O King
Por Fernando Lima
Espinhos da Micaia – SAVANA 10.01.2013
Eu sou da geração dos que ouviram o King a jogar. Nunca o vi ao vivo e nem televisão havia como quando Nelson Mandela saiu da prisão em 1990.
Conhecer Eusébio veio muito mais tarde. Pela mão do Kok Nam que também me apresentou ao Mário Coluna, ao “sobrinho” Shéu Han, ao José Craveirinha. Amanhecemos algumas vezes no “Sinatra” e, mais tarde, no “Face2Face”. Bom convívio, bom copo. Sobretudo, ouvido atento ao que era novo para mim. Habituei-me a tratá-lo por “king” porque era o hábito à minha volta. Como trato de “Monstro Sagrado” o Mário Coluna. Conheci pois o humano, o simples, o humilde, o dono de uma boa gargalhada no convívio de amigos e conhecidos de ocasião.
E nestas novas vivências com roupagem de estatuto de comunicação social, nem sequer me passou pela cabeça a ligação às dezenas de carteiras de fósforos incendiadas num ápice, para ficar com os bonecos das estrelas da bola dos anos 60, do Yaúca, do Matateu, do Santana e do Costa Pereira.
Depois veio o politicamente correcto e o Eusébio foi parar ao congelador. Tinha alergia aos três F (fado, família, futebol). Saía da sala sempre que a voz da Amália era estupidamente ritualizada. E ria com a anedota racista dos tremoços, o marisco do Eusébio.
Na independência segui os debates acalorados se o Eusébio era moçambicano ou português, como se as nacionalidades sejam meros actos administrativos. A animosidade dos tempos levou Eusébio ainda mais para o outro lado, até porque havia um prédio nacionalizado no Alto-Maé, o que colocava em paralelo, o fenómeno da Mafalala com o discurso da exploração colonial. Como as ainda mais ridículas nacionalizações das casas de madeira e zinco dos subúrbios, muitas das quais o sustento para as famílias poderem dar mais educação aos seus filhos.
Antes de José Craveirinha compreender quer era preciso agir para que Mutola não fosse mais um Eusébio ou uma Neide Gomes, Samora compreendeu os dramas e emendou a mão. Num ápice, deu uma casa a Eusébio e também um passaporte diplomático, formalizando a dupla nacionalidade que era um tabu na altura, muito longe ainda do rebuscado artigo 33 da Constituição revista em 2004. No rol das várias recordações, ouvi esta semana que o Eusébio, quando inesperadamente convocado à Presidência, fez questão em assegurar que não ia ser preso. O que dá para ver os obstáculos que a noite colonial construiu e as pontes grandes e pequenas que foi preciso estabelecer para que o passado se reconciliasse com os pós-dogmas.
O gelo quebrou a partir daí, mas não totalmente. Não há muitos anos, a famosa casa, oferta de Samora, veio a terreiro numa disputa a favor de outra família moçambicana, vindo de novo à colação – porque interessava – que o King tinha sido um dos beneficiários do colonialismo. Como se houvesse um nome próprio para os que “compraram” várias casas a preço de banana, em nome do colonialismo e dos economicamente mais vulneráveis, “expulsos” para a periferia no Zimpeto, em Kobe, em Guava, no CMC.
Mas, desde que o gelo quebrou, as visitas de Eusébio aumentaram, mesmo com o seu pavor em andar de avião. Numa das estadias, no Hotel Avenida, quando o dissuadiam a não ir ao Banquete de Estado na Ponta Vermelha como convidado de Cavaco Silva, atirou de forma desconcertante: “não dá, a falta de um preto numa delegação de brancos dá muito nas vistas”.
Nesta semana de memórias e homenagens, alguém disse, depois de horas a fio a ver os directos televisivos em honra de Eusébio, que o King parecia a Zaida Hlongo dos portugueses.
Fora das bandeiras que não houve, para além do estandarte do seu clube de sempre, lembro mais uma das “boutades” do King, nas tertúlias noctívagas de Maputo. “Já esqueci a última vez que tive de pagar a conta num restaurante”.
Não é necessário que assim seja, mas eventualmente a história se encarregará de aproximar Zaida, Eusébio e todos os moçambicanos.
Imagens da internet colocadas pelo BigSlam