Macau, Portugal e Moçambique: Um Legado Lusófono (3) – “Macau e Moçambique”
Por Manuel Silva
3. Macau e Moçambique
3.1 Macau, o elo na ligação China-Moçambique
- Landins em Macau – 1904

Mapa antigo de Macau
Estávamos em 1904 e pelo regulamento assinado pelo comissário régio de Moçambique, Mouzinho de Albuquerque, todos os homens válidos seriam sujeitos a uma inspeção, a ter lugar de dois em dois anos, para servirem nas companhias expedicionárias e nas companhias de indígenas, estas integradas exclusivamente por elemento landins.
A história militar portuguesa coloca estes homens de sorriso permanente e de selváticas paixões, numa alta estima a julgar pelo testemunho do próprio herói do aprisionamento do Gungunhana, que escreveu a dado passo no seu livro «Moçambique» que os landins eram de todas as tropas de negros ao serviço de Portugal as que revelaram «maior instinto guerreiro».
O exército português passou então por um processo de africanização e começaram a chegar ao território de Macau os landins (antes já existiam no território “moços de serviço” de origem africana, que eram escravos das famílias abastadas). O termo designava originalmente uma etnia moçambicana conhecida pelos dotes guerreiros, mas em Macau serviu para nomear todas as tropas africanas que faziam parte do contingente militar luso.

Landins em Macau (1)
Estes temíveis soldados moçambicanos, são hoje o paradigma de sucessivas guarnições de soldados africanos chegados a Macau: Angolanos, Guineenses, Macuas, Macondes.
O termo Landim quase que serve para identificar todos os batalhões indígenas que passaram por Macau.
O primeiro contingente a embarcar para Macau deixou Lourenço Marques em 11 de dezembro de 1911. Chegados em 1912 os Landins por cá ficariam durante cerca de cinco décadas. E apesar de todo este tempo, os chineses parece que nunca se habituaram ao seu convívio, talvez desconfiados ou medrosos mantiveram-se afastados dos enormes negros que tocavam uma grande batucada enquanto volteavam as zagaias com uma ostensiva ferocidade.

Em Macau os Landins – temíveis soldados moçambicanos – tocavam grandes batucadas com uma ostensiva ferocidade que mantinham os chineses medrosos e afastados…
A partir da década de 40, começaram a chegar, como reforço ao contingente normal de Macau, tropas de África já devidamente organizadas em companhias e batalhões, principalmente de Moçambique, Angola e até da Guiné. Estas forças africanas eram enquadradas por militares europeus onde por sua vez os quadros em falta eram preenchidos por macaenses, com o intuito de comandarem as tropas expedicionárias.
Entretanto, os uniformes foram-se alterando, passando a utilizarem mais o caqui e a terem fardas praticamente iguais às das tropas vindas da Metrópole.
Como se não bastasse, Macau passou a receber os melhores soldados Landins, uma tradição que perdurou enquanto houve Colónias, que tinham como Missão, entre outras, a guarda das Portas do Cerco e a construção de linhas defensivas integradas no Plano de Defesa de Macau (península e ilhas).

As linhas defensivas começaram a ser feitas a partir de 1950. Na fotografia uma das casamatas, situada em Coloane
As Portas do Cerco são um marco histórico e ponto de passagem entre Macau e a China Continental. É um ponto de fronteira, controle de imigração e alfândega. Antigamente, as Portas do Cerco eram um portão de estilo chinês, construído pela Dinastia Ming em 1574. Os portugueses, posteriormente, construíram um arco de estilo ocidental no local em 1870, substituindo a estrutura antiga.

