O MIÚDO DA ESCOLA INDUSTRIAL DE LOURENÇO MARQUES
Por: Pierre Vilbró
A propósito de mais um almoço anual de convívio dos antigos alunos da Escola Industrial de Lourenço Marques, pareceu-me oportuno e justificável escrever algo que invocasse e homenageasse aquele estabelecimento de ensino e todos os que por lá passaram – alunos, serventes, contínuos, professores e mestres.
Ocorreu-me então ficcionar uma pequena história – ficcionada a partir de instantâneos reais -, tendo como figura central um miúdo a quem chamarei simplesmente Miúdo. Muitos dos ex-alunos poderão eventualmente rever-se em algumas das passagens descritas no texto. Na diversidade de cada um, tínhamos muito em comum.
Contrário à minha vontade, não destacarei qualquer nome, e são muitos os que gostaria de incluir, por me dizerem muito – professores, mestres, contínuos, serventes e alunos -, pois tenho a noção que seria injusto relativamente a muitos dos omitidos, visto ter dificuldade em traçar a linha de fronteira entre incluídos e excluídos.
Quem era este Miúdo? Vivia no xilunguini, nos subúrbios, ou num dos bairros fronteira entre aquelas duas grandes zonas da cidade? Qual o estatuto social, económico e cultural dos pais? A côr da sua pele era clara ou escura? O seu cabelo era liso, encaracolado ou encarapinhado? Nada disto interessava, porque ele era simplesmente um miúdo, mais um entre muitos, e os miúdos não se preocupavam com esses aspectos, questões marginais para eles.
Essas perguntas, preocupações e preconceitos, faziam-nas e tinham-nas os adultos, embora nem todos. Os miúdos, para lá dos episódicos desentendimentos e zangas que por vezes redundavam em pancadaria, pautavam-se pela amizade, companheirismo e entreajuda, quer nos tempos curriculares como nos extraescolares. Destes valores e comportamento, com toda a naturalidade resultava a igualdade entre todos, na diferença de cada um.
O Miúdo, dez anos de idade, terminara a 4ª classe (4º ano, hoje), na Escola Paiva Manso, ao Alto-Maé,
e havia que decidir do seu futuro imediato: Liceu, Escola Industrial ou trabalhar. Esta última hipótese foi liminarmente posta de parte. ”Liceu é para os filhos dos doutores e dos engenheiros, são muitos anos e fica caro” – opinaram os vizinhos, matutaram e concordaram os pais. Por exclusão de partes, o destino do Miúdo decidido ficou: Escola Industrial.
Efectuada a matrícula, os dias que se seguiram até à abertura das aulas foram um suplício para o Miúdo. A lentidão da passagem dos dias, a ansiedade, a espectativa e os pensamentos, torturavam-no. Ia para a escola dos crescidos, com horário, disciplinas e vários professores, ele já nada tinha a ver com a escola das crianças.
No primeiro dia de aulas, bem antes da hora, o Miúdo percorreu o passeio da Av. Afonso de Albuquerque, transpôs o portão de ferro, sempre perscrutando extasiado tudo à sua volta, e entrou no edifício que seria o das suas aulas nos dois anos em que frequentaria o Ciclo Preparatório.
Nesses dois anos o Miúdo integrou-se, criou amizades, teve os seus grupos, familiarizou-se com os dois pisos do edifício, com os espaços envolventes, com o bar onde o contínuo que o geria impunha respeito (com a sua imponência física) aos alunos mais reguilas, com o logradouro pavimentado a tardoz do edifício, onde se localizava o campo de voleibol e o salão de ginástica,
com as escadinhas cobertas que desciam para o edifício da Av. 24 de Julho, em cujo logradouro se localizava o ringue de futebol de salão e de basquetebol, logradouros de cujos campos passou a ser utilizador assíduo.
A frequência das aulas era feita com assiduidade, interesse e aproveitamento. O aproveitamento (neste caso, do tempo) também se estendia aos intervalos, às “borlas” das aulas, e aos períodos extra-curriculares. Assim, tinha-se:
– Nas Salas de Aula: disciplinas de português, matemática, ciências naturais, geografia, história, desenho, trabalhos manuais, canto coral.
– Nos Espaços Exteriores: a educação física, as correrias, as futeboladas, as voltinhas de bicicleta, os jogos ao berlinde e à malha, as conversas e convívios.
