Marega no país que o merece
Por Ferreira Fernandes (Diário de Notícias, 17.02.2020)
Sou do país em que, ainda há meses, uma varina, no Lavadouro da Afurada, frente à cidade do Porto, abanava as ancas e o avental, suspirava “ó o Marega…”, e gritava: “Coisa mai linda não há!” E eu, sinceramente admirado: o Marega, lindo? A varina rapou do jornal O Jogo e beijou-o todo na fotografia da capa. Sou o miúdo que passeava com a mãe pela Avenida dos Aliados, 1958. Cruzou-se connosco um anjo negro vestido como um príncipe, reconheci-o. Empanquei, vidrado: Miguel Arcanjo, o defesa central do clube que nem era o meu, mas o do meu pai, o Porto. Ele pôs-me a mão na cabeça, a minha mãe sorriu-me e sorriu-lhe, eu continuava nas nuvens. Mas ainda disse: “Ele também é de Angola…”, a minha mãe não lia o Ídolos do Desporto. E ficaram a falar da nossa terra, eles; eu guardando no cabelo o afago.
Sou do país que foi ensinado pelo mulato Mário Coluna.
No campo mandava ele, era ele o senhor de todos, de todos e também dos mais brancos que ele, quando nos estádios de toda a Europa quase não havia jogadores negros e certamente nenhum capitão não branco, só ele. Também ainda assisti ao silêncio religioso que precedia um livre de Eusébio, na Luz, mesmo daqueles de 30 metros, que exigiam a fé que só emprestamos aos nossos heróis. Sou herdeiro do lugar, ainda antes – anos 30 e Nuremberga fazia leis celeradas – Portugal se fez país de futebol, à boleia do duelo entre dois amigos goleadores, o sportinguista Peyroteo, branco africano, e o benfiquista Espírito Santo, negro lisboeta.
Enfim, sou mais um de tanta, tanta gente grata que se confirmou como pai ou irmão, em todo o caso inequívoco eterno admirador de um rapaz de rastas e trapalhão, negro como noite luminosa que surgiu numa tarde chuta caralho. Obrigado, obrigado, Eder para todo o sempre… Então, quero dizer que sou desses, das pessoas decentes que, das cores, posso ser minucioso em têxtil, mas sobre pele sou daltónico. Em primeiro lugar, porque sim, e acabou a conversa.
E, em segundo lugar, segue explicação extra porque temos de ser piedosos com os imbecis profundos: a sério, meu, és racista com negros e em Portugal, e é num estádio de futebol que tu o vais proclamar? Vais declarar a inferioridade deles, aqui, neste país tão conhecedor de personagens de lenda, por onde passaram as fintas do Dinis Brinca na Areia, tonitruaram os chutos do Matateu, deslizou a elegância do Jordão e, já agora, o Marega iludiu tanto adversário fingindo-se falso lerdo? Os negros, inferiores! – e vais dizê-lo na ópera onde eles são tenores? Meu, metes as mãos pelos pés e isso em futebol é falta.
Experimenta gritar-lhes que eles nunca irão à Lua – pelo menos, exemplos a desdizê-lo eles, por enquanto, não têm… Mais prudente foste quando, estou a adivinhar-te, cabelo seboso, marreco, a cheirar da boca e com ramela deves ter passado a noite dos Óscares a rosnar para o televisor: “És feio como o caraças, Brad Pitt!” Ao menos, aí, escolheste o teu quarto solitário para insultar, escapando ao sorriso sarcástico, se te ouvissem, de todas as mulheres com quem já te cruzaste na vida. Mas não, ontem, foste para um estádio de futebol expor a tua lamentável inveja contra um negro.
E no Minho! Onde um clube já há 60 anos tinha três irmãos negros na equipa, João, Jorge e Fernando Mendonça, três senhores. Um deles, o médico Jorge Mendonça, seria fundador do sindicato dos Jogadores de Futebol de Espanha e artista saudoso no Atlético de Madrid e no Barcelona… Passam-se décadas e dobra-se o século, e ontem, em Portugal, um futebolista negro marcou um golo aos 71 minutos, em Guimarães. E contra o maliano Marega houve estes sons: “Macaco!” e “chimpanzé!”. Por palavras e também guinchos e sons guturais de símios. Quer dizer, considerando que o futebol foi criado há 157 anos e sabendo-se que o último antepassado comum dos macacos e homens viveu há 28 milhões anos, segundo as claques do Vitória de Guimarães Marega precisa de esperar, façam as contas, 27999847 anos para ele perceber o que é o association football. Antes, levas com cânticos: Ô-ô-ô-chimpanzé… Ô-ô-ô-macaco…
O futebolista Marega enxofrou-se e levou com o cartão amarelo do árbitro. Marega pediu para sair do campo. Da bancada da claque: “Macaco!” Marega continuou enxofrado e a querer sair do campo. Daquela bancada da claque: “Chimpanzé!” Volto à minha tese: depois de tanto ano com os negros a demonstrar que são tão bons, tão maus e tão assim-assim quanto os brancos, houve, no estádio de Guimarães, ontem, uns sub-humanos a serem o que são.