As Portas do Cerco
“Honrai A Pátria que a Pátria vos contempla”
E foi nesse espaço único e nevrálgico que se registaram os maiores incidentes fronteiriços, grande parte deles iniciados por provocações mútuas entre chineses e africanos e que, por vezes, degeneraram em confrontos de uma certa gravidade.
1952
Em 1952, durante a governação de Joaquim Marques Esparteiro, teve lugar o Incidente das Portas do Cerco, que foi uma série de pequenos conflitos armados entre soldados portugueses e chineses nas Portas do Cerco, que era a fronteira terrestre entre Macau e a China continental. Naquela altura, esta fronteira ainda não estava bem definida, gerando assim confusões e disputas. A causa principal deste Incidente não era as disputas territoriais e fronteiriças, mas sim o descontentamento crescente das autoridades chinesas face ao aumento do controlo, por parte do Governo de Macau, da circulação de mercadorias de Macau para a China continental. Naquela altura, a República Popular da China dependia de Macau para conseguir obter várias mercadorias e bens considerados estratégicos, tais como combustíveis, porque ela sofria de um embargo imposto pelas potências ocidentais e pela ONU. O Governo de Macau decidiu aumentar o controlo da circulação, porque foi pressionado e mandado pelo Governo de Portugal a fazê-lo, que por sua vez foi pressionado pelos Estados Unidos da América, que era um importante aliado de Portugal.
Este controlo de circulação tornou as relações entre Macau e a República Popular da China (RPC) muito tensas e os militares de ambos os lados começaram a confrontar-se, abrindo fogo e tornando as fronteiras muito perigosas. Exacerbada pela poderosa máquina chinesa de propaganda, esta situação confusa, marcada por várias ameaças e “incidentes” (pequenos conflitos armados), arrastou durante meses. Intensificou-se nos meses de maio, junho e principalmente em julho, quando as autoridades chinesas impuseram unilateralmente um bloqueio às trocas comerciais e às comunicações terrestres, fluviais e marítimas. Este bloqueio causou uma grande falta de bens básicos, principalmente alimentares, em Macau.
Em agosto, a administração portuguesa de Macau e as autoridades chinesas, após intensas negociações entre eles por meio de intermediários diplomáticos locais, conseguiram resolver o incidente. As autoridades chinesas exigiram um pedido de desculpas por parte dos portugueses, que foram dadas não-oficialmente por Pedro José Lobo, através de um pesar pessoal do mesmo. Este pesar pessoal foi aceite pelos chineses como suficiente. Assim, as autoridades portuguesas nunca precisaram de dar oficialmente desculpas pelo incidente, mas teve que pagar uma pequena indemnização às vítimas chinesas.
Um extrato da interessante descrição de António Botelho de Melo, filho do Tenente Botelho de Melo

António Botelho de Melo
“… o meu pai, açoriano, alistou-se no exército cerca de 1950 para ir para o sítio mais distante dos Açores que havia no Império então. Para alguma coisa servia o Império, não? Pois consultando o mapa, esse sítio era o pequeno istmo de Macau. Aparentemente a fundação da comunista República Popular da China ao lado não foi coisa que o intimidasse. Com o 7º ano do liceu concluído (o Antero de Quental, em Ponta Delgada, que era uma espécie de faculdade disfarçada), ele cedo era um tenente miliciano com aquele sotaque de São Miguel.
As suas primeiras ordens eram para ir até à Colónia de Moçambique ajudar a recrutar e treinar a fornada seguinte das Tropas Landins, que ajudavam a policiar Macau e que vinham de lá daquela zona em Gaza do Mondlane e do Samora e do Chissano. Literalmente, ele andou semanas pelo mato a recrutar soldados, que, à falta de melhor, aceitavam de bom grado o salário, a nova farda e a aventura. De seguida, lá foram todos de barco para Macau. Ele esteve lá desde o início dos anos 50 até finais de 1957, tendo regressado à ilha natal no arquipélago açoriano”.

Landins em Macau (2)
Poucos meses volvidos e basicamente pelas mesmas razões da ida para Macau, foi ele para Moçambique, com a família de então a reboque (eu nasceria em Lourenço Marques pouco depois).
Rua da Felicidade, danças tribais e mais …
A partir de 1948, os contingentes africanos recrutados para Macau, totalizavam, entre praças e cabos, cerca de 500 elementos, e estavam aquartelados em Mong-Há, na Fortaleza da Guia, na Ilha Verde e nas ilhas de Coloane e da Taipa.

Riquexó, o meio de transporte de Macau
Entre as 15 e as 18 horas, isto é, durante o período de licença, os soldados africanos, ou visitavam a Rua da Felicidade, ou passeavam pelas ruas de Macau, nos riquexós (alguns já bastante afetados pela cachaça).

