UMA VERDADEIRA HISTÓRIA: A PRIMEIRA PAIXÃO DE UM DESPORTISTA!
LOURENÇO MARQUES E ZAVALA EM TEMPOS QUE JÁ LÁ VÃO…
Aos 16 anos apaixonei-me intensamente. Um quotidiano aplicado ao desporto, não fizera até então despertar em mim um forte sentimento de amor, seguramente o primeiro. Até que ele surge e vai envolver-me intensamente. Vou procurar aqui descrever os momentos, qual filme da minha vida, décadas depois. Esta primeira paixão, curta, inebriante e vivida, felizmente sem tropeços e quedas, trouxe sim de seguida, porque usual, a dor e o previsível fim.
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- Lourenço Marques, a bonita cidade das acácias.
Uma tarde quente de Domingo. 16.30 horas. Matiné dançante nos Velhos Colonos, ali na esquina da Princesa Patrícia com a Afonso de Albuquerque. Eu, conhecido por Axterix, com um grupo de amigos todos eles companheiros de desporto, observo a chegada de outros, todos nós jovens, alegres, ensaiando uma identidade própria, ensaiando os primeiros passos em diversos cenários que nos arrasta para uma revolução dos padrões morais e estéticos daquele tempo, tempo instável e difícil que se vive pelo mundo. Mas esta tarde estamos aqui, diria, por um ideal esteticamente agradável e pleno de sensualidade, não para discutir o resultado, se merecedor ou não, do último jogo entre o 1º de Maio e o Grupo Desportivo, com a vitória deste último, mas sim para ouvir melodias doces como que à espera de ouvir o Chico Buarque o tal “… de ver a banda passar cantando coisas de amor …”. Subitamente algo me chama a tenção, pois vejo um amigo que chega acompanhado da namorada e de uma bonita jovem, mais nova, de óculos, com ares de tímida e provavelmente reservada, que tudo faz para passar despercebida.
Entra o grupo. Inicia a música, avançam os dançarinos, agitam-se os corpos. Reparo que a jovem não dança. Outra série de canções se inicia, eu agora danço e procuro descortiná-la. E vejo-a novamente só, sem dançar. À terceira série, não me contenho e para ela me dirijo, disparando:
– Tu danças?
Surpreendida, hesita. Olha-me. Gentilmente, aceita. Pelo olhar pareceu-me que gostara do jeito que eu era, pois com um sorriso na cara, logo não a contragosto, aceitara dançar. Mas avisa:
– Olha que eu não sou grande dançarina!
Ao som dos Night Stars iniciamos os nossos passos. Arranca a banda com a instrumental “Nita”, agradável e suave que determina um clima de aproximação, mas logo de seguida vem a “Eu Sei” que traz versos como “… que o teu amor por mim está a chegar ao fim …” ou como “… o amor que tens no teu coração não passa de ilusão …” etc. e que não favorecem o momento. Finda esta, inicia o Bob o “I want to hold your hand”, dos Beatles, acabadinho de ser lançado em Moçambique:
Oh yeah, I’ll tell you somethin ‘
I think you’ll understand
When I say that somethin´
I want to hold your hand
…….
À terceira dança encontro-me já completamente rendido pelos seus singelos modos e contido sorriso. Como oportuna havia sido essa canção e o seu verso “I want to hold your hand”, como, tão desejado era um ligeiro toque meu na sua mão no final da música. Mas não tive coragem. Demasiado cedo. Contudo com o continuar da dança, maior é agora a aproximação, embora ambos em silêncio. E com algum nervosismo, pouco a pouco, à boleia da canção do momento, aproximo a minha mão da dela. Sinto-a tímida, mas não fugidia…
– Chamo-me Manuela e tu? Se quiseres podes chamar-me por Balela.
Aquelas palavras trazem-me a sensação do doce e do suave!
Digo-lhe o meu nome e de seguida embalados novamente por outra música, agora do Elvis, finjo sussurrar palavras amorosas, que retiro, com oportunidade, das canções que o Bob canta. Baixinho ao seu ouvido, trauteio o verso “Love me tender, Love me long, Take me to your heart” ou logo depois na canção “It´s now or never”, baixinho, volto a trautear “When I first saw you, With your smile so tender, My heart was captured My soul surrendered” … e ela, parecendo compreender, disfarça o sorriso. Dou conta que sabe ela inglês. Outras canções se seguem, como o “Light My Fire”, dos Doors. E a chama no coração, sim, acendeu! Mas a dança continua e termina a série com um “Twist and shout”, que nos obriga a separar e a agitar, o que me permite ver, com agrado, a sua elegante e pequena silhueta movendo-se lentamente, para mim qual câmara lenta com graciosa imagem.