– Fora do Perímetro Escolar: as idas, nos intervalos das aulas, nas borlas ou no final daquelas, ao Cortiço, à Casa do Porto, aos Naturais (Associação dos Naturais de Moçambique) – locais utilizados para conversas e convívio, jogar aos matraquilhos, bilhar, ténis de mesa, damas, xadrez, cartas -, ao Jardim Vasco da Gama (de passagem ou para estudar), à Baixa (em passeio).
Concluídos os dois anos do Ciclo Preparatório, novo drama. Continuar os estudos ou ir trabalhar? Doze anos de idade, fora de questão a segunda hipótese. Mais um esforço financeiro e restrições em casa, mas a decisão foi a continuação dos estudos: curso industrial ou comercial? Em casa, ninguém tinha conhecimentos que habilitassem à decisão. Perante o prolongar da indecisão dos mais velhos, o Miúdo desatou o nó: “Quero ser arquitecto. Vou-me informar na Escola”.
No dia seguinte, o Miúdo dirigiu-se ao edifício da Av. 24 de Julho, contornou-o e subiu as escadas de acesso à Secretaria onde, frente ao balcão de atendimento, aguardou pela sua vez. Quando finalmente foi atendido, disse ao que vinha: “Quero ser arquitecto, e pretendo saber o que é preciso para me matricular”. Após uns instantes de reflexão, talvez surpreendida com o ineditismo da pretensão, a funcionária esclareceu-lhe: “Na Escola não temos o curso de arquitectura, nem em Moçambique. Só na Metrópole, e depois do 7º ano do Liceu”. O Miúdo, com o rosto e a voz transparecendo o desânimo que dele se apossara, respondeu: “Assim, não é possível. Os meus pais não têm dinheiro e eu não posso atrasar-me, indo nesta altura para o Liceu”. Após uma pausa para rápida reflexão, concluiu: “Assim sendo, sou obrigado a continuar na Escola Industrial”. A funcionária, compreendendo a situação do seu jovem interlocutor, ponderou uma solução que menos o prejudicasse, talvez até precavendo algum impedimento no trajecto do estudante, contrapôs: “Dos cursos existentes na Escola, o que melhor possibilita um futuro seguimento para Arquitectura, é o de carpinteiro-marceneiro”.
E assim, o Miúdo iniciou o curso de carpintaria e marcenaria, com a duração de três anos. Agora passou a frequentar mais dois edifícios escolares: o da AV. 24 de Julho, onde no 1º andar tinha as aulas de tecnologia de carpinteiro, e no r/chão as de desenho de carpinteiro; e o edifício das Oficinas (onde funcionavam três oficinas distintas, a de Electricidade, a de Serralharia, e a de Carpintaria), passando nesta última a conviver com o pó, o barulho das máquinas, com o cuidado a ter no manuseamento destas e das ferramentas, e onde aprenderia a conhecer as madeiras, a serrar, aplainar, raspar, lixar, encerar, envernizar, fabricar móveis, aplicando os vários tipos de ensamblagens que permitem a ligação das peças. Passou a ter novas disciplinas: oficina, tecnologia de carpinteiro, desenho de carpinteiro, medições e orçamento.
Finalizados estes três anos, o Miúdo passou a ter uma profissão, já podia ingressar no mercado de trabalho. Mas não era este o seu destino. Agora, mais crescido e esclarecido, e com a informação de que se iniciavam nas instalações da Escola os cursos do Instituto Industrial, o Miúdo poupou aos pais a (in)decisão quanto ao seu futuro imediato. Antecipou-se, opinando que queria prosseguir os estudos. Obtida a devida autorização dos pais, após dois dias de argumentações e contra-argumentações, todas devidamente ponderadas, matriculou-se na Secção Preparatória para acesso ao Instituto Industrial, Instituto onde depois ingressou e concluiu o curso de construções civis e minas, com o cumprimento do serviço militar pelo meio.
Chegados a este ponto, e porque se destina este texto ficcionado a relembrar e homenagear a Escola Industrial e todos os que por lá passaram, será o momento de o terminar e, a título de conclusão, tecer os encómios enaltecedores do grande papel formador que esta extraordinária Escola teve na vida dos seus alunos. E, no caso da nossa personagem central, esse elogio à Escola resulta com maior relevo no Miúdo engenheiro-técnico que veio a ser e com sucesso, do que no Miúdo carpinteiro-marceneiro que nunca veio a exercer.
Encómio a realçar, a competência do corpo docente que conferia qualidade ao ensino ministrado. Com professores na casa etária dos “enta”, que implicava experiência de ensino e de vida, alguns acumulando o ensino com a vida profissional extra Escola, redundava num ensino de qualidade, com transmissão e aquisição de conhecimentos sólidos.