Desfile na zona pedonal da Rua da Felicidade
À noite, no quartel, e quando as circunstâncias o permitiam, acendiam uma fogueira, onde uma conversa algaraviada tentava evocar, sem desânimo, os horizontes longínquos da terra natal.
Apesar disso, o soldado tentava adaptar-se à vida ocidental. Uma forma de aculturação – e talvez a principal- terá sido a religião já que quase todos estavam batizados, ou pelo catolicismo, ou por tendências cristãs protestantes. Ambas as tendências tiveram muito sucesso na sua influência junto das tropas africanas.
No que diz respeito aos católicos, havia em todos os quartéis uma delegação da Legião de Maria e na Gruta de Nossa Senhora de Fátima, cantava-se o terço todas as noites. Saliente-se também que alguns africanos chegavam a catequizar os seus conterrâneos.
As suas funções no quartel consistiam, para além dos exercícios militares diários, em trabalhos de faxina e de conservação de estradas.
Apesar das doenças que, muitas vezes faziam abater ao efetivo em tantos soldados africanos, estes ficavam em Macau normalmente durante o período duma comissão de dois anos.
Até ao início da década de 60, altura das últimas referências à sua presença, os moçambicanos comportaram-se como os soldados de elite que efetivamente eram, embora com um bem oriental gosto para o consumo.
Hoje, algures em Moçambique, ainda haverá certamente uma bicicleta, ou uma máquina fotográfica ou mesmo uma arca em cânfora que atesta a passagem por Macau de um desses excecionais guerreiros. Na realidade, mais do que na Rua da Felicidade ou em viagens de riquexó (que tanto prazer lhes davam) foi nas lojas dos chineses que os Landins deram por bem empregue o generoso pré que amealhavam ao longo da habitual comissão de dois anos.

Uma arca em cânfora oriunda de Macau
A lição a ser retirada da presença do contingente africano em Macau
O processo histórico que acabou por trazer muitos africanos a Macau, foca o período compreendido entre o século XVI e a revolução de 1974.
Os landins estão caracterizados como “as melhores tropas coloniais portuguesas”. Eram indivíduos “providos de uma excelente compleição física – cuja média ultrapassava o metro e setenta de altura – com uma boa capacidade de aprendizagem, com um bom espírito combativo e de temperamento alegre”.
Antes já existiam no território “moços de serviço” de origem africana, que eram escravos das famílias abastadas.
O termo landim designava originalmente uma etnia moçambicana conhecida pelos dotes guerreiros, mas em Macau serviu para nomear todas as tropas africanas que faziam parte do contingente militar luso.

Quartel dos Mouros

Aquartelamento da Colina da Guia
A história dos “landins” significa um passado de multiculturalismo e miscigenação, e simbolizam a evolução do relacionamento; melhor dizendo, uma relação de camaradas de armas na defesa de Macau. Passaram a ser integrados no exército, onde recebiam salário. Havia uma espécie de integração no Império.
O estabelecimento português em Macau, e ao longo de toda a Ásia, foi feito com base na mistura de grupos étnicos, fazendo com que todas as comunidades convivessem, ao contrário do que aconteceu com outros povos, que “estimulavam a separação entre esses grupos”. Quer fossem brancos ou negros, os soldados portugueses conviviam independentemente do seu grau militar. O que levou à integração dos militares africanos na cidade de Macau e lhes deu um sentido de pertença à comunidade”. De “escravos e serventes”, os africanos passaram a ser “aliados”.
A lição a ser retirada da presença do contingente africano em Macau é que este constituiu um microcosmo de tolerância no seio de uma comunidade pequena. A significância da presença militar de africanos reflete também preocupações com a estabilidade do território, com a paz e ordem e com o serviço às necessidades da comunidade local
A mistura de culturas e etnias em Macau ainda é visível, o que, só por si, já é um grande contributo.
Em 1974 já não existiam referências à sua presença e em 1975 foi extinto o Comando Territorial Independente de Macau, apagando-se, assim, todos os traços da mentalidade africana que foi utilizada para diversos propósitos, mas que também nunca abdicou da sua originalidade e tradições.
A Associação Amigos de Moçambique foi criada a 16 de Novembro de 1992, por um grupo de naturais de Moçambique que se radicou em Macau por motivos profissionais.
- Aqui estão algumas personalidades sino-moçambicanas que se destacaram na política, sociedade e desporto em Moçambique, fruto da forte presença da comunidade chinesa (sobretudo de Macau e Cantão) no país desde finais do século XIX:
Musica: “Nwahulwana” de Wazimbo
3 Comentários
2luisbatalau@gmail.com
MAGNÍFICO ARTIGO SOBRE UM TEMA E SOBRE ASSUNTOS QUE DESCONHECIA. GRANDE REPORTAGEM.
KANIMAMBO.
Samuel Carvalho
Excelente artigo, que recorda a pouco conhecida ligação entre Moçambique e Macau, revelando como a mobilidade dos landins e a fusão cultural marcaram este legado lusófono.
Parabéns Manuel Silva!
BigSlam
Moçambique e Macau ligados pela herança portuguesa e pelos laços de comércio e cultura entre África e Ásia.