E a série de canções termina para intervalo. Uma questão agora se levanta e, imagino um outro jovem ir buscá-la para dançar. Não, não pode acontecer! Tem de ser comigo! Eu queroooo! Acanhado, pergunto-lhe se dançará novamente. E ela diz que sim! Dirigimo-nos então para junto da sua irmã e namorado e aqui ambos nos quedamos em silêncio, que me parece interminável e incomodativo.
-Queres beber uma coca-cola? pergunto.
-Não, obrigada. Vai tu.
Para disfarçar o tempo de espera, em silêncio, finjo-me descontraído. Vou ao bar, onde o nosso sempre prestável Jaime atende os pedidos e o atento Senhor Nascimento impõe alguma ordem. E ainda faltam 10 minutos para o recomeço da dança. O que fazer? Para descontrair e com uma laranjada da Reunidas na mão, sempre faria o hálito mais doce, vou até à mesa dos matraquilhos ver o Toninho Murinelo no seu melhor.
Mal recomeça a música, tenho-a novamente nos braços. E perdido no espaço, o tempo voa. Seguem canções românticas, umas atrás de outras, como “She loves you”, “Una lacrima sui viso”, etc. e ela sempre entre os meus braços, agora mais encolhidos e onde pouco a pouco os corpos se aproximam, algo que não escapa à atenção do César, amigo universal, figura querida daquele espaço, mais conhecido pelo Piricas, que logo piscando o olho me diz ao ouvido: “Eu vi vi vi-te, estás a aaaapertar a miúda, tens de me dar um es es escudo para uuuma chuinnnga senão didigo à tua mãe”. Prometo que sim. Agora é o Alex que ainda com alguma timidez canta a recém-chegada “Paris c´est fini” de Hervé Vilard, ainda quase desconhecida, e, para finalizar, a banda muda do ritmo, para a habitual e mexediça marrabenta:
Elisa we (gomara saia)
Elisa wa (gomara saia)
Elisa juro (gomara saia)
Elisa we (gomara saia)
A va rapaz (ni ma bomba)
A va menina (ni marabenta)
A va rapaz (ni ma pompa)
A va menina (ni marabenta)
Ela pára. Envergonhada, diz-me:
– Sou muito acanhada para esta dança….
Pergunto-lhe se por causa dos requebros da anca, do movimento sensual do baixo ventre ou no dobrar dos joelhos, que a música solicita …. ri-se:
— Não sei! Não consigo! Não me sinto à vontade! Vamos sentar ali e conversar.
E fomos! Naquela amena conversa pergunto-lhe o essencial e fico a saber onde mora, qual o clube, onde estuda, qual a hora da saída das aulas; aqui sorri, o que entendo por consentimento.
Quando lhe pergunto de onde é, diz-me ser de Quissico, Zavala, pequena povoação, mas bonita e rica dos seus “ngodo”, “naméti” e “m´saho”, palavras que nada me dizem. Perante o meu espanto ri-se e já com alguma ironia, sinal de descontracção, esclarece:
– São os grupos de marimbeiros, suas danças e músicas em língua local!
Segue-se pouca conversa, algum silêncio, olhares e sorrisos trocados, como também alguns mudos toques, qual linguagem de sentimentos, de carinho, que em simultâneo e envergonhadamente trocamos, até sermos interrompidos pelo amigo Piricas que, não esquecendo, vem reclamar o escudo pelo seu silêncio, que rapidamente lhe dou e a quem peço que vá de imediato comprar uma “chuinga”.