Os alunos, uns concluíam (ou não) um dos cursos da Escola (montador-electricista, serralheiro-mecânico, carpinteiro-marceneiro, mecânica-auto, pintura e artes decorativas, laboratório de química) e entravam com facilidade no mercado de trabalho; outros, prosseguiam (via Secção Preparatória) os estudos para o Instituto Industrial ou para a Universidade; outros ainda, porque trabalhavam de dia, frequentavam as aulas nocturnas.
Muitos alunos vieram a notabilizar-se na prática de desporto federado, principalmente futebol, basquetebol, atletismo e hóquei- patins.
E o nosso Miúdo, que entrou para a Escola Industrial pela porta do edifício da Av. Afonso de Albuquerque, para o 1º ano do Ciclo Preparatório, saíu para a vida pela porta do edifício da Av. 24 de Julho, com o curso de engenharia civil e minas. Pelo caminho ficou o curso de carpinteiro-marceneiro, concluído e nunca exercido, e o curso de arquitectura que nasceu nos sonhos do menino e se desvaneceu na crueza da realidade.
Miúdo mandado para a escola na expectativa de se ver até onde poderia sê-lo permitido chegar, e chegou aonde não seria suposto que chegasse. Dele dizem os que com ele lidaram: competente, exigente, perfeccionista, sóbrio e discreto.
Se há destino, abençoado destino. Com ele ou sem ele, não esquecer nunca a Escola Industrial de Lourenço Marques, grande escola que foi de formação técnica e humana.
O BigSlam deseja aos “madalas e cocuanas” da EILM um ótimo 7º Almoço no dia 14 de abril. Clica AQUI ou na imagem seguinte!
7 Comentários
Zé Carlos
Grande instituição! Andei lá em 74/75 e75/76 no curso de metalúrgia e tecnologia mecânica. Entre as disciplinas todas e eram bastantes. Port. Fran. Ingl. Hist. Fisi e Quim. Mate. Ciên e Techn. Dese art. Dese tecn. Labo. e Ofici.
Gostava de tudo e a coisa mais fascinante para mim na altura foi trabalhar nas officinas e contribuir para o progresso na construção do “working model” da locomotiva a vapour que era um longo projecto iniciado décadas antes do meu tempo, participado por todas as classes desde o inicío e quase completo em 75/76.
Ainda me lembro do seu lugar de orgulho quando se entrava na oficina junto a parede do lado direito.
A locomotiva e tender do carvão e água estavam montadas numa bancada em cima de ums dois metros de carrils feitos a escala correcta.
No meu tempo estava práticamente completo, mas a partir da independência com as constantes interrupções das aulas para ir demonstrar para as ruas contra o “tabaqueiro” e o regime racistas da Rodésia e A. do Sul, ou participar nos comicíos, eventualmente azedou-me e deixei a escola para me dedicar á caça a comida e constantes bichas nas lojas para adquirir fosse o que fosse que o domicilio precisava…
No entanto, a dedicação e qualidade dos professors e ensinamentos lá aprendidos formaram uma boa base de conhecimento para mais tarde em Portugal continuar e qualificar me. Depois no estrangeiro mudei para um ramo mais especializado mas o sucesso de tudo o que fiz advém das bases desses tempos.
Gostava de saber o que aconteceu ao modelo da locomotiva…
Pierre Vilbro
A todos agradeço as palavras de simpatia e agrado. Felicidade maior a minha, é constatar que o texto consegue transmitir sentimentos que definem o ser humano – que está ou deveria estar acima de tudo.
Amin Sultanali
Parabéns ao Pierre que, num texto bem redigido com imagens que evocam nostalgia, conseguiu fazer o retrato do miúdo padrão da EILM. Por isso “SOMOS TODOS VILBRÓ”
Aluno e Professor LUTAF NOORALI
Depois do que li só me apetece chorar.
Aluno e Professor LUTAF NOORALI
Espectacular, a realidade posta no texto, tudo que se passou e nos marcou para vida. Parabéns. não esquecer por lá andou o melhor jogador de hóquei em patins de sempre e do mundo, FERNANDO ADRIÃO.
Jose Carlos Matos Viegas
Gostei do que li. Fizeste-me recuar no tempo e voltar aquela Escoa que formou tantos homens para os seus futuros.
Obrigado Pierre! Aqui fica o meu grande abraço de estima e amizade.
Victor Rocha
Grandes escolas grandes amizades