UMA DATA NA HISTÓRIA – 5 de Julho de 1955… Mia Couto
Quando ingressei no Rádio Clube de Moçambique, depois de ter cessado as minhas funções nas Produções GOLO, foi-me atribuída a categoria de locutor de segunda classe. Para além de efectuar locução de continuidade, nós, os locutores, tínhamos a obrigação de ler os noticiários.
Estávamos no tempo da dactilografia e não dos computadores. Manda a verdade dizer que a maioria dos nossos noticiaristas, não eram nada exímios nesta coisa de enfrentar a máquina de escrever. O AZERT ou QWERT das já velhinhas “Olympia” ou “Olivetti” fazia-lhes uma tremenda confusão. As gralhas ortográficas eram uma constante. E como se isso não bastasse não havia o cuidado de mudar a fita quando essa estivesse gasta. E por via disso, o locutor tinha de se virar, como soe dizer-se. A falta de domínio de teclar correctamente colocava-nos numa situação complicada.
Um dia destes, aparece-me um noticiário que, para além de bem escrito, obedecendo as regras da elaboração duma notícia, estava excepcionalmente bem apresentado. Dava gosto pegar naquela conjunto de metades de folhas A4 que constituíam o noticiário e ler.
Questionei-me sobre o autor de tamanha proeza. Como não obtivesse resposta perguntei, no dia seguinte, ao Fernando Rebelo. Fiquei a saber que “o noticiário que leste ontem foi redigido e dactilografado pelo Mia Couto”.
Pois é. O Mia fez uma “perninha” nos Serviços Redactoriais da nossa Rádio, no sistema “part-time”.
Lembrei-me deste episódio, porque hoje o Mia completa os seus 64 anos de idade. Parabéns. Saúde acima de tudo, porque com saúde, certamente que teremos mais livros e (porque não) mais crónicas, mais poemas. Um abraço.
PARA TI
Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo
Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre
Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida
Mia Couto, in “Raiz de Orvalho e Outros Poemas”
Nota biográfica:
Mia Couto nasceu na Cidade da Beira (Moçambique) em 1955, filho de uma família de emigrantes portugueses. Publicou os primeiros poemas no “Notícias da Beira”, com 14 anos. Em 1972, deixou a Beira e partiu para Lourenço Marques para estudar Medicina. A partir de 1974, começou a fazer jornalismo, tal como o pai. Com a independência de Moçambique, tornou-se director da Agência de Informação de Moçambique (AIM). Dirigiu também a revista semanal “Tempo” e o jornal “Notícias de Maputo”.
Um Comentário
José Audi Silva de Castro
Parabéns grande poeta e cidadão da palavra.