaptações realizadas pelos governos-gerais. Estas adaptações ocorriam em razão da pluralidade “sociocultural com que os portugueses se deparavam nos seus territórios”, o que levava a adaptação de uma série de diretrizes variadas, fosse nas formas de administrar dos governos-gerais e dos seus subordinados, fosse nas maneiras de defender, comercializar etc. Foi o caso de Zanzibar onde a presença portuguesa foi relativamente limitada, deixando a administração nas mãos de líderes locais e estruturas de poder preexistentes. A dependência de Zanzibar dos governadores na Ilha de Moçambique irá durar até 1631, altura em que o Sultão de Mombaça Muhammad Yusuf,
que estudara e fora baptizado em Goa com o nome de D. Jerónimo Chingulia quando já no trono em Mombaça, abandona o catolicismo e a 16 de Agosto aproveitando-se da confiança nele e nas suas forças depositada pelos portugueses, ocupam a fortaleza de Mombaça, matam o Capitão-mor Pedro de Gamboa e massacram toda a população portuguesa inclusive mulheres e crianças. Por pouco tempo é certo, pois os reforços chegados de Goa, obrigam-no a abandonar a fortaleza. A partir deste incidente o capitão-geral de Moçambique, passou a nomear para a ilha governadores portugueses, retirando a administração das mãos de líderes locais.
A ilha de Pemba, a 50 Km a Norte de Zanzibar foi ocupada mais tarde na década de 20 do século XVI, porque daqui partiam os assaltos e os incitamentos a rebeliões que assolavam a região e também, por ser um grande produtor do capim-limão, devido às suas propriedades para a insónia, doenças de pele e à queda do cabelo.
Os nativos de Pemba foram os mais renitentes à ocupação portuguesa, pelo que os mais afoitos mantiveram uma espécie de guerra permanente, qual guerrilha, lutando contra o domínio português com “pweke” (bastões de madeira, mas técnica diferente do secular jogo de pau português), pois caso fossem vistos com armas de ferro eram eliminados.
Hoje esses bastões são usados numa festa-dança marcial, com ruidosa música, que acompanha os competidores enquanto estes se digladiam, mostrando as suas habilidades de luta, momento que representa a forma como à época confrontavam os portugueses. Nesta ilha ainda hoje o “português” é chamado de “doreno”, significando “do reino”. De influência portuguesa, realiza-se anualmente em ambas as ilhas a largada de toiros à moda dos Açores, isto é, à corda, onde as jovens encorajam os namorados a demonstrar a sua bravura perante os touros, e se estes saírem incólumes oferecem-lhes os seus lenços. Ainda se mantêm na língua local destas duas ilhas algumas palavras portuguesas.
Zanzibar e Pemba, bem como alguns reinos costeiros de gente cafre dominados pelos portugueses como os de Mombaça, Quíloa e Melinde eram designados por alguns autores das primeiras décadas do século XVII, como Faria e Sousa, por “reinos da Cafraria”, mantidos pelas três fortalezas: a de Sofala, Ilha de Moçambique e Mombaça, como uma das sete partes de cerca de 4 mil léguas em que se dividia o Estado da Índia ou Império Português na Ásia.
Zanzibar e Pemba funcionaram como estâncias de armazenamento alimentar para posterior envio para Moçambique e Portugal. Com a vitória das forças omanitas sobre a cidade portuguesa de Mascate em 1650, o reino de Omã inicia algumas décadas depois o combate aos portugueses na costa swailli (oriental africana).
Perdida Mombaça, em 1698, Zanzibar cai em 1699 sob o Império Omanita, pondo fim ao domínio português. Aqui constroem os omanitas um forte árabe em 1710, no lugar da igreja, sendo o local ainda hoje conhecido por “gereza”. Após a conquista Zanzibar em 1700, quando a atenção real se virava para Bissau pela tentativa dos franceses em a conquistar, os omanitas chegam a Pemba obrigando os portugueses, após mais de 150 anos de presença a recuarem para o Sul até à costa moçambicana.
Portugueses, moçambicanos e zanzibares voltarão a reencontrar-se no extremo setentrional de Moçambique, na Baía de Tungue, onde o Cheik local, aliado às forças do Sultão de Zanzibar conspirava contra Portugal. Augusto de Castilho governador de Moçambique apresentou-lhe um ultimato de evacuação, ao que o sultão não acatou. Forças do Exército vindos de Cabo Delgado, com o apoio das canhoneiras Afonso de Albuquerque e Douro entraram em ação em 1888. Derrotado, o sultão de Zanzibar pediu a paz, com o reconhecimento da baía em causa estar nos nossos limites territoriais.
(J. E. E. Craster, Robert Nunez Lyne, Rocha Martins, Tome Nhamitambo. Muia-João. Algumas fotos retiradas com a devida vénia do Blog The Delagoa Bay de ABM)
18 Comentários
Marilia Manuela Ventura Nunes Marques
Muito obrigada pelo comentário muito completo e pleno de história. Gosto muito!
Laura Seixas
KANIMAMBO Cândido Azevedo por este trabalho excelente de investigação e de partilha das memórias portuguesas. Muito Grata ao Bigslam por continuar a proporcionar-nos estas Pérolas da nossa Historia. E ainda a Todos os fieis seguidores do BIGSLAM vamos continuar – até ao fim – a Ter Orgulho das nossas Origens e da nossa História.
Isabel Barros
Grande lição de História!