19H30. Termina a tarde dançante. Saem os dançarinos e os assistentes. Antes do portão de saída, ganho coragem e pergunto-lhe se a posso esperar à saída do liceu. Diz que sim. Por último, passada a bilheteira e recordado do “It’s now or never”, do Elvis e do verso Tomorrow will be too late que lhe sussurrara ao ouvido pouco antes, no turbilhão da multidão olho-a nos olhos. Ela sorri abertamente, o que faz pela primeira vez. Peço-lhe um inocente beijo. Ela diz que sim. Nesse momento vejo no passeio da esquina da Avenida Afonso de Albuquerque com a Princesa Patrícia a publicidade da Pastelaria Princesa: “Vá atrás da felicidade… está próximo!”. Era um bom agouro! Subitamente sentia-me arrebatado por aquela pequena, mas elegante figura que se afasta e de quem de tudo gostara: do olhar, do sorriso, sorriso esse por trás do qual eu certamente despertara sensações e sentimentos, que imagino…
A partir de então passo a estar muitas tardes, pelas 17 horas, alcandorado nos portões do liceu feminino D. Ana à espera daquela menina, que, entre tantas circulando no átrio interior nas suas batas brancas, de imediato eu reconhecia pela cor negra dos aros dos seus óculos. Depois era um rápido acompanhar à casa, com ligeiros toques de mãos e, junto ao semáforo da pastelaria Cristal, na 24 de Julho, num gesto estudado, mas fingindo ser repentino, qual gesto de segurança ao verde já aberto para os peões, ensaiava o meu suave abraçar da sua cintura.
E sentia o estremecer dela. Feliz, após um rápido e disfarçado beijo apanhava de imediato o machibombo que me levaria às instalações do Ferroviário, lá para o final da Luciano Cordeiro, para os meus treinos desportivos. E dias depois, desconcentrado, porque pensando nela, em pleno treino falho saltos seguidos, estatelando-me várias vezes no chão … para estranheza do treinador Professor Rui Baptista, que me lança um olhar reprovador, ou quando falto a dois treinos seguidos de futebol de salão, coisa rara, e porque não arranjara uma desculpa plausível, o “mister” Remédios Furtado que, muito antes do remate de trivela do Quaresma já nos havia ensinado uma técnica bem sua, a do “livre directo em pontapé de meia volta”, avisava-me:
– Oh jovem, estas ausências não podem continuar!
E assim, rapidamente, passam quase dois meses de intensa e feliz ansiedade. E chegam as férias e com elas as palavras que não queria ouvir, pois diz-me ela que as vai passar, inteirinhas, na região de Zavala! Zavala? Tão longe? Que chatice! Mas são férias grandes!! Férias enormes!
E foi …
E estavam essas férias a serem bem grandes, e eu, com muitas noites de insónia, volteando na cama para cá e para lá… não me saindo ela do pensamento. Sentia ainda no ar o seu perfume, a nova fragrância acabada de chegar ao John`Orr, embora ainda experimental, de Yves Saint Laurent, contudo provocante, sensual e arrebatador.
Porque ficara eu assim? Dava conta de estar a viver uma grande paixão, e a chegada das férias cortara abruptamente o meu feliz e ingénuo romance, algo nunca antes acontecido. Na casa dos pais, encontrava-se ela bem longe de Lourenço Marques. Pensaria em mim? Sinto, com dor, a sua ausência! Pensamentos diversos ocorrem-me … e se eu fosse procurá-la? Nem é difícil, pois próximo, mais a Norte, fica Inharrime e aí reside um primo que trabalha na estação local dos caminhos de ferro. Era uma questão de ganhar coragem e ir visitar o primo… Não havia que pensar muito. Estava decidido, iria, pois poderia revê-la por alguns dias. Com pretextos e desculpas enfrento os meus pais, que não se opõem, por estar eu de férias.
E aqui estou rodando pela estrada nacional 1 em direcção a Inhambane, num dia de radioso Sol. Vou embrenhado nos meus pensamentos. Não é caso para menos: vou procurar reencontrar aquela que mexeu comigo e despertou em mim a minha primeira grande paixão.
Consigo esta “borla” de um amigo do meu pai, o Sitole, na sua velha carrinha Chevrolet.
Ele é negociante de peixe, comprando aos pescadores das praias de Závora, Manhame e Govene, onde é hábito permanecer semanalmente três a quatro dias até encher os três enormes frigoríficos presos na caixa da carrinha, regressando depois a Lourenço Marques para a sua distribuição. Sentado no “amassado” banco, desprezando aquele quente dia, constantemente relembrado pelo António Luís Rafael na emissão da Rádio Clube de Moçambique, aqui vou, de janela aberta, com o vento dando-me na cara,
Já no caminho, próximo de Zandamela, cresce em mim um nervoso miudinho. Concentro-me nas razões que darei ao bater à porta. Próximo de Chissibuco, beijando o meu pequeno amuleto, uma cabeça de Cristo em pau preto que trago num fio pendurado no pescoço, penso no que direi ao pai ou à mãe caso seja um deles a receber-me e o que responder à pergunta ao que vinha, caso a fizessem, …
São 4 da tarde. A esta hora certamente o pai não estará em casa pois é ele proprietário e negociante. E a mãe? Sei, porque me foi dito, ser ela simpática. Mas o que direi? Ambos me desconhecem. Seria bom que estivessem apenas as suas manas mais velhas, a Geninha e a Candinha. O irmão mais velho quero-o à distância…
Avança o carro. O sol de Julho brilha sobre a região de Zavala, lugar tranquilo, pontilhado por lindos palmares. Mangueiras e cajueiros, à beira da estrada, expõem os seus frutos. Os cactos, enormes, ameaçam com os seus espinhos.
