O ANIVERSÁRIO DE LOURENÇO MARQUES E O MEU AVÔ SILVA
Por Nelson Silva
Em 10 de Novembro de 1887, Lourenço Marques foi elevada a cidade, perfazendo hoje – agora com o nome de Maputo, desde 13 de Março de 1976 – 130 anos com este estatuto.
Como seu natural – de 2ª geração – junto-me a todos aqueles que ali também nasceram, ou que a ela estão ligados por outros laços – geralmente tão apertados que até faz doer a alma da gente – que quando dela se recordam, nas datas felizes ou naquelas mais trágicas, se lhes forma na garganta um ai, mesmo que o mesmo depois se silencie, para uma vez mais dedicar um pensamento à nossa bonita Cidade.
O meu avô Silva – pai de meu pai – se fosse vivo, porque também nascido em 1887, teria agora igualmente 130 anos e quero associá-lo – e é-me grato fazê-lo – a este evento porque, embora não seja esta a data do seu nascimento, este meu antepassado tem uma indelével ligação com a data e com a cidade de Lourenço Marques, que explicarei mais à frente.
Natural de Monchique, integrando a então Infantaria da Marinha – de onde provêem os Fuzileiros Navais – o meu avô Silva estava colocado no cruzador “ D. Amélia”, que com o apoio da canhoneira “Pátria”, tomaram de assalto a Ilha de Coloane, ao largo de Macau, então dominada por piratas chineses, que ali se refugiavam depois das suas malfeitorias, geralmente culminadas com a obtenção de reféns com que procuravam receber resgates.
Os primeiros combates começaram a 12 de Julho de 1910, sem sucesso para as tropas do exército português, o que só viria a ser atingido a 17 do mesmo mês, depois de intenso bombardeamento pelos navios da Armada e com o desembarque de 150 fuzileiros, entre eles o meu Avô, que detectaram inúmeras cavernas onde os piratas mortos ou capturados escondiam reféns à aguardar o pagamento da sua liberdade, situação aliás que tinha despoletado a intervenção das forças militares portuguesas.
Em 1998, ano anterior à entrega de Macau à China, tive a oportunidade de me deslocar àquele território e, devido a ligação ocasional com a Marinha Portuguesa, fui levado pelo Capitão do Porto-Adjunto a visitar Coloane – já ligada a terra por uma ponte e a caminho de se ligar artificialmente ao continente por assoreamento, sendo particularmente grato, na ocasião, poder rezar pelo meu avô Silva, em frente ao monumento colocado no largo da igreja de S. Francisco Xavier daquela cidade, comemorativo dos combates travados.
Pelo seu desempenho, para além de condecorado, o meu avô Silva foi transferido para Moçambique, onde – depois do 5 de Outubro de 1910 – pediu a passagem à reserva, por não ser republicano.
Ingressou no Caminho de Ferro de Moçambique, na secção de comunicações do Quadro de Estações, onde esteve até se reformar em 1944. Só interrompeu de 1914 a 1918, por ter sido de novo chamado ao exército para enquadrar forças locais que se juntaram aos 19000 militares da Metrópole, enviados para Moçambique, para combaterem as tropas alemãs provenientes do Sudoeste Africano e da Tanzânia, então territórios alemães, que conseguiram atravessar o rio Rovuma e penetrar no então território português.
Durante a 1ª Guerra Mundial, morreram mais soldados portugueses no norte de Moçambique, do que no teatro de operações europeu. O meu avô Silva, deve ter beneficiado dos anos que já tinha de vida em Moçambique e pelo facto de a força que integrava ser basicamente constituída por tropas africanas, o que lhe permitiu bater-se por forma a assegurar a sua posição – no célebre triângulo de Quionga, onde combateu de 1916 a 1918 – e a não sofrer, por exemplo, de crises de paludismo ou outras doenças, que foram a causa principal da morte de elementos do contingente europeu. Mais uma vez, em razão do seu comportamento em combate, o avô Silva foi condecorado.
Com o pecúlio de anos de trabalho, o meu avô Silva comprou um terreno, o lote nº1 do bairro da Malhangalene – na esquina das Avenidas Augusto Castilho (Avª Vladimir Lenine) e 31 de Janeiro (Avª Agostinho Neto) – e nele construiu uma vivenda que, em 1957, daria lugar a jardim, estacionamento, quintal, arrumos e quarto e casa de banho para empregados e um edifício de rés-do-chão e primeiro andar, com quatro apartamentos, que foram divididos pelos filhos, que ali viveram em saudável ambiente, conjuntamente com os cinco netos. O prestigiado arquitecto Pancho Guedes, amigo do meu Pai, projectou a obra.
Eu gostava muito do meu avô Silva e de com ele me encontrar, à tardinha, sentado na sombra do jardim, na entrada do prédio virada para a Av. Augusto Castilho (Avª Vladimir Lenine), para lhe ouvir as histórias, comentários e opiniões, que sublinhava com gestos largos com as mãos que saíam das mangas compridas das finas camisas brancas de verão vindas de Macau. Era um interlocutor interessado e interessante, que ouvia no rádio não só o noticiário local, como prestava atenção às notícias em Português da BBC, desvalorizando o serviço da Emissora nacional.