Continua Cândido!
Obrigada!
Beijinho. 🌷
Carmen Ramos
Obrigada caro Candido Azevedo!
Armindo Matias
Cândido Azevedo, parabéns pela qualidade deste trabalho apaixonante revelando factos de grande interesse. Abraço
nino ughetto
gosyei desse artigo. muito bem escrito Bravo parabens. Vivi tudo, pois conheci Moç do Sul ao Norte, Nada ou quase nada escapou .De L.Marques Salamanca no rio Maputo;a Beira Nampula,Vila Cabral Niassa Tete Marrupa Mueda eMocimbua de Praia enfim Vivi Vivi e morro com essa grande aventura e sonhos, que poucos muito poucos viveram. Um abraço com eternas saudades
LUIS JACINTO PEREIRA
Grande lição de história.
Muito obrigado ao Cândido Azevedo e ao Bigslam.
Emanuel Pereira
Adorei esse artigo sobre Zanzibar . Ainda sou do tempo em que estudava geografia, em que o limite norte de Moçambique era Tanganica, separado pelo rio Rovuma. Mais tarde como refere o artigo, passou-se a chamar Tanzânia (Tanganica +Zanzibar). Na segunda guerra mundial ainda foram para a zona das trincheiras do Rovuma, portugueses a combater os nazistas Alemães. Meu pai esteve mobilizado para ir para essas trincheiras, mas em cima da hora Salazar decidiu que a Companhia de Engenharia 2 do Porto, ficasse na ilha da Madeira para minarem toda a ilha contra os submarinos Alemães, que paravam para abastecerem de viveres.
Recordo do Café /Restaurante SAFARI onde reuníamos as noites para estudar e contar histórias, em grupo. Recordar é viver esses tempos. Abraço
Laura Maria Saraiva Seixas
Que PRECIOSIDADES meus patrícios Coca-Colas e Laurentinos 🙏🏼Que as nossas memórias portuguesas em Moçambique permaneçam mesmo Depois de nós: assim se faz A História!
(ABM, mais um vez, viro a página e estás sempre a “perseguir-me,” 🙃 Seu investigador-mor!)
Carlos Hidalgo Pinto
Interessante texto. A prática da escravatura em Zanzibar, foi levada a cabo pelos Omanais (de Omã) que chegaram a ter o contrôle da Costa Swahili. Zanzibar foi portanto um sultanato.
Entre o Lago Vitória e o lago do Tanganika existia o Reino de Mirambo, que era o Rei do Império Nyamwezi, tendo as línguas Sukuma sido algo dominantes nessa região.
Tippu-Tip (Mamad Bin Muhammad Bin Juma Bin Rajab El Murjebi), era um comerciante africano de escravos e de marfim, tendo sido também Governador do Congo. Trabalhou para vários sultoes de Zanzibar e construíu diversos entrepostos comerciais na África Central.
Tanto Mirambo como Tippu’Tip, inseriam-se no grande comércio árabe-swahili, no interio do continente africano.
A escravaturado tipo modelo mediterrânico, abrangia a zona sudanesa que se estendia desde o Senegal até à Etiópia. Isso aconteceu ao mesmo tempo da chegada do cristianismo à regiao da Núbia e sobretudo do surgimento do Islão a sul do Sahara. As populações africanas pagãs dessas zonas que não se convertessem ao Islão, eram reduzidas à escravatura. Foi assim que Estados como O Mali o Ouaddai actual Chade e o Darfour, passaram a adptar em conjunto, o Islão e o sistema esclavagista. Assim, levaram a cabo a venda de escravos a Norte do Sahara, o que constituía uma das suasprincipais fontes de angariação de recursos.
Este sistema propagou-se pa sul, tendo alcançado os países dos Acãs, portanto do Gana
e da Costa do Ouro. Os Acãs eram compostos por povos acuapins, aquiens,anins, axantes, baúles, assins, bonos fantes, zeman e outros. Todos eles professavam uma forma de sincretismo, ou seja, o animismo e o cristianismo. Portanto tudo isto aconteceu no século XV, antes da chegada dos portugueses.
A informação de que Moçambique chegou a administrar Zanzibar é bastante valiosa.
ABM
Muito bem. Não foi só Zanzibar, a quantidade de sítios onde os antepassados portugueses estiveram durante muito mais que um século são surpreendentes. Podias ter andado mais um pouco off-topic e mencionar que Zanzibar foi um dos maiores e últimos epicentros da escravatura mundial, de que pouco se fala, que era uma fonte de riqueza significativa – e que durou quase até ao século XX. ABM
Laura Seixas
ABM 🤠 andei muito tempo afastada, mas mal “regresso”🤜🤛 contigo, 😁👍
Abdul Halimo
Muito obrigado pela partilha,muito interessante
Henrique Ferreira
Muito obrigado por esta aula de cultura muito rica. Bem hajas. Boas lembranças, as do Safari.
Forte Abraço
Luiz Pinto
Gostei de ler este artigo, visto que na minha juventude conheci a ilha em 1948 e 1954 quando fui num barco da British India, em viagem de Moçambique para Goa.
Luiz Branco
Excelente e muito obrigado pela partilha de conhecimento deveras interessante.
Antonio Mendes
Muito interessante!
Cumprimentos.
Luis Batalau
Gostei, sobretudo porque me fez lembrar o SAFARI. Vivi na 24 de Julho, do outro lado da rua. Bons tempos. Abraço