Nesta idílica paisagem moçambicana, casas dispersas de alvenaria, entremeadas por outras de blocos e chapas de zinco, ou ainda de matope e palha, com as paredes pintadas de carregado colorido, publicitam bebidas diversas como a Spur Cola, o Vimto, a Tombazana ou então o sempre útil Petromax ou ainda maços de cigarros da 365, do Caravela ou do Havana, destacando em letras gordas ter o primeiro ponta de filtro, o segundo ser suave e aromático e o último ser autêntico tabaco turco, em papel aromatizado e contendo 25 cigarros. Colorido dos anúncios que contrasta com a beleza desta enorme zona verde de palmeiras, lagos, mar e salinas, nodoando o local.
Arrasta-se agora o carro em direcção a Quissico. Peço ao Sitole que pare. Estarei eu certo do que vou fazer? Perturbado observo tudo quanto me cerca. O mar, embora ainda longe, sob um sol num belo faiscante, brilha de oiro vivo. As lagoas, mais próximas, ao sabor do vento, cobrem-se de escamas luminosas. Ambos parecem dar vida e tranquilidade à localidade. Linda, como a jovem que procuro, é a região de Zavala, misteriosa, brilhante, terra da etnia chope.
Olho o que me cerca. Vejo crianças dispersas entre as sombras das palmeiras jogando ao matakuza. Mais no interior, junto a uma curva de um dos lagos, inclinados na amurada de um pequeno barco de madeira em terra, ouço homens falando do tempo e das intrigas da povoação. São pescadores, certamente. Não distante, vejo outros, jogando ao ntxuva, em grandes tabuleiros com buracos. Mais longe, filas de homens de marmoto nas mãos, alisam o sal das salinas que brilham ao sol. Do outro lado da estrada, debaixo de uma frondosa mangueira, um grupo de crianças africanas canta alegremente uma canção landim:
Maleee …
Male a mina!
Chaua ni Rosa
Suca meta messa
Ni kopa cambi male a mina!
Maleee, male a minaaaa….
Reina uma paz imensa. Os raios do sol ainda brincam e jogam em magia de cores. Lento, avança o carro e a pequena povoação, com casas pintadas a amarelo ou em verde claro, entre árvores de grande porte e palmares, surge à minha frente. São casas tipicamente de estilo colonial, algumas com a cozinha colocada na fachada principal, outras cercadas por largas varandas.
Próximo da igreja de Nossa Senhora de Amparo peço mais uma vez ao Sitole que pare o seu velho Chevrolet. É hora de decidir. Pergunto-lhe:
– Amigo. Vou ou não? Desço ou não? O que achas?
Ao ver o seu aceno, ganho coragem e saio do carro. De imediato sinto o bafo da maresia húmida e fresca inundar-me o corpo. Agora, sem o ruído do motor e com os sentidos bem despertos, chegam até mim, vindos de longe, bonitos sons de marimbas e timbilas. Seguramente os marimbeiros de Zavala praticando para mais uma digressão musical.
É hora de decidir. Avanço!
A pé e procurando a casa, não distante, daquela moça que me cativara, são muitas as saudações dos mufaninhas e de algumas mamanas recostadas em três ou quatro bancas de fruta. Galinhas e pintos correm livremente. Um cão ladra e outros passeiam sem pressa. Mulheres, com cestas na cabeça, onde os cachos de banana ou o cheiro das maçarocas e da castanha de caju acabadas de assar fazem crescer água na boca, perseguem-me. Outras trazem “majumanas”. Todas procuram vender:
– Mulungo compra, custa quinhenta!
Para relaxar, compro um canudo de “majumanas”, saborosos amendoins acomodados em papel de jornal ou de revista. Calhou-me o canudo feito de uma folha arrancada a um Capricho, revista fotonovela brasileira em voga, e onde ainda noto restos de umas atrevidas fotos da Nara Leão, a musa da Bossa Nova. Tal compra, nada mais é do que a hesitação, a procura de tempo, o tempo para comer um a um todos os amendoins, pretexto para tomar uma decisão. Dou mais uns passos, pensando se seria o meu gesto tomado por abuso.