Zé Luís tenta impedir Marega de abandonar o jogo após insultos racistas vindos das bancadas.
RACISMO NO FUTEBOL
Insultos a Marega abrem a discussão sobre o racismo no futebol português
Quanto aos homens vi-os de dois tipos. Árbitros de cabeça perdida, dirigentes e treinadores de cabeça perdida, adeptos (dos dois clubes) de cabeça perdida, comentadores televisivos de cabeça perdida, polícias de cabeça perdida e jogadores do Vitória e do FCP de cabeça perdida, isso de um lado. Do outro, vi o Marega, outra vez enganando-nos com as aparências, gesticulando e gritando, e serenamente fazendo o que havia para fazer: assim não jogo.
Ah, se Pinto da Costa se levantasse e se fosse embora da bancada de honra! Ah se o guarda-redes do Guimarães abandonasse o campo agarrado ao companheiro adversário! Ah se o árbitro Luís Godinho rasgasse o cartão amarelo e o vermelho também, e mostrasse a Marega o cartão branco, o de fair-play, como há dias outro árbitro mostrou a um jogador infantil e nobre, que o avisou ser falso um penálti contra o adversário! Ah se a multidão saísse do estádio quando o Marega entrou no balneário! Ah se o presidente do Guimarães chorasse! Ah se um radialista relatasse: “Marega saiu e eu calo-me”! Ah se os gestos claros e límpidos de Marega causassem a vaga que mereciam…
Esta noite eu teria sonhado com a mão do Miguel Arcanjo a dizer-me olá, e não sonhei. Mas o Marega que apareça estes dias pela Afurada e haverá uma varina a beijá-lo e a resgatar-nos.
8 Comentários
Fu Manjate
Não me admira que não esteja de acordo que tenham sido atitudes puramente racistas, afinal você até está do outro lado da barricada…! Você não é o Marega, nem nunca será alvo dessas discriminações portanto é lhe fácil tirar esse tipo de conclusões. Enfim se a sua opinião é mesmo de boa fé lamento por si porque nunca terá essa experiência da vivência quotidiana dos africanos negros em Portugal. Aquilo que o sr diz: “O racismo normalmente não é dirigido a uma pessoa mas sim a uma raça. ” Honestamente não entendo e acredito que por muito que tente explicar-se duvido que haja alguém que possa entender o que quer que diga tendo por base aquela sua afirmação. Enfim…fico-me com esta tristeza de ver justificações para justificar o injustificável.
miza luis
Gostaria de acreditar k no futebol nao ha jogadores choroes……mas pelos vistos ha. Teatro, nao e n1 campo de futebol, ha 1 aproveitamento politico, claro k ha, mas nao so, eu nem sabia kem era esse Sr Marenga, agora dpois desta cadeira k caiu do ceu, dakeles bracos pro ar, fikei a saber……..chama-se a xto, oportunismo de momento, bem adequado e daki ainda vai saltar p/1 outro Clube k lhe pague mais…..vao ver. So faltou k alguem lhe levasse 1 lenco……….p/afagar as lagrimas……….AhAhAh
MARIA MANUELA ANTUNES GALVÃO DE ALMEIDA
Nasci num País onde inevitavvemente havia os racistas e os não racistas.Lembro-me de brincar com crianças de várias cores.Lembro-me do respeito que sempre recebi pela maioria do povo da minha terra!Lembro-me de ouvir frases como:_Ó seu preto!Não me lembro de ouvir_Ó seu branco.Tenho em casa um quadro com a fotografia do Grupo Desportivo de Lourenço Marques de 1958 (Juniores) onde estão 4 brancos (um deles é o meu marido) e os restantes jogadores são de diversas cores.E nada mais digo!
Raul Almeida
A minha opinião pessoal, discutível como as outras, é que o objetivo da clack era desestabilizar o Marega e conseguiram.
O racismo normalmente não é dirigido a uma pessoa mas sim a uma raça. Isso não aconteceu no jogo.
Não estou de acordo que os serviços de informação digam que houve insultos racistas, primeiro porque o insulto é o que se sente e não a provocação e segundo porque “racista” é o adjetivo qualificativo que deve ser deixado ao critério do ouvinte ou telespectador. Os serviços de informação só têm que descrever os factos.
Concordo com os que dizem que houve um aproveitamento político.
Fu Manjate
KKKKK…Vá dizer isso ao Marega, ao Pinto da Costa e a todos que vivem esse problema no seu dia a dia.!
Mariosk
O racismo em Portugal existe, mas é difuso e de difícil percepção. Não é tanto físico como em outros países, mas é inegável.
É justamente no desporto onde ele está mais ausente, mas na sociedade portuguesa e nas bancadas, só não vê quem não quer.
Fernando Fonseca
Política. Se chamarem chimpanzé a um branco é o quê?
Fu Manjate
Algumas perguntas são tão descabidas e ridículas que só apetece rir…! Sem comentários