No inverno, não era preciso sair de casa para o avô Silva se compor com casaco e gravata, mesmo para podar alguma das roseiras do jardim, de que muito gostava. Na gola esquerda do casaco, sobressaía a cruz da Liga dos Combatentes.
Geralmente ia – de manhã e de tarde – até ao jardim D. Berta para se encontrar com outros reformados, parando algumas vezes pelo caminho, para trocar umas palavras com conhecidos ou para comprar fruta, que não dispensava diariamente, descascando-a com um pequeno canivete, geralmente guardado no bolso esquerdo do colete, que o direito estava reservado para o relógio pendurado por cordão. Noutras ocasiões – isto quando já se encontrava na casa dos 80 anos – andava pelas obras de construção, mesmo em locais distantes como Alto Maé ou Sommerchield – para onde se deslocava em passadas largas e determinadas – apreciando a evolução das mesmas e trocando considerações com os empreiteiros. Como gostava de andar a pé, muitas vezes recusou ofertas de boleia de meu Pai e outros familiares, deslocando-se à Câmara Municipal para marcar as limpezas de fossas ou às Finanças – ali junto às muralhas – para pagar o “imposto de palhota”.
Todos anos, a 9 de Abril, dia da batalha de La Lys, ia e vinha a pé até à Praça Mac-Mahon – onde se encontrava o Monumento aos Combatentes, mesmo em frente à bonita estação de caminhos de ferro da cidade – para se juntar aos seus camaradas de armas, na homenagem que anualmente os combatentes da 1ª Grande Guerra – a que mais tarde também se juntaram os combatentes da 2ª Guerra Mundial – prestavam aos que tinham tombado em nome da Pátria, nessa e em todas as batalhas nos diferentes teatros de operações. Deslocação que se repetia a 11 de Novembro de cada ano, por ocasião do Armistício da 1ª Guerra.
Foi aliás por não reconhecer as limitações que impunha a idade que acabou por perecer, em 1972, já com 84 anos, em resultado de ter desfalecido ao levantar a pedra que cobria uma das fossas do nosso prédio. Foi sepultado onde queria ser: no talhão dos Combatentes no Cemitério de S. José de Lhanguene e a Família não tentou sequer trazê-lo para Monchique, porque em vida, tendo direito às férias graciosas de 4 em 4 anos, recusou sempre a vinda. Já nada o ligava a esta terra europeia e onde ainda imperavam resquícios de salazarismo, que o desgostava.
Pessoalmente, tenho até uma acrescentada razão para que 10 de Novembro seja memorável, já que em 1962 – por ocasião do 75º aniversário da elevação de Lourenço Marques a cidade – tive a ventura de, aos 8 anos de idade, fazer parte do grupo de filiados da Mocidade Portuguesa, que então frequentavam a Escola Primária João Belo e foram assistir a uma cerimónia comemorativa da data, que ocorreu no Salão Nobre da Câmara Municipal. Tornei-me no seu único familiar a testemunhar a homenagem que a Edilidade lhe prestou pois, nessa cerimónia, o meu avô Silva foi considerado pioneiro da cidade de Lourenço Marques e recebeu uma placa comemorativa da efeméride. A título de curiosidade, entre os dez recipientes do título de Pioneiro, as mais antigas eram cinco senhoras.
Compreendem porque, neste aniversário da nossa cidade – vaidosamente – dou particular enfase à ligação de Lourenço Marques com o meu avô Silva e descrevo breves pinceladas da sua vida?
Sobre o autor deste artigo:
Nelson dos Santos Silva, natural de Lourenço Marques e filho de pais também laurentinos, é antigo jornalista dos jornais “O Jornal” e “A Tribuna” de Lourenço Marques e do “Popular”, de Joanesburgo.
É Licenciado em Organização e Gestão de Empresas pelo ISCTE, em Lisboa e é Mestre em Gestão e Comércio Internacional pelo ESADE, de Barcelona.
Fez carreira em marketing, entre outras, nas empresas Beirsdorf, Compal, Knorr, Johnson&Johnson e Zima Farmacêutica, tendo sido professor universitário no ISCEM e formador do IEFP, tendo-se aposentado em Dezembro de 2016.
3 Comentários
Carlos Hidalgo Pinto
Respondendo a N. Silva, o meu avô nasceu em Santos, no 1º andar de um prédio ainda existente na Calçada do Marquês de Abranches. Penso que também fez parte do corpo militar
que participou na campanha de pacificação do território moçambicano.
Relativamente à sua participação na frente da Grande Guerra, no norte de Moçambique, junto às margens do rio Rovuma, a coisa parece ter sido bastante difícil. Os militares morreram em grande número com paludismo, disenteria e outras doenças. Segundo consta, as marchas estendiam-se a centenas de km pela selva, muitas vezes sem comida nem água, com leões, elefantes, formigas e toda a espécie de mosquitos capazes de matar qualquer homem. Todo esse esforço, conjuntamente com milhares de moçambicanos, tornou-se um valioso contributo para a manutenção da integridade territorial de Moçambique.
Nelson Silva
Obrigado pelo seu contributo para a compreensão das dificuldades que passaram os soldados portugueses no norte de Moçambique, no período da 1ª Guerra Mundial.
Jose Dantas
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