Aproximo-me da casa. Perante a “maka” do momento, junta-se a este reboliço o “djha”, e adivinhando ao que venho, para se tornar notado, aos saltos e de braço estendido, com a palma bem alva, acena-me e diz:
— Menino, as meninas não estão!
atira-me o moleque, com um aberto sorriso onde brilham os brancos dentes, roçados a “mulala”.
— Não estão? A menina Balela não está?
Perante a minha insistência sorri. Adivinho no seu sorriso a razão porquê. Não, não está. Imensa é a minha desilusão. Em voz alta grito-lhe outra vez:
— Não está mesmo?
Insiste ele que não. Não valia a pena insistir.
— OK. Diz à menina Balela que eu estou em Inharrime na casa do senhor da estação de comboios, ouviu? Ela que venha “mumjuko”. Hambanine!
Acena-me que sim, que dirá.
Volto desiludido ao carro. Inadvertidamente piso um dos cães que vagarosamente vagueia e que desagradado ladra e mostra-me os dentes …. Acelero o passo. Tudo me corria mal hoje. Noto na expressão do Sitole o seu desconsolo. Diz-me ele:
– E veio o menino de tão longe. Inharrime não tem nada para o menino, só um campo de bola cheio de capim! A não ser que… que queira à noite beber uma coca-cola e dançar com as atrevidas que se encontram nos bancos da estação de comboio!
Não, não encontrei a Manuela, a bonita moça que por trás dos seus óculos de aros negros, (testemunhas silenciosas das hesitações, das decisões ou do aroma, dos meus primeiros beijos) me cativara umas semanas atrás, naquela tarde de música e dança. Era enorme a minha desolação.
No dia seguinte, em Inharrime, passo uma manhã cheio de ansiedade. Pela tarde já bem entrada, sou surpreendido pelo guarda-freio da estação que me diz que alguém me procura. Vou ver e, surpresa: era a jovem por mim tão aguardada! Ela viera! Seguiram-se dois abraços e, fora do olhar das manas, atrevi-me a um descarado e prolongado beijo. E ela, com um sorriso, aceitou! Meu Deus, que sensação! Afastamos. Enquanto as manas fingiam interessar-se pela estação local dos Correios, eu e ela agora sós, dirigimo-nos ao “café/cantina do monhé”, e logo no dobrar da esquina ganhou coragem e toma ela a iniciativa para um bem repicado beijo. Já sentados e bebendo coca-cola, indiferentes ao “bula-bula” na varanda, ansiosos falámos do fim das férias, das promessas a cumprir, de futuros encontros e descobria eu nela novos olhares, gestos e emoções, que me cativavam. Depois, de carro já com as manas, seguimos para um pequeno passeio à praia de Inharrime.
Aqui sim, três passos atrás das manas, não se falou de banalidades, mas sim de algo que nascia entre nós, de um inocente sentimento, seguramente de um amor primeiro. Como rapidamente passou o tempo. Já o Sol descaía sobre o mar, quando as manas quiseram regressar a Quissico, seguramente hoje mais que a terra verde de palmeiras, lagos e mar, porque recebia agora um coração que apaixonado, batia aceleradamente.
Inesperadamente no dia seguinte, para felicidade do Sitole e infelicidade minha, regresso a Lourenço Marques, sem a rever, pois Sitole recebera bastante peixe, e as enormes caixas de chumbo com gelo rapidamente transbordaram, pelo que havia urgentemente que entregar aos distribuidores na bonita cidade das acácias. Era impossível ficarmos dois dias. E sem poder despedir-me da minha apaixonada, sem lhe poder enviar um recado, regresso a Lourenço Marques com enorme tristeza e, qual premonição, no rádio do carro ouvia-se o Adamo cantando:
Nous n’irons plus jamais
Où tu m’as dit “je t’aime”
Nous n’irons plus jamais
Tu viens de décider
Nous n’irons plus jamais
Ce soir c’est plus la peine
Nous n’irons plus jamais
……….
Os dias sucedem-se, as férias arrastam-se e chegam ao fim. Eu sem sinais dela. Outubro, finalmente! O liceu aguardava-me para mais um ano. Pensava nela e no seu regresso.
Não, não haveria regresso nenhum. Venho a saber por uma sua colega de turma, que os pais haviam decidido que iria ela estudar para o Gurué, bem longe, residindo na casa de uns primos, lá nas terras do chá, a 22 horas de carro e a mais de 1400 km de Quissico.
Pensava porque tinha que ser assim. Teriam os pais notado a transformação que se verificava na caçula da família? Seria tão grave uma inocente paixão de jovem? Outra razão haveria?
Com ela agora distante, o tempo era lento a passar e confesso que uma vez ou outra uma profunda saudade me invadia. Pensava se voltaria a vê-la. Pensava se na sua volta, ainda sentiria ela o mesmo. Pensava se também eu ainda sentiria o mesmo.
E vinham-me à memória os tristes versos, em voga, do Conjunto Académico João Paulo:
Tudo acabou
Nessa manhã de fim de Verão
Tudo mudou
Por ir viver sem ti
Se o que há de nosso amor
Nessa praia ficou
Eu tão só
Eu tão só
……….
Esse reencontro tardava, o tempo passava, a tristeza pouco a pouco desaparecia e, naturalmente porque “inevitabile est fatum”, outras paixões educativas nasceram, outros quotidianos vieram, outras moças surgiram, algumas até suas amigas, outros sonhos… enfim, poesia, idas, voltas, rodopios aconteceram, mas não como aquele ingénuo amor primeiro. Vieram outras pistas de danças, outras esperas em liceus e até um grande amor, mas a primeira paixão, essa, porque inocente, mesmo passados mais de cinquenta anos, qual bonita memória da minha adolescência nunca foi para o cesto do esquecimento.
Axterix – Lisboa, Novembro de 2021
Imagens de:
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https://www.google.com/search?q=conjunto+jo%C3%A3o+paulo&rlz=
13 Comentários
José Augusto Lisboa Ribeiro
Velhos lugares e memórias que estão na nossa origem.
Convivi com a famìlia Graça,os pais, o filho Zeca e as filhas, a Geninha a Balela e a Candinha em Zavala onde também vivi.
Nunca mais soube do paradeiro desta família.
Um grande obrigado pela publicação desta história e da terra que nos diz tanto
Um abraço grande
José Gonçalves
Uma época inesquecível, aqui muito bem retratada. As manas referidas eram bem simpáticas, cinco estrelas. Belas recordações.
Manuel Martins Terra
The Love Story, que nos faz recuar a uma época em que o romantismo fazia parte dos pensamentos e comportamentos de uma geração que soube crescer, amar e ter sentimentos. Que belas visões, temos desses tempos que já lá vão. Infelizmente, hoje já não é tão comum oferecer uma flor ou andar de mãos dadas, a alguém que efetivamente se ama . Que saudades daquelas famosas tardes dançantes, e das idas às matinés. Parabéns ao autor, pela forma como expressou o seu sentimento de amor.
Cândido Ramiro Filomeno do Carmo Azevedo
Foi na verdade bem verdadeira esta primeira paixão. Segundo sei os 2 apaixonados de então só se voltaram a reencontrar mais de 50 anos depois…
Manuel Nunes Petisca
Foi uma bonita história de amor, que adorei, e o reencontro 50 anos depois, não é único, também, eu sei lhe dar o devido valor.
Maria
Era isso mesmo. Lindas e saudosas terras.
Estrela Marques
Linda história dum primeiro amor! O cenário fez-me recordar a beleza desses lugares, que tantas saudades me trazem. Obrigada.
Luís Serrano
Linda história! Adorei, fez-me reviver a minha juventude. Parabéns.
Antonio Almeida
Adorei.Tenho uma história quase parecida e nunca a esquecerei.Que saudades.
Manuela Carvalhal
Gostei imenso deste 1o romance, nas ” nossas” terras e com as músicas do nosso tempo! Parabéns ao contador de histórias!
Maria Luisa
Adorei❤️🔝👏👏👏👏. Que maravilha, recordar é viver… como fomos tão felizes e sem grandes luxos, mas tínhamos tudo, nunca esquecendo os “valores” morais que nos davam logo em casa.
Parabéns BigSlam por este artigo que ressuscitou tantas recordações ☀️🌺👏👏👏.
ZéRodrigues
Os nossos rebentos não acreditam que se vivesse nessa liberdade , desporto, escola , amores , 330 dias de Sol por ano , vida aventureira. E irreal . Bons tempos .
Luciana Maria Mateus Palma de Sousa
Aiii….tanta SAUDADE…ainda não onsegui ler tudo.Um abraço.